sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Infidelidades

Oi.

Oi...

Bem, estou aqui. E hoje serei só sua.

Será?

Como assim? Você dúvida?!

Hum.

Vai dar tudo certo desta vez. Até porque não há mais prazo, né?

Não.

E os outros?

Quê outros?

Você sabe do que eu estou falando!

Bem, você sabe, acontece. Quando eu vejo, já foi. Mas dessa vez não deixarei acontecer.

Sei...

Quer ver?

Então tá. Quero.

Olha só, já estou começando.

Hum.

Meia hora depois, eis que o trato é rompido.Yara languidamente lê textos do facebook ao invés de reescrever o seu projeto de mestrado.

Pobre projeto... 

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Vampirismos cotidianos

[…] Um dia… Desculpe-me, não viso a efeitos de ficcionista, infletindo de propósito, em agudo, as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água- limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto?  palpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era – o transparente contemplador?… Tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona.

Com que, então, durante aqueles meses de repouso, a faculdade, antes buscada, por si em mim se exercitara! Para sempre? Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles!

 

(O Espelho – livro Primeiras Histórias – Guimaraes Rosa)

 

 

 

As palavras não existem antes que as declaremos. Os pensamentos só se organizam, só se materializam, quando convocados pela urgência de sua realização. Eu posso pensar diversas coisas, mas o texto, em sangue e ossos, em suas deliciosas e dolorosas escolhas, tons e referências, não existirá até que eu o constitua em uma enunciação, palavra falada, palavra escrita, palavra parida. Por mais que eu treine, ou que planeje, ao final de tudo, não há como fugir do pungente caráter de  estréia de toda enunciação. Ao que alguém me pergunte algo, eu só terei conhecimento das palavras e da ordem escolhidas, dos gestos e do tom empregados no instante da frase verbalizada.   Aos que por aqui tropeçarem não se iludam. Quem me contou tudo isso foi Merleau-Ponty  pelas palavras da professora Norma Discini, em uma de minhas aulas Semiótica no Limiar. E é, pois, com base na provocação deixada, que inicio aqui o espetáculo: às cegas, sem saber por onde começar. Uma promessa de “inacabamento”, tal qual a autora.

Eu realmente tenho grande dificuldade em começar alguns textos. Devo confessar este que ensaio agora é um desses “alguns textos”. Talvez porque o gesto em mim com enorme ambição: a de finalmente rebentar lacunas e expurgos que carrego nas vísceras e aos quais, óbvio, protelo. Há muito.

Desde o inicio de meus estudos em Letras acompanha-me a predileção pela temática do erotismo e da pornografia, no caso, na literatura. Muito provavelmente pelo prazer em chocar aos que na maioria têm em mim um éthos de pureza, inocência e assexualidade. Uma semente de impulsos transgressores que em silêncio carrego em resposta e resistência há uma sociedade  a qual desde cedo amordaça corpos com deficiência física à infantilidade, debilidade e esterilidade. O assunto aqui será sobre corpo e deficiência física.

 Doces manifestações paternalistas é o que protege a nós pessoas com deficiência de uma câmara de gás e  que encobre a culpa dos que em nosso redor fingem não nos flertar sob uma etiquetada inferioridade. Mas não é a toa que qualifico em “doces” o modo como somos acolhidos socialmente. São doces, pois não há como não confessar o quanto é atraente ser a todo tempo resguardada. Todos a todo tempo a olharem-te comovidos pelo “não- ser” que carregas na pele e na alma. Pela não-carne que carregas na carne. Pelo desossado que se ergue de nossos ossos. Ser frágil é realmente  terno. É a dádiva de em se ver diante de uma dificuldade, saber poder recorrer a ajuda de alguém. É também saber que se a dificuldade não existe, ainda assim haver alguém a te auxiliar. É saber que sempre haverá alguém que fará o necessário por ti. Com o tempo, é acabar por perder a linha divisória entre uma situação e outra, entre a necessidade e a imobilidade. Não defendo aqui que as pessoas parem de amparar a pessoas com deficiência. Longe disso. Deixo apenas  uma  constatação de algo que dorme quietinho,em segredo, nesse mundo secreto que só quem pertence a ele sabe como funciona. 

 Eu ando pelas ruas e as pessoas sorriem  para mim. Algumas até mesmo vêm a mim, me abordam diretamente, a fim de me salvarem de minha “doença”. Afinal, se Jesus curou aos cegos e leprosos, porque não a mim? Outros se  sentem­ a vontade para iniciar conversa, fazer confidências. A uma maioria, eu mal preciso abrir  a boca e para ser uma “vencedora”. Para ser já a priori alguém digno de admiração. Já pressuposta como  “um exemplo de vida”. A atribuição de uma completude interna para compensar a indisfarçável incompletude externa. Santificada, imaculada, salve e salve! Doce, muito doce é a ilusão de que seria redimida de minha condição humana só por ter uma deficiência física... Em meio a tanta ajuda e “bajulação” acomodar-se em rótulos é um perigo a espreita. Afinal, diz o ditado popular, tudo tem seu preço. E em tal contexto, há os que o pagam. Há os que só aceitam as benesses e crêem poder rejeitar os efeitos colaterais. Sempre pergunto­-me: e eu, onde estaria? Atualmente, provavelmente  dentro do “Espelho” de Guimaraes em que um de um momento a outro o protagonista se vê a perder o seu reflexo do espelho.

Michael Bakhtin contou a mim, em O autor e o herói ,algo muito revelador. Somos seres cujo olhar é “para fora”. Isso quer dizer que somente  o outro tem a imagem de nosso corpo enquanto acabamento, enquanto corpo. Mesmo quando alguém se olha em um espelho, o que vê não é o seu corpo: é apenas uma perspectiva incompleta dele. O espelho não é capaz de revelar gestos, nem proporções. Ele não nos fornece toda a carga cultural de uma avaliação sobre o que somos. O espelho não classifica. Não é ele quem revela nosso corpo. Apenas o Outro é capaz de fazê-lo. Somente o Outro nos dá um acabamento. E ainda sim, um acabamento transitório, diga-se de passagem. Por isso, somente somos em Sermos Dois. E assim o mestre russo ensinou-me algumas coisas. A primeira é a de que há mais gente sem reflexo no espelho do que imagina minha vã filosofia. E a segunda, é a de que somente na literatura há seres acabados. Nunca somos. O destino do homem é o do estar. Ser, ser algo para sempre, é uma das mais cruéis ideologias que ainda perpetua em nosso tempo.  Talvez, isso proponho eu, as fases da vida que se materializam em nosso corpo sejam a melhor metáfora do que realmente nos faz humanos:  não-sermos. Os dias passam e não percebemos as mudanças. Com o tempo, porém, elas se manifestam em realce. E após algum tempo, não mais é possível afirmar que somos o que éramos.  O texto também afirma que a idéia que temos de corpo tende mais a generalizações do que a diversificações. O corpo institucionalizado é o corpo generalizado.

[...] o aspecto físico deve englobar-conter e acabar o todo da alma – o todo da alma – o todo da postura emotivo-volitiva só a assume para outrem; para mim, é-me impossível sentir-se englobado e expresso pelo aspecto físico, e minhas reações emotivo-volitivas não se alojam numa imagem concluída de mim. [...].  É nesse sentido que o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, da sua visão e de sua memória; memória que o junta e o unifica e que é a única capaz de lhe proporcionar um acabamento externo. Nossa individualidade não teria existência se o outro não a criasse. A memória estética é produtiva: ela gera o homem exterior pela primeira vez num novo plano de existência... (Grifos meus) 

 

Quem sabe essa nossa “atenção” ao corpo iniciada no século XIX, com a instituição de diversos cuidados médicos e novos cuidados e que chega ao ápice com a veiculação desenfreada de corpos impossíveis redesenhados a photoshop e em performances cada vez mais padronizadas como as que encontramos em nossos vídeos pornográficos não seja exatamente a morte do corpo? Após a diminuição da importância da alma com o questionamento dos dogmas do cristinianismo, o corpo enquanto separação do intelecto parece permanecer. A partir disso, eu me pergunto se a padronização de corpos a qual vivemos nas últimas décadas e a higienização de seus defeitos e de seus humanos afetos não seriam uma nova face da negação do corpo, ao contrário do que se acredita? Se não seria a super exposição e preocupação com o corpo apenas uma repetição alienada tal qual uma pulsão de morte? Deleuze ao analisar 120 Dias de Sodoma  afirma que os escritos de Sade não são exemplos de Erotismo, mas exatamente de seu contrário: da “morte do erótico”. Morte essa  que acontece quando levamos institucionalização do prazer as últimas conseqüências Levada ao seu máximo grau, o exercício extremo  do poder teria por resultado Sodoma. Conclui-se daí que ao eliminarmos o Outro, eliminaríamos a própria possibilidade de prazer. Somente pelo Outro o Corpo existe. O Corpo humano, com defeitos humanos, atribuído de memória, preenchido de história, o corpo carregado de vida e de morte, pressupõe o Outro.

O que recortarei aqui, contudo, é o ponto de que somente somos no Outro e pelo Outro. É ele inclusive quem nos delineia a beleza e a feiúra, o certo e o errado, o legitimo e o não legítimo. É ao Outro quem nos comparamos. É na busca que realizamos no Outro que nos acharmos. A pergunta de cunho pessoal que me arrebatou nas reflexões sobre corpo que exercito nos últimos meses é a de que como eu poderia fazer comparações se em ninguém posso me reconhecer. A quem me confrontar se em nenhum lugar vejo pessoas como eu? 

A pergunta, porém, que me lançou a escrever aqui foi uma bem mais refinada: e se eu não somente não consiga ver a imagem no espelho, mas  simplesmente não a queira ver?

Merleau-Ponty contou-me ainda um outro ponto. O autor em seu estudo Fenomenologia da percepção, capitulo sobre o corpo, ao analisar os doentes de Schn. os quais perderam a capacidade de ter relações sexuais, bem como, não por acaso, de manter qualquer afeto, afirma:

 

[...] Se a história sexual de um homem oferece a chave de sua vida, é por que na sexualidade do homem projeta-se sua maneira de ser a respeito do mundo...

 

E mais a frente:

[...] a percepção erótica não é uma cogitatio que visa um cogitatum; através de um corpo, ela visa um outro corpo, ela se faz no mundo e não em uma consciência. [...] (Grifos meus)

 

Poderia escrever sobre muitas coisas aqui somente com base em Bakhtin e Merleau-Ponty. Coisas tristes, com certeza. Se pensarmos que o erotismo de nossa época sob a lógica dos autores,  constataríamos que ela longe de ser “liberal” e diversificada é na realidade uma máquina de domesticar tanto a figura feminina e menos óbvio, também a masculina. Se eu apago o Outro, apago-me conseqüentemente.  A mim, contudo, os autores revelaram-me mais: que talvez a minha inquietação em não ver-me seja uma incapacidade de me representar fora dos quatro atributos acima descritos: infantilidade, debilidade, esterilidade e assexualidade. 

Uma constatação, porém, pode ser afirmada: apesar da ilusão que os padrões de beleza e acabamento nos vendem – ser belo, ser bem-sucedido, ser famoso – nenhum deles obtiveram sucesso em nos livrar do que tanto aprendemos a temer: a nossa condição de humanos. Continuaremos a sofrer por amor e sim, a sermos amados! A ter conflitos familiares, a nos sentirmos inseguros. A sentir dor e a ser acometidos pela morte e pelos desastres. Acredito que essa constatação é a mais triste e a mais bela que carregamos em nossos corpos. Ou melhor, em nós. 

Filhadaputamente deixo aqui o texto sem conclusão posto que ela ainda não existe. Afinal encarnada, penso com as palavras e somente por elas. Que aguentem então esses fragmentos de idéias enquanto a gestação não cessa.