segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Bora prosear?

Quando entrei no curso de Letras e iniciei os meus estudos em teoria literária, uma das primeiras coisas que aprendi é que o “como” eu digo um conteúdo já carrega em si o significado deste. A estrutura de uma idéia já é ela mesma uma idéia. Se isso fosse um texto acadêmico quem sabe eu tivesse de definir a partir desse ponto os pressupostos que abrem essa reflexão, como, qual é a minha concepção de idéia, de estrutura textual etc.

Mas para tanto, eu teria de fazer deste texto, um artigo acadêmico o que não é o meu propósito. O que aqui tentarei defender através do relato do que considero um grande defeito meu, e na cola do texto da Tiburi, “Conversar é uma forma de amar”, é o completo desleixo como estabeleço contato com as pessoas.   

Apesar de o conceito de “entrar na bolha” ter sido cunhado há pouco tempo por meus amigos da Lingüística, já não é de agora que moro em minha redoma de vidro. Há um tempo atrás, coloquei em um de meus relatos a minha terrível mania em esconder o que sinto e o que sei, me desqualificando em um “achismo” que enclausurava (ou ainda enclausura?) os meus quereres e, principalmente, os meus saberes, dentro do rótulo da mediocridade. Pois bem, desta vez partirei de uma outra perspectiva: quando eu esqueço de meu aprendizado de início de curso e irresponsavelmente faço uso de minhas palavras e de meu silêncio. O aborto do saber alheio por meio de minha intolerância.

O que dá a coerência e que conduzirá os argumentos nesse rascunho de reflexão é o destaque que faço ao modus operante de minha intolerância: o “como” materializo o incômodo das idéias alheias. Ora, ora! Colocado assim, parece uma contradição. Poderia pensar inclusive em um agravamento da idéia que já havia colocado em meu texto anterior: não digo o que sei, por pensar que nada sei e não ouço o que me dizem por também pensar que ninguém mais saiba! Mas veja: se eu subir só mais um grau na barra da discussão, quem sabe, não o seja. O que gostaria de apontar é a falta de reflexão e a intolerância como legitimo o conteúdo e o modo dos discursos “aceitáveis” e, consequentemente, as pessoas que produzem esses discursos. 

Houve dois fatos que me fizeram parar para pensar em minha “deslexia” em construir diálogos. O primeiro: observar pessoas que sabem conversar. Quais seriam? Irei apontar duas: minha tia Railda e meu amigo Renilson. Sabe por que os escolhi? Porque quando dialogam, prestam atenção no que o outro diz e mesmo que o seu interlocutor esteja a falar a maior das bobozeiras, sabem aproveitar o assunto para algo interessante. Por que sabem contar histórias e não precisam estar a todo o momento fazendo análises sociológicas, psicológicas e outros “ógicas” que existam por aí. Não defendo aqui a passividade como o caminho para a construção de boas relações e de bons diálogos. Não é isso. Mas partirei do seguinte principio: não temos mais paciência de conversar. Creio que aprendemos novas formas de conversa, mas, ou a restringimos ao exercício solitário e impessoal da leitura e da escrita, seja em blogs ou salas de bate-papo, ou a um exercício analítico em que exclusivamente postulamos valores ou exercitamos nossa vaidade retórica. O segundo fato e que foi decisivo: o teor combativo como TRAVO conversa (sim, porque minhas falas parecem as realizadas em uma guerra, ou uma arena) com algumas das pessoas que dialogo. É a impressão cada vez nítida da nossa (sim, pois percebo que não é uma característica que se restringe a mim!) falta de interesse com em ouvir e contribuir com o que as pessoas têm a nos contar o que me trouxe de volta a esse espaço.

E se eu começasse uma fala assim: quando eu era pequena, morava em um bairro da zona Leste de São Paulo, chamado São Miguel Paulista. Lá, estudei em uma escola pertinho de casa, o Carlos Gomes, há duas quadras de casa de mamãe. Àquela época, não havia tele transporte e tinha de ir a pé para a escola, com meu tênis all star azul e meu uniforme preto, com uma listra em vinho...? Como meu ouvinte reagiria? Provavelmente, com um “hum hum” bem educado e um enfastio enorme em seu interior. Mas é esse mesmo interlocutor quem vai a um blog ler por horas a rotina do primeiro estranho aparentemente interessante que o google o indique na internet. Isso porque nos relacionamos não com outras pessoas, volúveis, mutantes, defeituosas e cujas qualidades estão dissolvidas na rotina. Relacionamos-nos com pressupostos. Pressupostos fixos, o que é ainda pior. O outro é. E se gosta de mim, é como eu, ou o que eu gostaria que fosse. Se não, é o que é e sempre será: alguém que essencialmente por já ser o que eu não gosto que seja, obviamente, não poderá ter nada a dizer que não seja merda.  Ora! E ainda complemento o raciocínio: mas nem era preciso falar, era óbvio!!! Além disso, carrego na manga a desculpa para aqueles momentos em que a consciência resolve doer: eu gostaria de ter dado mais atenção, mas será que não entendem que EU não tinha tempo?! 

Ok, ok! Uma fala descontextualizada pode ser tão inútil quanto um noticiário de páginas da secção policial. E, além do que, poder-se-ia argumentar que vivemos na sociedade da fofoca. Mas não é a esse tipo de preenchimento de palavras a que me refiro. A minha reflexão visa criticar as obviedades não óbvias que pressupomos em nossa bolha de egoísmo, a preguiça em explicar, a impaciência em ouvir, o silêncio de corpos que foram feitos para se comunicarem, para DIALOGAREM, ou mesmo, aquelas conversas vazias, preenchimento inútil dos silêncios necessários, características que permeiam e emolduram diversas das relações afetivas que conheço, inclusive, as minhas relações.

Por apostar demais em uma certeza, ou pelo medo em invadir um espaço que, por infantilidade, atribuímos restritamente ao nosso interlocutor, abafamos de nossas idéias com uma agressividade que consideramos legitima a voz de muitas das pessoas que mantemos (ou deveríamos manter) DIálogo. Silencio o outro dentro de meu próprio silêncio, em minha desatenção e em meu esquecimento. Desqualifico opiniões que me desagradam e, nem ao menos, me dou ao trabalho de separar o joio do trigo.

A conseqüência (ou seria a causa?), creio, esteja no desrespeito à história de vida que cada um carrega no bojo de sua existência, da história de seus pressupostos, o desrespeito às pessoas que o influenciaram, muitas vezes por amor, a completa desqualificação do processo de formação de sua moral.

O que eu penso ser um grande defeito meu, mas não somente meu é a desatenção com que digerimos as experiências alheias e as nossas experiências. Quem sabe ainda precisemos aprender com os mais velhos, os da época de minha avó, que agachavam em frente à porta para trocar um dedinho de prosa. Simplesmente. Sem sublimação e teatralização teórica. Simplesmente uma boa prosa...

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

“Mulheres são as que mais sofrem"

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Eric Beauchemin e Daniela Stefano

Valdênia Paulino nasceu em 1967 e conhece de perto a realidade das periferias brasileiras. A família dela, oriunda do estado de Minas Gerais, migrou para uma favela em São Paulo em busca de trabalho e melhores condições de vida.

Apesar das dificuldades, Valdênia conseguiu estudar e aos 14 anos já alfabetizava outras crianças. Aos 17 organizou uma casa para ajudar as mulheres que queriam sair da prostituição.

A violência contra a mulher é o foco do trabalho da defensora de direitos humanos que, anos mais tarde, percebeu que a formação como pedagoga não era suficiente para ajudar a comunidade. Formou-se em direito e como advogada do Centro de Direitos Humanos de Sapopemba diz que a sua luta é enfocada na mulher por ser quem mais sofre as conseqüências da violência na periferia:

"A Anistia Internacional retrata o quanto as mulheres, as mães em particular, estão ficando doentes mentais por causa da violência. Não há, no sistema de saúde, uma atenção para essas mulheres."

De acordo com Paulino, a violação dos direitos das mulheres não é uma preocupação das autoridades brasileiras:

"As autoridades estão sempre preocupadas contra a violência, mas é a violência contra o patrimônio. Sempre falam dos garotos, que roubam carros etc, mas nunca falam das garotas que são abusadas na rede de prostituição. A violência contra a mulher não aparece por não ser patrimonial."

Uma das causas da violência na periferia, segundo ela, é a falta de instituições do Estado. Paulino afirma que a polícia é única presença do Estado na favela, o que não garante a inclusão social e ainda gera mais violência.

"Em Sapopemba era muito comum que a polícia adaptasse alto-falante em cima do carro e enquanto tocava música clássica para a população ouvir, (os policiais) abusavam sexualmente das mulheres e executavam jovens."

Papel da mulher
Valdênia Paulino atua também no Cedeca Mônica Paixão, o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Um dos trabalhos do Cedeca é o de despertar nas mulheres, jovens e crianças de muitas favelas de São Paulo a consciência de que possuem direitos, que estão no papel, mas que precisam ser colocados em prática. Para a ativista dos direitos humanos, as mulheres ocupam um papel importante na comunidade empobrecida:

"É ela quem fica com os filhos quando a situação chega no limite, os homens escapam e as mulheres permanecem. São elas que estão nos movimentos sociais. Trabalhar com a jovem e mulher adulta é importante. Elas quem são responsáveis pela educação dos filhos."

Ainda que o trabalho desenvolvido por Valdênia a tenha tornado conhecida como defensora dos direitos humanos, as ameaças de morte, tanto por parte da polícia como por parte de criminosos, a obrigaram a deixar o Brasil. Valdênia pretende voltar ao país e continuar suas atividades no nordeste.

Noticia publicada no site da rádio Nederland no dia 4 de setembro de 2008.
http://www.parceria.nl/direitoshumanos/20080904-dh-valdenia

Valdênia Paulino esteve na Holanda a convite da Anistia Internacional. Ouça a entrevista completa concedida por ela a Eric Beauchemin (30'56):

http://content70b.omroep.nl/edd3e48cd334fb4079759cfdc3cc6602/48ff337c/08/rnw/smac/cms/por_valdenia_20080904_44_1kHz.mp3

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

A crise do capitalismo e a importância atual de Marx

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Marcello Musto - Sin Permiso

Em entrevista a Marcello Musto, o historiador Eric Hobsbawm analisa a atualidade da obra de Marx e o renovado interesse que vem despertando nos últimos anos, mais ainda agora após a nova crise de Wall Street. E fala sobre a necessidade de voltar a ler o pensador alemão: "Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista".
Eric Hobsbawm é considerado um dos maiores historiadores vivos. É presidente do Birbeck College (London University) e professor emérito da New School for Social Research (Nova Iorque). Entre suas muitas obras, encontra-se a trilogia acerca do "longo século XIX": "A Era da Revolução: Europa 1789-1848" (1962); "A Era do Capital: 1848-1874" (1975); "A Era do Império: 1875-1914 (1987) e o livro "A Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991 (1994), todos traduzidos em vários idiomas. Entrevistamos o historiador por ocasião da publicação do livro "Karl Marx's Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later" (Os Manuscritos de Karl Marx. Elementos fundamentais para a Crítica da Economia Política, 150 anos depois).

Nesta conversa, abordamos o renovado interesse que os escritos de Marx vêm despertando nos últimos anos e mais ainda agora após a nova crise de Wall Street. Nosso colaborador Marcello Musto entrevistou Hobsbawm para Sin Permiso.

Marcello Musto: Professor Hobsbawm, duas décadas depois de 1989, quando foi apressadamente relegado ao esquecimento, Karl Marx regressou ao centro das atenções. Livre do papel de intrumentum regni que lhe foi atribuído na União Soviética e das ataduras do "marxismo-leninismo", não só tem recebido atenção intelectual pela nova publicação de sua obra, como também tem sido objeto de crescente interesse. Em 2003, a revista francesa Nouvel Observateur dedicou um número especial a Marx, com um título provocador: "O pensador do terceiro milênio?". Um ano depois, na Alemanha, em uma pesquisa organizada pela companhia de televisão ZDF para estabelecer quem eram os alemães mais importantes de todos os tempos, mais de 500 mil espectadores votaram em Karl Marx, que obteve o terceiro lugar na classificação geral e o primeiro na categoria de "relevância atual". Em 2005, o semanário alemão Der Spiegel publicou uma matéria especial que tinha como título "Ein Gespenst Kehrt zurük" (A volta de um espectro), enquanto os ouvintes do programa "In Our Time" da rádio 4, da BBC, votavam em Marx como o maior filósofo de todos os tempos. Em uma conversa com Jacques Attali, recentemente publicada, você disse que, paradoxalmente, "são os capitalistas, mais que outros, que estão redescobrindo Marx" e falou também de seu assombro ao ouvir da boca do homem de negócios e político liberal, George Soros, a seguinte frase: "Ando lendo Marx e há muitas coisas interessantes no que ele diz". Ainda que seja débil e mesmo vago, quais são as razões para esse renascimento de Marx? É possível que sua obra seja considerada como de interesse só de especialistas e intelectuais, para ser apresentada em cursos universitários como um grande clássico do pensamento moderno que não deveria ser esquecido? Ou poderá surgir no futuro uma nova "demanda de Marx", do ponto de vista político?

Eric Hobsbawm: Há um indiscutível renascimento do interesse público por Marx no mundo capitalista, com exceção, provavelmente, dos novos membros da União Européia, do leste europeu. Este renascimento foi provavelmente acelerado pelo fato de que o 150° aniversário da publicação do Manifesto Comunista coincidiu com uma crise econômica internacional particularmente dramática em um período de uma ultra-rápida globalização do livre-mercado.
Marx previu a natureza da economia mundial no início do século XXI, com base na análise da "sociedade burguesa", cento e cinqüenta anos antes. Não é surpreendente que os capitalistas inteligentes, especialmente no setor financeiro globalizado, fiquem impressionados com Marx, já que eles são necessariamente mais conscientes que outros sobre a natureza e as instabilidades da economia capitalista na qual eles operam.
A maioria da esquerda intelectual já não sabe o que fazer com Marx. Ela foi desmoralizada pelo colapso do projeto social-democrata na maioria dos estados do Atlântico Norte, nos anos 1980, e pela conversão massiva dos governos nacionais à ideologia do livre mercado, assim como pelo colapso dos sistemas políticos e econômicos que afirmavam ser inspirados por Marx e Lênin. Os assim chamados "novos movimentos sociais", como o feminismo, tampouco tiveram uma conexão lógica com o anti-capitalismpo (ainda que, individualmente, muitos de seus membros possam estar alinhados com ele) ou questionaram a crença no progresso sem fim do controle humano sobre a natureza que tanto o capitalismo como o socialismo tradicional compartilharam. Ao mesmo tempo, o "proletariado", dividido e diminuído, deixou de ser crível como agente histórico da transformação social preconizada por Marx.
Devemos levar em conta também que, desde 1968, os mais proeminentes movimentos radicais preferiram a ação direta não necessariamente baseada em muitas leituras e análises teóricas. Claro, isso não significa que Marx tenha deixado de ser considerado como um grande clássico e pensador, ainda que, por razões políticas, especialmente em países como França e Itália, que já tiveram poderosos Partidos Comunistas, tenha havido uma apaixonada ofensiva intelectual contra Marx e as análises marxistas, que provavelmente atingiu seu ápice nos anos oitenta e noventa. Há sinais agora de que a água retomará seu nível.

Marcello Musto: Ao longo de sua vida, Marx foi um agudo e incansável investigador, que percebeu e analisou melhor do que ninguém em seu tempo o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial. Ele entendeu que o nascimento de uma economia internacional globalizada era inerente ao modo capitalista de produção e previu que este processo geraria não somente o crescimento e prosperidade alardeados por políticos e teóricos liberais, mas também violentos conflitos, crises econômicas e injustiça social generalizada. Na última década, vimos a crise financeira do leste asiático, que começou no verão de 1997; a crise econômica Argentina de 1999-2002 e, sobretudo, a crise dos empréstimos hipotecários que começou nos Estados Unidos em 2006 e agora tornou-se a maior crise financeira do pós-guerra. É correto dizer, então, que o retorno do interesse pela obra de Marx está baseado na crise da sociedade capitalista e na capacidade dele ajudar a explicar as profundas contradições do mundo atual?

Eric Hobsbawm: Se a política da esquerda no futuro será inspirada uma vez mais nas análises de Marx, como ocorreu com os velhos movimentos socialistas e comunistas, isso dependerá do que vai acontecer no mundo capitalista. Isso se aplica não somente a Marx, mas à esquerda considerada como um projeto e uma ideologia política coerente. Posto que, como você diz corretamente, a recuperação do interesse por Marx está consideravelmente – eu diria, principalmente – baseado na atual crise da sociedade capitalista, a perspectiva é mais promissora do que foi nos anos noventa. A atual crise financeira mundial, que pode transformar-se em uma grande depressão econômica nos EUA, dramatiza o fracasso da teologia do livre mercado global descontrolado e obriga, inclusive o governo norte-americano, a escolher ações públicas esquecidas desde os anos trinta.
As pressões políticas já estão debilitando o compromisso dos governos neoliberais em torno de uma globalização descontrolada, ilimitada e desregulada. Em alguns casos, como a China, as vastas desigualdades e injustiças causadas por uma transição geral a uma economia de livre mercado, já coloca problemas importantes para a estabilidade social e mesmo dúvidas nos altos escalões de governo. É claro que qualquer "retorno a Marx" será essencialmente um retorno à análise de Marx sobre o capitalismo e seu lugar na evolução histórica da humanidade – incluindo, sobretudo, suas análises sobre a instabilidade central do desenvolvimento capitalista que procede por meio de crises econômicas auto-geradas com dimensões políticas e sociais. Nenhum marxista poderia acreditar que, como argumentaram os ideólogos neoliberais em 1989, o capitalismo liberal havia triunfado para sempre, que a história tinha chegado ao fim ou que qualquer sistema de relações humanas possa ser definitivo para todo o sempre.

Marcello Musto: Você não acha que, se as forças políticas e intelectuais da esquerda internacional, que se questionam sobre o que poderia ser o socialismo do século XXI, renunciarem às idéias de Marx, estarão perdendo um guia fundamental para o exame e a transformação da realidade atual?

Eric Hobsbawm: Nenhum socialista pode renunciar às idéias de Marx, na medida que sua crença em que o capitalismo deve ser sucedido por outra forma de sociedade está baseada, não na esperança ou na vontade, mas sim em uma análise séria do desenvolvimento histórico, particularmente da era capitalista. Sua previsão de que o capitalismo seria substituído por um sistema administrado ou planejado socialmente parece razoável, ainda que certamente ele tenha subestimado os elementos de mercado que sobreviveriam em algum sistema pós-capitalista. Considerando que Marx, deliberadamente, absteve-se de especular acerca do futuro, não pode ser responsabilizado pelas formas específicas em que as economias "socialistas" foram organizadas sob o chamado "socialismo realmente existente". Quanto aos objetivos do socialismo, Marx não foi o único pensador que queria uma sociedade sem exploração e alienação, em que os seres humanos pudessem realizar plenamente suas potencialidades, mas foi o que expressou essa idéia com maior força e suas palavras mantêm seu poder de inspiração.No entanto, Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, autoritariamente ou de outra maneira, nem como descrições de uma situação real do mundo capitalista de hoje, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista. Tampouco podemos ou devemos esquecer que ele não conseguiu realizar uma apresentação bem planejada, coerente e completa de suas idéias, apesar das tentativas de Engels e outros de construir, a partir dos manuscritos de Marx, um volume II e III de "O Capital". Como mostram os "Grundrisse", aliás. Inclusive, um Capital completo teria conformado apenas uma parte do próprio plano original de Marx, talvez excessivamente ambicioso. Por outro lado, Marx não regressará à esquerda até que a tendência atual entre os ativistas radicais de converter o anti-capitalismo em anti-globalização seja abandonada. A globalização existe e, salvo um colapso da sociedade humana, é irreversível. Marx reconheceu isso como um fato e, como um internacionalista, deu as boas vindas, teoricamente. O que ele criticou e o que nós devemos criticar é o tipo de globalização produzida pelo capitalismo.

Marcello Musto: Um dos escritos de Marx que suscitaram o maior interesse entre os novos leitores e comentadores são os "Grundrisse". Escritos entre 1857 e 1858, os "Grundrisse" são o primeiro rascunho da crítica da economia política de Marx e, portanto, também o trabalho inicial preparatório do Capital, contendo numerosas reflexões sobre temas que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte de sua criação inacabada. Por que, em sua opinião, estes manuscritos da obra de Marx, continuam provocando mais debate que qualquer outro texto, apesar do fato dele tê-los escrito somente para resumir os fundamentos de sua crítica da economia política? Qual é a razão de seu persistente interesse?

Eric Hobsbawm: Desde o meu ponto de vista, os "Grundrisse" provocaram um impacto internacional tão grande na cena marxista intelectual por duas razões relacionadas. Eles permaneceram virtualmente não publicados antes dos anos cinqüenta e, como você diz, contendo uma massa de reflexões sobre assuntos que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte. Não fizeram parte do largamente dogmatizado corpus do marxismo ortodoxo no mundo do socialismo soviético. Mas não podiam simplesmente ser descartados. Puderam, portanto, ser usados por marxistas que queriam criticar ortodoxamente ou ampliar o alcance da análise marxista mediante o apelo a um texto que não podia ser acusado de herético ou anti-marxista. Assim, as edições dos anos setenta e oitenta, antes da queda do Muro de Berlim, seguiram provocando debate, fundamentalmente porque nestes escritos Marx coloca problemas importantes que não foram considerados no "Capital", como por exemplo as questões assinaladas em meu prefácio ao volume de ensaios que você organizou (Karl Marx's Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later, editado por M. Musto, Londres-Nueva York, Routledge, 2008).

Marcello Musto: No prefácio deste livro, escrito por vários especialistas internacionais para comemorar o 150° aniversário de sua composição, você escreveu: "Talvez este seja o momento correto para retornar ao estudo dos "Grundrisse", menos constrangidos pelas considerações temporais das políticas de esquerda entre a denúncia de Stalin, feita por Nikita Khruschev, e a queda de Mikhail Gorbachev". Além disso, para destacar o enorme valor deste texto, você diz que os "Grundrisse" "trazem análise e compreensão, por exemplo, da tecnologia, o que leva o tratamento de Marx do capitalismo para além do século XIX, para a era de uma sociedade onde a produção não requer já mão-de-obra massiva, para a era da automatização, do potencial de tempo livre e das transformações do fenômeno da alienação sob tais circunstâncias. Este é o único texto que vai, de alguma maneira, mais além dos próprios indícios do futuro comunista apontados por Marx na "Ideologia Alemã". Em poucas palavras, esse texto tem sido descrito corretamente como o pensamento de Marx em toda sua riqueza. Assim, qual poderia ser o resultado da releitura dos "Grundrisse" hoje?

Eric Hobsbawm: Não há, provavelmente, mais do que um punhado de editores e tradutores que tenham tido um pleno conhecimento desta grande e notoriamente difícil massa de textos. Mas uma releitura ou leitura deles hoje pode ajudar-nos a repensar Marx: a distinguir o geral na análise do capitalismo de Marx daquilo que foi específico da situação da sociedade burguesa na metade do século XIX. Não podemos prever que conclusões podem surgir desta análise. Provavelmente, somente podemos dizer que certamente não levarão a acordos unânimes.

Marcello Musto: Para terminar, uma pergunta final. Por que é importante ler Marx hoje?

Eric Hobsbawm: Para qualquer interessado nas idéias, seja um estudante universitário ou não, é patentemente claro que Marx é e permanecerá sendo uma das grandes mentes filosóficas, um dos grandes analistas econômicos do século XIX e, em sua máxima expressão, um mestre de uma prosa apaixonada. Também é importante ler Marx porque o mundo no qual vivemos hoje não pode ser entendido sem levar em conta a influência que os escritos deste homem tiveram sobre o século XX. E, finalmente, deveria ser lido porque, como ele mesmo escreveu, o mundo não pode ser transformado de maneira efetiva se não for entendido. Marx permanece sendo um soberbo pensador para a compreensão do mundo e dos problemas que devemos enfrentar.


Tradução para Sin Permiso (inglês-espanhol): Gabriel Vargas Lozano
Tradução para Carta Maior (espanhol-português): Marco Aurélio Weissheimer

Recebi o texto por e-mail, mas a fonte é: Site da Carta Maior http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15253&boletim_id=461&componente_id=8222

Ver original em: http://www.sinpermiso.info/