sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Jovem

Caro leitor, meu nome é Yara, tenho 27 anos e sou considerada uma pessoa do grupo dos jovens. Nesses anos de vida e ao menos doze de juventude, nunca: participei de uma Ong ou de algum movimento social. Não acredito em nenhum Deus institucionalizado, não acredito na maternidade - ao menos não nos moldes em que a vivemos, não acredito em relacionamentos monogâmicos, em uma ética pautada pelo trabalho, na Academia, nos sindicatos, em representantes estudantis, na Escola. Não acredito em filmes pornôs, não confio na água que eu bebo, desconfio do ar que respiro, das roupas que visto e do tênis que calço.
Não é bonito o que vou escrever. Mas sou uma jovem como muitas: sem perspectiva. Para não dizer que o conhecimento que obtive em oito anos de bacharelado não me serviu, pois seria mentira, digo que simplesmente me colocaram em uma existência em negativo: uma postura do contra. Contra. Contra a homofobia, contra uma ética da competição, pregada pelo sistema econômico que vivemos, contra o machismo – mesmo o que chamo machismo “moderado”, contra a mediocridade exaltada. E quando escrevo mediocridade, não é algo gratuito. Por isso mesmo, será exatamente o ponto que vou discutir neste texto.
Na falta em se refletir moralmente (eticamente) sobre nossas atitudes, disciplinados a dar a resposta que os pais querem ouvir, a que os professores querem ler, a  que o patrão quer realizada, já prescrita desde muito cedo pela televisão, acostumamo-nos a nos pautar por uma ética da mediocridade. Fulano pergunta a sicrano o que acha sobre homossexualismo. E a resposta medíocre, ali, na manga, é rapidamente utilizada: “sim, mas sem radicalismos”. E as mulheres? Ah, essas podem tudo! Contanto que não exagerem. Contanto que não sejam promiscuas. Trabalhar fora? Lógico! Mas que não se esqueçam de fazer seus afazeres em casa. Que façam sexo, mas o façam sabendo “se dar ao respeito”. Que não deixem de ser mães. Que não deixem de ser malhadas, que não deixem de “se cuidarem”, etc. Um meio-termo: metade do tempo ao trabalho, metade do tempo ao marido e filhos. A prescrição “Dama da sociedade e puta na cama” define bem quais os espaços destinados às mulheres.  
Nunca se valorizou tanto e com tanta veemência o meio-termo. O conservadorismo já não assusta mais. O grande bicho papão comedor de criancinhas do momento é o radicalismo. Assim, as analogias subjacentes à ética mediana prescrevem: ser feminista é radicalismo. Fazer greve? Radicalismo. Não gostar de trabalhar? Radicalismo. Ser atéia é, lógico, radicalismo. Votar nulo: radicalismo. Não consumir carne: radicalismo. Não querer ter filhos: radicalismo. Relacionamento aberto: radicalismo. Não comer açúcar: radicalismo. Encher a cara com os amigos: radicalismo. Não beber bebida alcoólica: radicalismo. A doutrina do meio-termo parece ser a grande ordem do momento. Com ela não mais funcionários fazem greves, mulheres não mais queimam sutiens, jovens não mais fazem poesia. O meio termo salva a todos de ter de pensar. Salva às conversas de happy hour, aos almoços de trabalho, aos casamentos, aos professores, aos pais de seus filhos e aos filhos de seus pais. Não se sabe muito bem o porquê um jovem se diz não preconceituoso e ao mesmo tempo se preocupa tanto em casais homossexuais que queiram se casar.  A pessoa simplesmente não quer ser radical.
Deixemos claro um ponto: não aponto aqui ao respeito em se respeitar a diferença na existência alheia. Essa é uma falsa interpretação utilizada nos mais diversos meios para se defender uma postura de meio-termo.  Aristóteles antes de Cristo defendia uma Doutrina do Meio-termo, só que apoiado em outras concepções. Discutível, mas diversa da que aqui aponto. Tal doutrina previa um afastamento crítico em relação a um sentimento e dessa maneira a realização de análises que levassem em conta dois pontos de vista de uma questão. A melhor posição estaria no meio-termo. Apesar de tal lógica levar em consideração uma relação binária das questões humanas, o que não se verifica na vida, nem mesmo esse tipo de “meio-termo” é o que descrevo aqui. A visão mediana a que vivenciamos não aposta na análise de pontos de vista discordantes. Ela se ancora na sobreposição da opinião de uma “maioria” – maioria não em número, mas em poder – à de minorias que exigem seus direitos. Qualquer progresso adquirido pelos grupos discriminados é considerado radicalismo. Assim, o meio-termo nada mais é do que um discurso que tem como objetivo a conservação de leis, ações e situações de discriminação social a grupos de pessoas socialmente deslegitimados por esse discurso. Seria o discurso da “ vontade da maioria”. Ou seja, o discurso da maioria mais forte sobre o do mais fraco. A prevalência da voz da maioria e o silenciamento da voz das minorias.    
O meio-termo é o verniz que tenta tão somente disfarçar a intolerância e o conservadorismo de nossos jovens e de nossos aspirantes a jovens – porque sim, ultimamente os adultos adolescem. Ele é o discurso que mortifica a reflexão e principalmente o debate. O meio-termo de cada dia tem em seu bojo toda sorte de preconceitos e tentativas de objetualização do outro. A homofobia, um caso em destaque que posso citar, a qual tem simplesmente o pressuposto da inferioridade do outro, é um exemplo disso. Tal ideologia pressupõe um Outro o qual em sua condição de “anormal” deveria disfarçar as manifestações nefastas de sua existência. Ele é também o verniz  que mascara o machismo do jovem que se orgulha em inferiorizar, ridicularizar e humilhar  “a vagabundinha” com quem manteve relações sexuais após uma balada. É o verniz que chama o vegetariano de radical, ao mesmo tempo em que se preocupa tanto em interferir em sua alimentação.     
Não é de hoje que a idéia do meio termo é um modo de exercer livremente a intolerância. O modo como o Brasil obteve sua independência em relação à Portugal já pautava-se por ela. Uma lógica que, espertamente, ao pressentir uma independência feita pelo povo, a fez pelas mãos da elite coronelista do Brasil. A abolição da escravatura a conta gotas não teve outro motivo de retardo que não o discurso do meio-termo. O que acontece, entretanto, é que após a década de 60, mais precisamente do ano de 68, em que essa ideologia foi desconsiderada por um grupo de jovens que questionava as instituições – Estado, Família, Escola, etc -  de maneira incisiva, houve dois movimentos que empurram nossa geração à completa falta de perspectiva em relação à novos ideais políticos e culturais. Em primeiro lugar, o falso pressuposto de que esses jovens que participaram de movimentos libertários de 68 eram uma parcela significativa dentre os jovens daquela época. Passadas três décadas do verão de 68, a idéia que se construiu foi a de uma participação maciça de jovens praticando o amor livre e o questionamento da igreja, do trabalho, do Estado e da família. E com isso, tendo em vista o fracasso da realização das concepções pregadas por essa geração, atribuiu-se tal derrota à própria genealogia desses questionamentos. Porém, nem nunca existiu qualquer participação maciça de jovens em defesa dos questionamentos levantados à época do festival de Woodstock, nem os questionamentos propostos deixaram de existir. Houve sim, uma mudança de perspectiva, mas não sob o modo como se difunde pelos meios de comunicação. Soma-se a isso, um segundo movimento iniciado na década de 90, o da assunção do neoliberalismo, em que, paralelamente, assistimos  ao sucateamento do ensino escolar, bem como da mercantilização do conhecimento acadêmico e do crescimento de uma classe média regada à publicidade, novela e shoppings. Nesse contexto, o meio-termo torna-se a palavra de ordem de nosso sistema normativo. Entendendo norma ao modo de Foucault. 
Não há mais necessidade da palmatória, da reprovação escolar ou da demissão do empregado. As pessoas naturalizaram a passividade. E suas vidas giram em torno do medo em não estarem de acordo com as regras. Não sabem o porquê, mas têm muito medo de não conseguirem um emprego. Daí o ensino gira em torno em ter competências e habilidades para tal. O que estiver fora disso é inútil. Na universidade, o importante é o título. E se o ensino caminha ao tecnicismo, o importante é o título. O resto é utopia e radicalismo. Filosofia de boteco, nas palavras de Reinaldo de Azevedo, um exemplo expoente da nova doutrina. Com um diploma em uma das mãos e uma revista Veja na outra, esse novo tipo de bacharel poderá recriminar os pobres, poderá exercer seu machismo com elegância e falar sobre coisas que nunca leu, ou discutiu, nem na faculdade, nem na escola, nem em lugar nenhum.  E a esses psedo-pensadores  de happy-hour de escritório, o meio termo caí como uma luva. Afinal, seria muito feio admitir preconceito e ignorância com um título superior à tira colo! Sexo, política e religião não se discutem, já diz o mandamento popular.
O que se vê, assim, é o mais completo vazio, seja na desesperança velada das pessoas que pacientemente participam dinâmicas de grupo em grandes empresas, seja na brutalidade do rapaz que arrasta quilômetros a fio uma criança em um assalto banal, seja em quem está em depressão pela pressão de escrever sua dissertação de mestrado em prazos estipulados por agências de fomento à pesquisa. E em meio a esse completo desamparo reflexivo, fertiliza dolorosamente uma felicidade também vazia e a busca desenfreada de prazeres repetitivos e esvaziados  e a adoção de uma ética pré fabricada.   O erotismo institucionalizado de nossa pornografia ocidental, latina e machista em que tudo é vendido como uma questão de técnica, o purismo dos comerciais de dia dos namorados no mês de junho, os shoppings lotados de gente endividada, as mães solteiras e desquitadas em depressão.   O velho relegado ao silencio, a criança silenciada pela TV. As conversas frias, frívolas, e os conflitos resolvidos na pancada em alguma “casa de família”, ou em algum dos bares da cidade, em alguma  avenida em que luminárias atacam jovens homossexuais, ou no fogo que queima índios e mendigos em pontos de ônibus. Esse é o nosso meio-termo.
E como estar fora disso de alguma maneira? Eis a pergunta a qual as respostas alguns de nossa geração desesperadamente tentam tatear. Entre eles, eu.    

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Sobre quem eu sou: A Casa

Tocou a campainha e eu o olhei pela janela.

Observamo-nos.

Minutos, horas, dias e meses. Com medo eu disse não.

Entrou. Não tocou nenhuma campainha. Mal sabia eu, mas a porta já estava aberta. Depois disso,  apenas um  escuro de olhos cerrados, a saliva das línguas em espasmo, o macio das mãos. Desse dia em diante a porta fechada por dentro e as janelas abertas a um novo mundo.

Abrimos a porta do quarto. Abrimos a água do chuveiro. A casa clara. As conversas fartas.

Abrimos a porta da cozinha. Ele cozinheiro, eu temperada e comida.

Abrimos cervejas. Abrimos um vinho. Abrimos os livros. Abrimos um vício. E juntos, as horas acalentadas e a carne encharcada.

Abri as pernas. Abri o peito. Abri meus sonhos.

Abrimos um amor.


Mas um dia foi à sala e fechou a janela. Não gostava do barulho da criança no jardim. 

Desse dia em diante, uma sombra na sala. A casa mais fria.

Passei a observar a sala. E um dia fechei sua porta. Tinha medo da sombra que lá crescia. Porém, a sombra já havia aberto uma porta em mim.  

Depois, fechou o portão da casa. Não gostava de barulho de menino. Relutei. Pra quê tanto silêncio? Não conseguia me ouvir. Desse dia em diante, não mais fui ao jardim. Tinha medo do silêncio que lá crescia. Mas o silêncio já morava em mim.

Minutos, horas, dias e meses. ..

Então, a porta do quarto foi fechada.

Tinha medo de mim.

A casa escura, as conversas rasas.

Minutos.

Horas.

Dias.

Meses.

Abri a porta do quarto.

Abri a janela da sala.

Abri a porta da casa.

Abri o portão.

A rua clara. Sons de criança.

Atrás de mim,  as paredes desmoronadas.

Em mim,

fotografias de uma casa antiga.