sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Sobre quem sou...

Já faz dois anos que ela se foi e tudo o que representou , em presença e em ausência, nunca foi escrito por mim até agora. Procrastinação, medo e imaturidade resumiriam bem o meu silêncio...

Essa “ela” de quem contarei hoje é Dona Maria Lourdes Gonçalves, minha avó paterna. Mulher nascida no interior de São Paulo em 1925, Batatais, foi criada por sua mãe sozinha, pois perdeu seu pai ainda com dois anos de idade. Teve mais quatro irmãos, dois dos quais eu conheci. Os outros dois morreram, um aos seis anos de idade e outro na juventude, afogado na piscina do Club Nitro Química Irei deter-me na primeira morte apenas ao final deste texto. Morreu aos 82 anos após um AVC durante um tratamento para cura de um Câncer. Essa caipira corajosa e disciplina foi, junto com meus pais, a pessoa que “me criou” e graças a quem sou o que sou. Mas não é apenas um escrito de homenagem o que me traz novamente à essa arena...

O silêncio “significa”. E não apenas: é um verbo com objeto direto - silenciar alguém. No texto passado, discuti a função do sentido para o aprendizado e desconstrução de ideologias em nossa subjetividade. Não sei se consegui imprimir força suficiente para os perigos de uma cegueira em relação a alguns sentidos, mas, talvez, na corporização do que isso pode levar consiga ser, se não mais clara, mais palpável. O que me traz aqui é o grande incômodo em tardiamente ter percebido o que fiz: eu passei boa parte de minha adolescência e fase adulta a perfidamente silenciar a minha avó.

Dona Lourdes foi uma grande contadora de histórias. Das histórias de sua vida. Conforme foi envelhecendo, parecia mais querer falar. E falava. Mas, mal sabia ela, falava só...Passei minha infância em companhia de minha avó. Eu fui sua principal interlocutora e sua principal “emudecedora”. Explicarei com algumas perguntas e conclusões que tanto demorei a delinear. O que acontece quando quem tanto amamos passa a nos irritar veementemente? E o que deve acontecer quando quem tanto amamos e a quem tanto nos dedicamos passa a nos ignorar ferozmente?

Violência. É isso o que acontece. Há vários tipos e modos de violência. Algumas são mais óbvias em nossa cultura. Mas o espectro é grande o suficiente para não enxergarmos certas nuances. A família é um trator de subjetividades. O tempo todo na defensiva, a querer salvar nossas identidades e, conseqüentemente, a passar por cima das demais. É no ambiente familiar, neste ambiente de amor - e ódio - que parece estarmos mais vulneráveis e mais ferozes com outros indivíduos A promiscuidade da evasão e da invasão de nossas subjetividades em um ambiente transpassado por uma sociedade em que a voz do velho e da criança são caracterizadas pela irrelevância e pela imprudência, não poderia gerar senão, violência. Em minha casa não foi diferente. E tudo que é sólido se desmancha com o ar...
Em 2008 minha avó veio a falecer após um ano inteiro de dor, medo e indiferença de muitos dos que tanto amou. Seus filhos “não tinham mais paciência” para ouvi-la. Uma de suas netas que também foi criada por ela apenas a ajudava quando tinha vontade. Eu, também por conta da gravidez, não conseguia ouvi-la sem descordar e talvez, as únicas que não a desqualificou foram minhas primas. Quem sabe, por terem morado muito tempo fora do país, a elas, as histórias de Dona Lourdes não enfastiavam. Quando somos crianças, achamos que para sempre teremos nossos pais. Eles são fortes, sábios e sempre nos salvam de tudo. Acho que crescemos e essa idéia não nos deixa de todo. Eu tinha toda a eternidade para ouvi-la, então porque fazer isso naquele momento? Muito mais importante ler teóricos, filósofos, jornais, revistas, “gente jovem” “sem idéias passadas e de pouca utilidade em nosso contexto”.

Eu teria de ler um pouco mais, ou ouvir um pouco mais. Mas o que sei é que de algum modo, Walter Benjamin tinha razão. Não temos mais paciência para narrativas reais. Deixamos folhas de papel e giga bytes nos substituir. A palavra, que voa com o vento, mas que mais força chega ao coração está em baixa no mercado. Eu leio para me tornar “uma pessoa melhor”, mas o que eu pareço ter esquecido – e não só eu - é que de nada servirá “ser” se o tempo se encarregará de calar esse “conhecimento” adquirido sob o rótulo da velhice. Talvez seja preciso, de uma vez por todas, parar de nos embasbacar com a legitimidade dada à escrita e voltar a “ouvir conselhos e histórias de vida”.

Por estes dias, em um conflito que tive com meu filho, percebi que repetia os mesmos erros de minha mãe. Eu os repetia mecanicamente. Daí que percebi além dos erros, muito do que eu negava de seus conselhos, não passavam de pura birra e dos defeitos que lhe atribuo, pura demagogia, pois os repetia tal qual ela. Somos também e fortemente quem convivemos. Se tudo o que estudamos, nos enfeitamos e nos gabamos nada mais é do que ferramentas de nossos desejos, o desejo pelo outro, somos sim, como nossos pais. E enquanto não estivermos atentos a isso, corremos sério risco de termos em nosso destino o mesmo que dei a minha avó: o silêncio. Violentamente, o silêncio. Substituídos por qualquer palavra socialmente – pelo senso comum – legitimada. Por qualquer palavra morta sem afeto...

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“Lurdinha” tinha ainda dois anos, quando seu irmãozinho de seis, ficou muito doente: intestino preso. O menino não conseguia ir ao banheiro e a situação cada vez mais se só se agravava.

Lourdes e seus irmãos moravam na roça, em um sítio pobre, mas que tinha algumas mangueiras. Manga era a fruta predileta do irmão de Lourdes.

Os dias passavam e o menino ficava cada vez pior, até que sua mãe, finalmente, resolveu levá-lo para o Hospital, na cidade. Mas o trem que os levariam só passava pela manhã e sem outro meio de transporte disponível, teriam de esperar.

“Manga prende o intestino” diz o medicina popular e também a mãe de Lourdes ao seu irmãozinho. Mas o menino não largava a saborosa fruta à espera do momento em que, por fim, pudesse dar uma dentada daquelas na em sua suculenta manguinha.

Quase pela manhã, já desfalecido pelas dores de barriga, mas ainda com a manga nas mãos, o menino não agüentou Um outro trem passou primeiro e o levou. Um mais rápido e menos cruel. E o menino se foi, levando a manga nas mãos...

Conta minha avó que em cima de sua sepultura, um tempo depois, nasceu sem que ninguém ali plantasse, um lírio branco que nunca morria, apesar das todas as pragas e do mau tempo.