terça-feira, 3 de março de 2015

Paradoxo

Entro em casa já cansada e abro a porta com cuidado, aos poucos. Vou à cozinha a olho a lavanderia, não sei bem por que. Quando saio do meu quarto, ainda fecho a porta, para ele não ir lá “marcar território” em meu travesseiro. Ele não está mais lá e ainda faço tudo automaticamente. Paradoxo: ninguém é culpado e todos somos. Tragédia. Situação terrível e sem culpados. São em situações limite que demonstramos quem realmente somos. E percebi que podemos ser muito feios nessas situações. Eu recebi o telefonema e a noticia: uma criança ferozmente mordida pelo cachorro em minha casa. Medo. E depois, culpar. Raiva. Em uma situação difícil e a pessoa ainda está calma, é por que ela já tem a quem culpar, dizia uma professora minha. E foi o que fiz. Eu quis a morte do cachorro. Que tanto gostei. E o olhava na janela trancado no quarto do meu filho, com sua língua para fora e olhar doce e não conseguia ligar à narração de horror que ouvia e que ocorreu algumas horas antes. E a criança também tão doce, vítima de tudo. Uma esquizofrenia momentânea. Quando o pensamento parece pedaços de retalhos desconexos. E ela demorava a chegar. Demorava... Quanto mais ela demorava, mais eu a culpava. Por demorar. Por não atender ao telefone. Por eu estar só e com medo ali. E assim que chegou, eu a culpei. Pelo meu medo. Disse que queria a morte de seu companheiro fiel de quatro patas. E nos atacamos. Como duas estranhas. E não como irmãs. Tínhamos rapidez em achar os culpados para o que não é possível culpar. Passadas algumas horas, percebemos a cegueira. Mas com quantos paradoxos nos deparamos em nossas vidas sem nunca percebê-los? Meu tribunal é maior que um estádio. E em quantos tribunais nós somos os réus dos erros que não existem? Talvez a culpa seja pura ideologia. E o que temos é somente Paradoxo. Cachorros dóceis que atacam crianças dóceis sob a supervisão de irmãs que se amam e ainda assim se atacam quando mais precisariam se abraçar. Talvez a vida seja isso.