terça-feira, 27 de setembro de 2011

A amante exigente

Quero tudo.
É direito meu.
Sem essa de você não respeita a minha individualidade!
Quero seus lábios e seus bagos
e também
a  dor estuporada de seus sonhos
O impreciso furioso de seus olhos
As lâminas frias
ardidas
de suas Palavras
a empalar-me a carne
Sem essa de eufemismos
tranquilismos
Pode vir
Sem piedade
Anda!
Rasgue-me de uma vez por todas!
(toda vez)
Cruelmente!
Desosse-me se assim for ...
Preciso
(e se não for também)
Eu preciso...
Sem demora
Estrangule-me logo essas certezas!
Entenda
Eu quero
a sua paz
e o seu desespero
Quero que aprenda
a não ser o bastante.
Que sinta culpa
mesmo
Pelos os poemas que ainda me deve a escrita
e pelos livros que ainda me deve a leitura
Que na hora exata,
irritantemente,
apenas insinue
aquelas palavras incertas
E no momento impreciso
jogue-me na cara
impertinentes intimidades.
Espero que
pelo menos
consiga ser rude o suficiente
E  como regalo de amor
rezarei
todos os dias
para que sejas fênix
com toda dor de ser fênix
Morrer
em ardor e desalento
Pois só há beleza
aos  que entrelaçado às fibras,
carne e mente
carnadura,
carreguem a cicatriz
de a cada pôr do sol
todos os dias virar pó
e mesmo sabendo dos flagelos que o próximo anoitecer lhes promete
não nos prive,
querido,
do  desnascer de cada dia..

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Até que ponto?


Ao reler o post “Se você for tentar, vá até o fim”, e um outro do site O individuo sob o título de “Chantagem Emocional”,  deparei-me com a seguinte questão : Até que ponto temos o poder de jogar tudo para o alto? Até que ponto é uma questão de coragem?

Os textos em questão não servem de contraponto ao que vou levantar aqui, porém serviram de inspiração a esses tão disformes questionamentos clichês. Há algum tempo um capetinha/anjinho sopra em meus ouvidos: Jogue tudo para o alto! Fiz uma frustrada tentativa com o emprego. Concretizei mesmo com o namoro. Ensaiei com uma das amizades (que talvez a mim já esteja realizada).  Tímido perto do que em mim se agita.

O que se passa é que eu sou dois. Sou muitas, mas o que quero dizer é que há um serzinho sob a minha completa responsabilidade. E aí entra o texto do Biasi. Nós somos responsáveis pelo amor dos outros. Não adianta vir com o papinho “se não estou feliz, então, não posso arcar com a infelicidade alheia”. Às vezes temos de fazer coisas chatas para preservação de uma relação, ou projeto valioso. Sacrifício, ofício sacro na gênese da palavra,  é o que mesmo chato, ou dolorido ainda sim se justifica por carregar um sentido. Por isso na história do homem foi atribuído a rituais necessários à obtenção de uma graça desejada. Nesse sentido, se amo, sacrifico-me pelo bem estar do ser amado. É diverso do sofrimento o qual se resume a uma vivência disfórica e sem sentido. Também difere de uma relação de servidão. Na servidão temos a realização de ações que o outro não necessita, mas que faço por obediência, autoflagelo, sentir-se bondosa, etc. A partir dessa definição (definições minhas, deixo declarado), limpar vômito de uma criança doente, por exemplo, não seria servidão, mas sacrifício. Se a criança crescer e se continuar a realizar atos os quais ele mesmo é capaz de fazê-lo, então teremos uma relação de servidão, ou, em outras palavras, paternalista.  Por essa lógica, eu estaria a abrir mão da escolha de opções mais ousadas em prol do bem estar de meu pequeno. Uma escolha ética. Agir dessa maneira é a escolha de não ser demagoga com minhas reflexões morais, além de sentimentalmente não optar  por uma postura de insensibilidade com quem tanto amo.   E aí, sempre vejo-me em um dilema: até que ponto tenho poder sobre minhas escolhas? Até que ponto sou socialmente podada de uma escolha? Ou até onde não a faço por medos meus justificados pela existência de meu filho? Quais os limites entre a prudência, a coação e o temor? 

Por esses dias uma pessoa que conversava se vangloriava por trabalhar muito e “dar conta” dos estudos em um ritmo enlouquecedor. A justificativa foi a de: “ao menos tenho como por comida na mesa”. Ao ouvir isso, veio-me um sentimento de ceticismo absurdo. Pensei: “como assim colocar comida na mesa se a pessoa nem sequer sustenta uma família? Vive a gastar com tudo e depois a varar noites sem dormir para pagar a saúde perdida!” É obvio que como diria a música de Caetano, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. A pessoa em questão é consumista, contudo também ajuda a família. O que me interessa aqui é o discurso do “tenho que trabalhar dentro desses moldes senão sou imprudente, ou louca”. O quanto realmente nos coloca em perigo jogar tudo para o alto? Qual é o preço em se manter, ou se dispensar uma tarefa? Até que ponto parte de uma reflexão moral? E não apenas. Até que ponto nós temos o poder da escolha?

Vivemos, nós ocidentais de classe média,  sob a normatização do medo de perder o emprego. E por isso não mais greves são realizadas. Também em decorrência disso, funcionários acumulam tarefas sem o devido reajuste salarial. Trabalham horas e horas a mais sem cobrar. Fazem tarefas repetitivas e extremamente burocráticas sem perplexidade, ou espanto. O que eu acredito é que esse medo não se justifica na realidade. As empresas gastam muito dinheiro para contratarem funcionários novos. Não desejariam serem maciçamente processadas por leis trabalhistas.  Também se reorganizariam melhor se ao invés de se separar “tarefas operacionais” e “tarefas estratégicas” o fizessem de forma mais diluída entre seus empregados.  Ninguém quer fazer “a parte chata”. E os que são a ela designados, o fazem por acreditarem na normalidade de tal divisão. E claro, pelo medo de perderem seus empregos. Uma neurose social. Todavia, apesar desse medo, as pessoas se endividam. Há situações que não há como ser de outra forma. Se alguém almeja comprar algo como uma casa, ou um carro, terá de se endividar, pois são objetos de valor alto. Mas a contradição está no que em que “se endividar” vai para além disso. Endividamo-nos sem qualquer reflexão sobre como tais gastos nos amarram a certas escolhas. É esse ponto o que passei a me questionar ao ouvir o discurso do “trabalho para por a mesa”.  

 

Acredito que devemos estar atentos em separar o que é uma obrigação social ideologizada, o que é simples justificativa para nossas irresponsabilidades, ou medos. E, principalmente, que pessoas essa escolha envolve. Qual a relação ética que implicará a nossa posição.  Nisso reside uma complexidade. Camadas sobrepostas. Em certos momentos temos o social que nos coage para realização de uma tarefa. Apesar disso, burlar seria uma irresponsabilidade com valores eticamente adotados. Valores de responsabilidade amorosa, por exemplo.

De qualquer modo, não posso esconder duas coisas: o desejo em mudar assim que possível para uma situação radicalmente diversa da atual. E a de que concordo com o texto de K., o qual afirma que “se for jogar”, que seja até o fim.

Onde estará o momento do “assim que possível”? Eis a questão. 

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Chantagem Emocional

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Um texto muito interessante de Sergio de Biase e que coloca em palavras muitas das coisas que acredito e não sabia escrever sobre.


Chantagem Emocional
June 28th, 2011 by Sergio de Biasi
Sue : I suppose you don’t have any shrinks at Walkabout Creek.
Michael : No, back there if you got a problem you tell Wally. And he tells everyone in town, brings it out in the open, no more problem.

Entre os diversos experimentos altamente perturbadores sobre comportamento social que eu conheço em psicologia estão os que seguem a linha de pesquisa inicialmente explorada por Milgram na década de 60. Para quem não conhece, vale a pena ler uma descrição mais detalhada. Mas em resumo, o resultado é na direção de concluir que o ser humano médio está preparado para sem qualquer coação e sem qualquer remorso praticar os atos mais cruéis e desprezíveis desde que acredite estar seguindo intruções diretas de uma figura de autoridade.

As conseqüências para política, religião, educação, e na verdade em praticamente todas as esferas da existência humana são gigantescas.

Mas eu quero aqui me concentrar em discutir um contexto específico em que esse fenômeno se manifesta de forma a meu ver particularmente perversa, que é o do tratamento psicanalítico (e similares).

Quando um indivíduo decide buscar um terapeuta para discutir suas questões psicológicas, suas angústias existenciais, suas neuroses, seus problemas emocionais, ele se coloca em uma posição bastante vulnerável. Note-se, mesmo sem questionarmos a validade científica ou médica de psicanálise e similares, a maior parte dos pacientes se vê na mesma situação na qual nos descobrimos quando levamos o carro a um mecânico sem termos qualquer noção de como um carro funciona por dentro – que é de que em algum momento somos confrontados com ter que escolher confiar que o mecânico sabe o que está fazendo. Claro, não tomamos essa decisão cegamente – mas quase sempre também não a tomamos com base em conhecimento profundo do assunto. Usamos critérios basicamente circunstanciais para fazê-lo, usamos aparências e inferências para escolher ou não aceitar o terapeuta como uma figura legítima de autoridade sobre certos aspectos da mente humana e sobre os caminhos apropriados para atingirmos saúde mental e emocional.

A questão porém já começa do fato de que definir saúde mental e emocional é altamente problemático. Será que um psicopata perfeitamente feliz e realizado com seu comportamento deve ser classificado como num estado psiquiatricamente patológico? Ou simplesmente como um perigo objetivo aos outros? Será que alguém que decida permanecer com seu cônjuge alcoólatra devido a sentimentos de amor e fidelidade deve ser classificado como autodestrutivo e masoquista? Ou pelo contrário, como idealista e nobre? E se o cônjuge não for alcoólatra mas sofrer um acidente de carro e ficar paraplégico? Alguém que escolha voluntariamente e sem qualquer coação ficar e passar uma vida inequivocamente infeliz ao lado do cônjuge deve ser classificado como emocionalmente perturbado? E se a pessoa estiver *feliz* com essa escolha, deve então ser classificada como delirante? Alguém que *condene* essa escolha deve ser aplaudido, desprezado, ou simplesmente respeitado? Alguém que anseie ser capaz de tais atos de desprendimento deve ser considerado nobre, ingênuo, doente, ou simplesmente portador de uma personalidade?

Espero que com esses poucos exemplos – seria muito fácil construir mais – esteja claro que “saúde mental” dificilmente pode ser reduzido a “felicidade pessoal” sem esbarramos em sérios problemas.

Infelizmente, porém, existe modernamente uma tendência bastante forte de encarar saúde mental exatamente desta forma, isto é – se o sujeito é capaz de funcionar socialmente, e está feliz com seus próprios estados mentais, então como regra geral está tudo bem. Ao diagnosticar grande parte dos distúrbios emocionais e de comportamento como patológicos ou não, grande atenção é dada a como tais comportamento e estados mentais de fato afetam o bem estar – objetivo e/ou percebido – do paciente, e quaisquer determinações de patologia são em grande parte assim relativizadas. Então se eu sinto uma necessidade incontornável de lavar as mãos 10 vezes antes de sair de casa enquanto canto “parabéns pra você” mas estou perfeitamente feliz com isso e isso não prejudica em nada a minha rotina, então boa sorte para mim. Por outro lado se eu me sinto compelido a executar exatamente o mesmo ritual mas isso me causa imensa angústia e perturba minha capacidade de chegar nos meus compromissos a tempo e eu não sei administrar essa idiosincrasia como parte de uma rotina funcional, então eu tenho um problema.

Isso tudo parece muito razoável e flexível e coisa e tal e inclusive foram considerações como essas – em grande medida substituindo o temível e opressivo critério de “normalidade” – que levaram ao questionamento e eventual – bem vindo – repúdio da classificação de diversos comportamentos estatisticamente desviantes – por exemplo homossexualidade – como sendo supostamente merecedores de um diagnóstico patológico para o qual devemos desenvolver um “tratamento”. Afinal de contas, ter um QI de 140 ou ser capaz de compor sinfonias é muito mais raro do que ter tendências homossexuais e ninguém vê necessidade de encontrar “curas” para isso.

Esse paradigma porém, útil e benéfico que seja para questionar a perversa identificação entre desvio e patologia, esbarra em sérias limitações quando buscamos usá-lo como único critério para diagnóstico e tratamento. Revisitemos variações dos exemplos acima apresentados. Suponhamos que alguém procure um terapeuta e diga “Meu cônjuge sofreu um acidente de automóvel e ficou paralítico e desde então eu tenho estado muito infeliz. Essa relação não tem mais como satisfazer profundas aspirações que eu tenho para o resto da minha vida e eu não quero permanecer nela. Porém eu me sinto profundamente comprometido em ficar, me parece uma traição inaceitável simplesmente ir embora. Que devo fazer?”

Naturalmente que a maioria absoluta dos terapeutas não responderá com sugestões assertivas sobre qual caminho seguir. Ao invés disso, buscará “auxiliar” o paciente no processo de autoinvestigação de suas possibilidades, de seus desejos, de seus motivos, de suas necessidades, etc. E a expectativa – ou pelo menos o objetivo – é de que o paciente se tornará então progressivamente mais capaz de tomar por si mesmo decisões progressivamente mais centradas e mais coerentes tanto com realidades externas como internas, sejam quais forem. Parece bastante razoável.

Só que em primeiro lugar, é uma ficção total esperar ou mesmo sugerir que o terapeuta não tenha, sim, uma – forte – opinião sobre o que o paciente deveria fazer, e é uma ficção em cima dessa ficção achar que seja possível esconder essa opinião. Aliás, muito pelo contrário – ao buscar reprimir ou ocultar sua própria opinião sobre o que o paciente deveria fazer, o terapeuta passará a expressar seus sentimentos e julgamentos sobre o assunto de forma subliminar e o resultado será um “diálogo” manipulativo e farsesco, no qual os – indeléveis e indisfarçáveis – estados mentais do terapeuta permanecerão ostensivamente presentes como subtexto que contorna o senso crítico sem que jamais o paciente tenha uma oportunidade honesta de desafiá-los abertamente. Inclusive na maior parte das vezes o paciente, em busca da aprovação do terapeuta, articulará tais idéias jamais verbalizadas pelo terapeuta como sendo suas próprias, grande parte das vezes acreditando sinceramente que o sejam.

Por um lado, de fato esse fenômeno pode ser usado como “ferramenta terapêutica” para induzir pacientes a questionarem posições e estados mentais que jamais questionariam diante de um ataque direto, e a considerar idéias que parecem ameaçadores demais se apresentadas explicitamente. Por outro lado, quando induzimos qualquer um a desligar seu senso crítico e criamos uma situação na qual previsivelmente a busca de aprovação tornará o paciente vulnerável a dizer basicamente qualquer coisa, a autenticidade do processo como jornada de auto-descoberta se torna altamente questionável, e a distinção de pura e simples lavagem cerebral fica perigosamente nebulosa.

Mais muito pior e mais danoso do que ser uma ficção total que o terapeuta seja neutro é o próprio projeto – falhado que seja – de pretender ser “neutro”. Note-se, ao validar essencialmente *quaisquer* decisões que um paciente tome, desde que sejam “equilibradas”, desde que promovam o “bem-estar” do próprio paciente dentro dos limites do civilizadamente aceitável, estamos basicamente promovendo o mais profundo egoísmo. Sim, egoísmo civilizado e sofisticado e moderníssimo – mas egoísmo assim mesmo. Então se um homem diz “estou infeliz no meu casamento, vou deixar minha mulher e meus dois filhos e recomeçar minha vida sem o fardo de ter essas restrições a minha independência”, se uma filha diz “vou internar minha mãe num asilo porque está muito chato cuidar dela”, se uma esposa diz “meu marido perdeu o emprego e está muito deprimido, isso está muito incômodo, acho que vou dizer que estou saindo de casa”, todas essas proposições partem do princípio geral de que A FELICIDADE DOS OUTROS NÃO É MINHA RESPONSABILIDADE. Aceita-se a premissa de que prejudicar ativamente os outros não é civilizado, mas sair do seu caminho para proteger o bem estar dos outros já é pedir demais. Eles que cuidem de si mesmos. E o terapeuta acaba em muitas circunstâncias provendo precisamente a validação necessária para o paciente, sufocando protestos de sua própria consciência, introjetar essa atitude como saudável e positiva.

Ao que eu afirmo : essa posição é tão cheia de problemas éticos que se precisa de explicação a explicação provavelmente será inútil.

Para começar, genericamente, acreditar seriamente na idéia de que se não é sua culpa então não é seu problema demonstra sério retardamento moral.

Isso já seria perverso como ideologia adotada espontaneamente, mas ao incentivar dentro de uma relação de autoridade a noção de que seria um comportamento saudável e condutor ao equilíbrio emocional desligar-se do sentimento de que somos SIM éticamente responsáveis pela felicidade dos outros, o terapeuta dá permissão ao paciente para desconectar-se de sua humanidade, para caminhar essencialmente em direção à psicopatia, uma permissão que empiricamente – e não só nos experimentos de Milgram, mas em muitíssimo outros contextos, desde nazismo até inquisição – tem um enorme poder de transformar pessoas de outra forma decentes em robôs indiferentes diante das mais impressionantes manifestações de sofrimento humano. Então eu estar mencionando terapeutas aqui é quase acidental; é apenas a forma como isso ocorre em círculos abastados ocidentais pós-modernos. Qualquer figura de autoridade serviria potencialmente para produzir o mesmo efeito; apenas esta é uma que convencionamos aceitar como tal diante da falência da legitimidade de outras.

Agora, o tipo de terapeuta ao qual me refiro não para em advogar, por vezes até mesmo explicitamente, e com literalmente essas palavras, que “a felicidade dos outros não é sua responsabilidade”, como se fosse uma grande e profunda revelação mística. Uma à qual qualquer um vulnerável e confuso e em sofrimento muito facilmente sentirá grande tentação de se agarrar. Afinal, enxergar-se como moralmente implicado no bem estar e na felicidade de outros de fato é uma enorme responsabilidade. Só que a pergunta – originalmente e deliberadamente retórica – “por acaso sou guarda de meu irmão” é já em si mesma um triunfo de desonestidade. O grande alívio produzido por quem venha lhe dizer vindo de uma posição de autoridade que a resposta poderia ser “não, você não é” explora o medo e as fragilidades emocionais de um ser humano em sofrimento da forma mais vil. Essa arquetípica situação nos remete à cena crucial de “A Última Tentação de Cristo” em que ele, pregado na cruz, sofrendo absurdamente, e agonizante, diz “Meu pai, por que me abandonaste?”… para então ver descer do céu um anjo que diz “Você já sofreu o suficiente, já fez o seu trabalho… não precisa seguir adiante, desça da cruz, vai ficar tudo bem…” E Cristo, confuso, em choque, mas imensamente aliviado, desce da cruz e vive uma existência vazia de significado na qual assiste tudo aquilo por que lutou desmoronar em pedaços. E eventualmente, prestes a morrer de velhice, percebe que traiu a si mesmo e à sua consciência, e que o suposto anjo era o demônio (o qual evidentemente é muito mais sedutor vestido de anjo e pregando que ao fazermos o que nós é conveniente estaremos fazendo a coisa certa).

Não, o tipo de terapeuta ao qual me refiro não para em simplesmente promover essa atitude psiquicamente desestruturante na qual pessoas basicamente saudáveis são encorajadas a agirem psicopaticamente, a acreditarem que o mais fácil e conveniente e superficialmente vantajoso para elas mesmas seria o saudável e correto. Não, junto com as idéias fornecem-se alguns mecanismos mentais para justificar e sustentar essa charada, dado que qualquer pessoa normal sente um instintivo desconforto com a idéia de que a felicidade dos outros não seria sua responsabilidade. Buscar “superar” e “desconstruir” e renegar esse desconforto como simplesmente neurótico e pouco saudável é um objetivo perverso que porém infelizmente parece ser um dos grandes triunfos da “modernidade”.

E então como sustentáculo dessa perversidade promovem-se noções como a de que apelar para a empatia, os sentimentos, a humanidade dos outros seria intrinsecamente desonesto e inaceitável. Que seria no pior caso hipócrita e mentiroso, e no melhor caso possível, de extremo mau gosto e manipulativo. Que olhar para alguém e dizer “Mas você não vê o quanto está me magoando?” não só não serviria como argumento como denotaria uma tentativa do interlocutor de usar contra você os seus próprios neuróticos e indesejáveis sentimentos de responsabilidade pela felicidade alheia. “Como você ousa me fazer sentir mal por minhas ações causarem o seu sofrimento?!” O truque de prestidigitação ética é desqualificar automaticamente qualquer apelo à sua consciência como chantagem emocional.

Claro, alguém que de fato invente motivos delirantes para se sentir ofendido ou magoado pelas mais inócuas ações alheias, ou que se coloque deliberadamente em posição autovitimizante imaginada ou real, e então venha tentar usar isso como forma de instigar sentimentos injustos de culpa e responsabilidade nos outros está de fato abusando da compaixão alheia. Mas em muitos outros casos o sofrimento dos outros é real e a responsabilidade não é uma fabricação. Se você encoraja alguém, digamos, a largar seu emprego e se mudar para o Alasca para casar com você e aí quando você chega lá a pessoa diz “Ah, sinto muito, mudei de idéia, a gente se vê por aí, valeu? Vai embora e não enche o saco.”, exclamar diante disso “Peraí, isso não é razoável, você não vê a posição em que está me colocando?” não é uma reação imatura, ou manipulativa, ou inadequada, muito pelo contrário.

Além disso, embora seja perfeitamente legítimo considerarmos nossos próprios interesses como crucialmente importantes, existe aí uma medida e uma escala. Se os seus menores e mais fúteis interesses consistentemente se sobrepõem aos mais profundos e essenciais interesses alheios, sinto informar, mas você é um psicopata. A idéia de que os seus próprios interesses em quaisquer circunstâncias tenham total precedência sobre quaisquer interesses alheios torna qualquer noção de responsabilidade ética risível. Na verdade, diria eu, o fundamento mais essencial de qualquer ética que eu considere não perversa está precisamente no principio de que seu próprio bem estar *não* tem precedência sobre quaisquer outras considerações.

Então por mais que apelos à consciência e à solidariedade e à sua responsabilidade com o bem estar alheio de fato se prestem a farsas e manipulação, querer classificá-los em bloco – especialmente quando você está diretamente implicado – como “chantagem emocional”, isso sim é que é no mínimo hipócrita e no pior caso psicopático. E querer reprimir em si mesmo os próprios sentimentos espontâneos de solidariedade como neuróticos, e comprar a idéia de encarar qualquer tentativa de suscitá-los como manipulativa, tudo isso leva ao mais destrutivo egocentrismo solipsista. O qual, por outro lado, naturalmente, não só não é logicamente incompatível com a felicidade pessoal, mas mesmo que fosse, este seria um argumento meramente utilitário. Então, no final das contas, como sempre, é uma escolha. É uma escolha sobre que tipo de pessoa você quer ser, e que tipo de universo você quer ajudar a construir.

Fonte: http://www.oindividuo.org/2011/06/28/chantagem-emocional/