quinta-feira, 31 de julho de 2008

[...]toda crítica de arte deve ser uma obra de arte...

Rating:★★★★★
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Por Márcia Tiburi

Fui ver Para Crianças de Ontem, Hoje e Amanhã de Pina Bausch. Os porto-alegrenses tiveram a mesma oportunidade no Porto Alegre em Cena há poucos dias. Assisti também Dínamo de Deborah Colker.

Por que escrever sobre o espetáculo de Bausch e Colker e não sobre artes plásticas? Para dar uma respirada, ora, qualquer um pode alegar. Depois a gente conversa sobre estas separações que levam apenas ao bem das disciplinas. Quem sabe um dia seja possível parar de usar o disciplinar – nome do controle - em nome da anarquia do pensamento. Anarquia pode ser algo bom, sobretudo quando se opõe à disciplina que nos enrijece e emudece os especialistas entre si. O especialista é alguém que se afoga solitário no seu conhecimento. Uma mãozinha viria bem.

O que me faz escrever não é a necessidade de uma exegese das artes (mais chatas – chatice é, às vezes, uma bem-vinda categoria filosófica - do que análises hiper especializadas são as nada-especializadas e, infelizmente, eu não sou especialista no assunto) que alguns sabem fazer muito bem (ainda precisamos de mais críticos neste país colonizado), mas a urgência do testemunho sobre a beleza das coisas. Aquilo que Walter Benjamin escreveu em seu texto sobre O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão e que é algo que ainda pode ser bem aceito: toda crítica de arte deve ser uma obra de arte (teoria como poesia sobre o poético que compõe a obra de arte?). Hoje me toca mais o que é belo (não digo bonito porque lembro de filósofos antigos fazendo a diferença entre o belo inaplicado e verdadeiro e o aplicado ou útil) do que o que é conceitual porque o que tem coragem de ser bonito nas artes em dias como os de hoje já passou pelo conceitual, já se elaborou e reelaborou. O que é útil é útil; outra conversa. O que é belo parece ter consciência (um saber representado na obra ou na pessoa) de seu fim, de que algo nele já passou e se encaminha para outras veredas. O belo nas coisas é uma certa consciência da passagem, um vislumbre dos limites e de que é possível encontrar verdades dentro deles. Como isso se representa nas coisas: quando elas rompem com a seriedade.

Além de belos (sim...) os espetáculos das coreógrafas são divertidos. Bons para rir, bons para alegrar os olhos. Colker é a alegria revolucionária do corpo em todas as suas mobilidades possíveis e os riscos desta mobilidade. Virtuosismo e coragem, habilidade e liberdade dão de sobra no seu cenário. A obra de Colker é incontestável até aqui. Tomara que, se ela realmente for ao Cirque du Soleil, possa embutir arte na pasteurização para a qual o circo se encaminha. De qualquer forma que a alegria seja permitida, possível, fomentada, é algo que todos devíamos aplaudir.

O espetáculo de Bausch é, além disso, gracioso. Há uma cena lembrada por minha filha de 9 anos que gostou muito das 3 horas diante dos bailarinos e suas peripécias: uma bailarina com os braços para trás finge usar os braços musculosos de outro bailarino que se oculta atrás de seu corpo. O efeito é o de uma mocinha de vestido vermelho com braços enormes se movimentando como em exibições de fisiculturismo. Ela se encarrega das caras e bocas. A platéia ri.

Talvez Bausch tenha conseguido mostrar o que é realmente infantil. Um espetáculo bem europeu, de uma Europa que já sente saudade de si, do que nela ainda há de diferente no resto do mundo: alegria, leveza, ludicidade. Confio que Bausch não quisesse mostrar a miséria e a fome de nossas crianças de hoje, ontem e amanhã porque espera que tenham melhor sorte.

Um riso bom, um riso sobre o muito bonito. Daqueles que lembram as trapalhadas das crianças. Riso que só os palhaços espertos sabem produzir. Um riso sobre as coisas que são delicadamente engraçadas e que, não sendo engraçadas, seriam ainda bem bonitas. Isentos de pornografia ou apelos aos sentidos. Não lembro da última vez que ri diante de algo que me fizesse rir por sua beleza, por sua delicadeza ou sofisticação. Raros são os que compreendem o riso como alegria, e esta como algo “elevado”. Elevado, entenda-se aqui como a depuração do simples (por favor, não confundam com a velha querela rançosa entre baixa e alta cultura, cultura de elite e de massa, indústria cultural). O riso, infelizmente, está cercado pelo humor da baixaria que é certamente um mau-humor. Mas nossa cultura não se dá conta disso.

A conquista da alegria é a maior que podemos ter em termos estéticos. A alegria é o grau máximo da beleza. O que é a beleza, entretanto, há que se responder ainda. Por enquanto só intuições nos fazem pensar.

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Artista da Imagem: Maurits Cornelis ESCHE

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Magnólia (Trecho)

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Marcia Tiburi
Madrugada

Desossar horas entre dedos

Fato 1. Duas gavetas fechadas. Não sei o que fazer com elas. Vou esperar as lembranças que vêm quando paramos no tempo.
Fato 1.1. Mapas. Um relógio de ponteiros parados. A chaleira de esmalte lascada no canto. Fotografias das bicicletas. Uma bicicleta. Tudo o que não foi usado está guardado no porão. Não há porão, só o espaço oco antes ocupado por minha memória. As gavetas.
Fato 1.2. O oco ocupa um vasto espaço.
Fato 1.3. Dentro do oco voam muitos pássaros e outros bichos de asas em meio à vertigem tormentosa dos objetos.
Fato 1.4. O gato está entre eles.
Fato 1.5. Magnólia ao lado do gato.
Fato 1.6. E manchas.

Escuridão

Tudo não passa de imaginação. Então é preciso saber o que se pode fazer com o mundo que insiste em ser real.

Os objetos, sobretudo os inúteis, têm um sentido e um gozo que tornam o resto da vida algo entre a falha e o risco no vazio. Prefiro-os aos seres humanos, aos artifícios, aos ofícios, aos saberes. Entendo-me com a natureza. A natureza, que se perceba, não passa de coisa, ainda que a coisa das coisas que ao ser coisa é, por força, o fundamento do mundo composto das coisas não mais que coisas e das coisas em si, das coisas de muitos modos ditas e das certamente esquecidas, das com lados, ângulos, seções, elementos, categorias, cores, temperaturas. Coisas há para confundir a qualquer um.

A fortiori.

Entendo-me com as coisas e, por isso, preciso colocá-las no lugar.

Tudo está disposto à confusão. O nada se diz de muitos modos e tenho só duas gavetas para dar cabo da questão.

Porém, como o nada é sorrateiro, diante dos sistemas e classificações quase evidentes, basta perceber, deve haver em algum lugar o abismo de olhos rígidos a pulsar prestes ao bote. Em uma das gavetas, é certo, mais que certo, um axioma, uma verdade das que tornam inerte a vida toda. É dele que vou falar mesmo sabendo que deveria calar.

Então, primeiro calo-me, mas não sei por quanto tempo. Um minuto, um segundo, um dia, um ano. Talvez o tempo exato do talvez que me alucina. E como há muitos modos de dizer o nada, e as duas gavetas e o sorrateiro abismo de olhos para o nada, existem os vários mundos e os modos de dizê-los, mas o que interessa aqui são os modos de não dizer e desdizer. Interessa amenizar a imaginação até que fique morta, pois tem me causado muita dor de cabeça. Direi para qualquer efeito de apenas dois dos mundos, o que se diz e o que se desdiz, a opção pela facilidade é sempre a mais sábia. E prestarei atenção em mim, antes do inventário dos feitos. Talvez em pouco tempo eu mude de idéia, pois a classificação tem um início, mas jamais tem limite.

Eu, pois e eu? Vivo sobre esta cadeira sem rodas. Já deixei de ser humana e virei coisa. Igualei-me ao ambiente. Não é difícil confundir o imóvel e o objeto. Mas classificar-me cansa como seguir Sócrates e seu conhece-te a ti mesmo.

Ninguém conhece a si mesmo.

Assim desosso as horas, ou, para evitar metáforas, espero.

Fato 2. Abro a primeira gaveta. Há um pacote de cartas amarelas.

Fato 2.1. As cartas são amarradas com um barbante sujo.
Fato 2.2. Penso duas vezes se abro ou não o pacote.
Fato 2.3. Não há endereço de remessa, nem remetente.
Fato 2.4. Não parece haver o que ler.
Fato 2.5. Aqui tudo pertencia a Magnólia. Agora talvez tudo me pertença.
Fato 2.6. Pena não haver tempo além das manchas.

Escuridão

Podemos empilhar o mundo no chão e tirar-lhe o pó de anos. Ora, não podemos saber se o pó é de anos, semanas, dias, não é possível interpretar os sinais, o a priori das conclusões sempre vem cheio de empáfia, por azar sempre existem cartas remetendo o tempo em letras. É preciso parar para ver.

Ou esquecer de vez, mas é impossível quando não houve lembrança.

É das cartas que vêm toda a dúvida sobre conhecer a si mesmo. Eu, porém, não tenho mais nenhuma dúvida, ainda que existam cartas e, como estas, tão incógnitas.

Se ninguém se conhece a si mesmo, pois esse é nosso maior problema, oportuno é procurar o próprio nada que sempre faz desistir de toda explicação. O nada é sempre guardado entre gavetas ou no fundo das xícaras onde se bebeu chá, café, nos cestos onde se deixou cair as folhas desusadas, os restos sujos de papel de bala. O nada reside nas coisas e somente elas podem oferecer o real desenho que faz de cada um ninguém.

Guardemos o nada para a hora inválida em que o todo inevitável fizer a verdade das verdades subir à tona decantando os avessos.

Quando houver tempo.

Para saber o nada basta olhar para minha cadeira sem rodas, o copo vazio, ouvir o miado do gato longe. Basta olhar-me. Não lembro dele. Lembrar jamais é fácil. Embora esquecer não passe tantas vezes de uma boa desculpa. Onde estou lembro apenas do cansaço como uma sensação que não se apaga e não diz mais do que o tempo indo em ondas camufladas.

Fonte: http://revistacriativa.globo.com/Criativa/0,19125,ETT1062738-4240,00.html
Fonte da imagem: http://croagfilliu.wordpress.com/2006/10/17/

terça-feira, 29 de julho de 2008

Boas maneiras & afins (I.L.Á.R.I.O!!!)

Rating:★★★★★
Category:Other
O Brasil muda com velocidade espantosa. Quem era ontem um reles ladravaz hoje é um pilar da boa sociedade. A velhota patusca que anteontem desfiava rosários para converter a Rússia vermelha agora está cheia de botox e pilota uma ONG incrementadíssima, que incluiu excluídos de todos os modelitos. Como se repaginar com elegância diante dessas mutações todas? É de bom-tom cobrar a propina antes de sair a licitação? Como demonstrar consciência social sem abdicar do esqui em Aspen? É chique chamar o Exército para servir cocaína numa festa evangélica íntima? Como engravidar do roqueiro sexagenário de passagem pelo Rio e arrumar um programa na TV? É melhor chantagear ou extorquir? Comprar a prazo ou vender a juros? O que fazer com um quadro pintado por José Sarney?

São perguntas de difícil resposta, sobretudo para quem pensa que dá no mesmo falar "para mim fazer" ou "para eu fazer". Foi para orientar o gentil leitor na selva dos novos costumes desses tempos sombrios que The piauí Herald, infatigável na sua missão civilizatória, recorreu aos préstimos do renomado etiquetólogo Rovélson Whitebotton. Nascido no sertão do simpático estado que dá nome a este magazine, o próprio Whitebotton - ou simplesmente Rô, como ele prefere - é um exemplo do caráter semovente da sociedade brasileira, e do que ela pode ensinar a quem estiver disposto a aprender. "Eu achava que resolvia tudo com a peixeira, quando é muito mais ameno e chique fazer amigos e influenciar pessoas", ele conta.

O nosso irrequieto especialista em bons modos foi antes assessor parlamentar, mexeu com moda, lançou projetos, teve um escritório de gerência de crises, tornou-se acadêmico e hoje lidera uma bem-orquestrada consultoria fashion. Seu caminho foi longo. Os percalços, imensos. Mas ele não esquece quem o ajudou. "Devo muito a minha amiga Glorinha Kalil, que me ensinou que ser chique dá um dinheirão, desde que não se esqueça de botar o preço na etiqueta".

DINHEIRO VELHO & DINHEIRO NOVO

Rovélson, meu velho,
Estava pilotando meu iate, em Ilhabela, quando, subitamente, ao dar mais um golinho no meu brüt, senti um ligeiro solavanco. Um marinheiro veio contar que havíamos abalroado um homem não identificado e sem espírito esportivo, que reclama sem parar. Devo socorrê-lo ou deixo por isso mesmo?
LOBO DO MAR DISTRAÍDO

Convém dar uma olhada, Distraído: o preço da elegância é a eterna vigilância. Traga o estraga-prazeres a bordo e pergunte-lhe o nome. Se ele se chamar Kleôncio, Elcione, Neucymar, Ônyx ou correlatos, avise: "Assim que terminar o passeio, direi a meu motorista para levá-lo a um posto de saúde." Garanta que, se ele recobrar o uso da mão (perna, antebraço), você o empregará como marinheiro da lancha, mas sem carteira assinada porque a vida está difícil. Se o nome dele for duplo - Luiz Gustavo, Carlos Alberto etc. -, interrompa o passeio e leve-o você mesmo a uma clínica particular. Mande uma caixa de Cohiba para o pai/padrasto e outra de chocolates Godiva para a mãe/madrasta. Peça para a secretária ligar de dois em dois dias. Na eventualidade de ele responder dando nome e sobrenome - Antonio Pederneiras Bulhões, Luciano Castro e Braga -, vá diretamente ao heliponto e, mesmo que ele tenha sofrido apenas uma leve escoriação no mindinho, levo-o para o Einstein. Caso ele diga que não é necessário, seja firme: "Insisto, e já mandei o jatinho pegar o Pitanguy."

*

Róv,
Depois de uma noitada alegre, convidei todo mundo a dar uma esticada em Angra. Chegando ao heliponto, me dei conta de que estávamos em vinte, e o meu Sikorsky S-92 só tem lugar para 19 pessoas. Voar espremido é feio, não?
PERPLEXO NO HANGAR

Feíssimo, Perplexo, nada mais feio que um Sikorsky S-92 superlotado. Mas não é uma situação incomum, dado o afluxo de emergentes e agregados. Minha sugestão
é que, discretamente, você aplique a minha famosa e eficaz tabelinha de pontos, aquela que embaralha cifrões com aparições na mídia. Quem tiver a menor pontuação é dispensado com uma desculpa educada, do tipo "o piloto tem alergia a seu perfume". Eis a tabela, para você recortar e guardar na sua carteira de crocodilo do Nilo:

TABELINHA piauí Herald DE PONTUAÇÃO SOCIAL

* É letra de música de Caetano Veloso: 20 pontos
* Foi mencionado por Caetano Veloso em entrevista: 13 pontos
* É Caetano Veloso: menos 2 pontos
* Paulo Coelho o chama pelo primeiro nome: 12 pontos
* Sabe de cor o telefone de Arnaldo Jabor: 10 pontos
* É jogador e foi pego com travestis num motel barato: 50 pontos
* Foi mencionado favoravelmente na The Economist: 40 pontos
* Criou uma ONG para inserção social de excluídos: 17 pontos
* Conseguiu com que o Exército reforme o seu curral: 12 pontos
* O presidente o chama de "companheiro": 70 pontos
* O presidente o chama de "aloprado": 85 pontos
* O presidente o chama de José Dirceu: 100 pontos
* Apareceu no último Big Brother: 6 pontos
* Apareceu na Globo News: 5 pontos
* Apareceu na TV Record: menos 5 pontos
* Apareceu no SBT: menos 8 pontos
* Namorou Adriane Galisteu: menos 2 pontos
* Tem um quadro de José Sarney: menos 5 pontos

Caro Rovélson,
Todo dia, a caminho do escritório, paro num sinal e um mulatinho pendura um saco de balas toffee no retrovisor. Nunca comprei, mas já faz três anos que esse ritual se repete e estou ficando sem jeito. Há solução?
ATÔNITO NO SINAL

De fato, trata-se de uma situação muito embaraçosa, Atônito. Mesmo blindado, o seu carro pode ser riscado: esses pivetes não têm o mínimo cuidado. Além do que, o pardo não combina bem com o prateado reluzente do teu novo SUV. No tempo dos nossos pais, o adequado seria atropelar o garoto e seguir em frente - o que renderia boas risadas no clube ("Foi bala perdida pra todo lado!"). Mas agora, nesses tempos difíceis de culpabilidade social, é mais delicado. Em todo caso, evite ceder, pois do contrário o ambulante passará os próximos dez anos com o rosto colado a seu vidro. É de bom-tom, portanto, dialogar. Tente usar uma das seguintes desculpas: "Meu vidro é blindado, não abaixa", "Acabei de voltar de viagem e só tenho libras esterlinas na carteira", "Balas toffee? É que eu não gosto muito. Olha, se você passar a vender saquinhos de Rhum caramel do Chocolatier Manon, de Bruxelas, eu juro que compro", "Meu guru holístico de Vail só permite balas toffee com chá de carqueja orgânico. Você vende?"

*

Tudo bem, Rovélson?
Como você bem sabe, detesto política. De-tes-to. Mamãe sempre dizia que política é bom só para o zé povinho. Mas hoje não se pode nem dar uma recepção seleta para setenta casais que logo a política vem à baila, dividindo opiniões. Até a Casa Cor está politizada e cheia de comunistas. Não quero passar por desantenada, pois meu marido tem uma bonito canavial com 450 bóias-frias. Como fugir do assunto?
SOCIALITE SOCIALISTA

Não fuja da política, minha cara. Nada mais tendência que dizer que adora Barack Obama, elogiar-lhe os ternos e os modos - e lamentar o atraso brasileiro.

DECORO PARLAMENTAR

Caro Sr. Rovélson Whitebotton,
Fui nomeado relator da Comissão de Ética da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro e encarregado de analisar o processo contra um dos nossos colegas. Devo dizer se ele deve ou não ser cassado. A peça acusatória consiste em uma gravação - de vídeo, diga-se, e magnificamente iluminada - em que ele aparece mandando assassinar um colega de contravenção. Pergunto: planejar um homicídio é ou não quebra de decoro parlamentar?
RELATOR JUDICIOSO

Depende, Judicioso, depende. Se o réu usou expressões vulgares ou palavras de baixo calão, decerto quebrou o decoro. "Vamos apagar aquele canalha", "Quero ver o safado virar presunto", "Dá uns pipocos nesse m..." são alguns exemplos do que não se deve tolerar num representante do povo. Terá igualmente quebrado o decoro se a reunião aconteceu num domingo ou dia santo. Também é necessário levar em conta o que ele estava vestindo. Deliberações desse jaez exigem, no mínimo, traje esporte fino. (Bermudas dispensam ida a plenário: é caso de cassação imediata.) Anéis, colares pesados e brilhantina devem ser anexados ao rol das provas incriminatórias. Idem se o deputado mexeu as pedras de gelo do seu uísque com o dedinho. E atenção: foulard é crime hediondo.

*

Estimado Rovélson Whitebotton,
Sou subassessor para Assuntos de Sardinha e Congêneres do Ministério da Pesca e amanhã pedirei meus primeiros 10% a uma empreiteira. Quais palavras devo usar?
EPAMINONDAS ROBALINHO

Jamais diga "Quero 10%", Robalinho de Águas Turvas. É simplesmente vulgar, além da praxe brasiliense, no momento, ser de 17%. Comece perguntando pela família do interlocutor e não se furte a olhar com interesse para as fotos do netinho ou netinha que ele certamente trará na carteira. Diga "É a cara do avô", se o bebê for bonito, o que é improvável. "Como se parece com o seu genro/nora!", caso não seja. Então, aos poucos, introduza o tema. Elogie-lhe a maleta com uma sutileza do tipo "Puxa, quantos dólares devem caber aí". Frases como "Eu gostaria tanto de levar minha família a Orlando, mas nunca pude", "Minha mulher /netinho/ compadre está indo para a hemodiálise, e rapaz, como custa...", "Desculpa o atraso, é que minha Brasília enguiçou... mas aqui estou, e essa é a barragem que estamos licitando" geralmente surtem bom efeito. Estabelecido o terreno, complemente com "O deputado manda abraços e diz que faz questão de lhe pagar um jantar no Piantela, com tudo incluído, inclusive os 17% do garçom". Enfatize o "17%" com uma piscadela.

*

Prezado R. Whitebótton,
Sou secretária de confiança do senador Abelardo Borduna e fui convidada por outro senador, cujo nome não posso revelar, para conversar sobre renda mínima no seu apartamento. Tenho receio de melindrar Bodurna, que é possessivo como o Cão, mas, recém-chegada e disposta a fazer carreira em Brasília, não quero me indispor com ninguém. Como devo proceder?
LUANA COCHUDA

Nada mais simples, Cochuda. Leve uma câmera de vídeo escondida, registre o encontro e bote a gravação na internet. Como a conversa será mesmo sobre renda mínima, Bodurna terá um prova adicional da sua fidelidade, Brasília inteira rirá à beça, o senador misterioso ficará satisfeito com a repercussão do caso na imprensa e, da noite para o dia, todo mundo saberá como você é espirituosa.

*

Caro senhor,
Sou deputado de primeiro mandato. Fui instruído a receber de bom grado todos os livros de José Sarney e mantê-los num lugar de destaque na estante da sala de meu apartamento funcional. Foi o que fiz. Mas agora, o nobre senador do Amapá me presenteou com uma de suas telas. Trata-se da imagem de um grande caramujo de tranças louras. Sei que José Dirceu mantém em sua casa o óleo de um peixe cabeludo, outra obra do ex-presidente, e talvez por isso tenha caído. Confesso que, toda noite, hesito em voltar para meu apartamento e dar de cara com o caramujo. Não sei o que fazer.
MIMOSEADO DE PRIMEIRA VIAGEM

Entendo e compartilho a sua angústia: também tenho uma paisagem marinha, repleta de monstros indefiníveis, de autoria do nosso insuperável ex-presidente. Mas não há outro remédio senão acostumar-se. Sarney sempre estará no poder, mandando e desmandando, não importa qual seja o governo. Se quiser ter futuro político, não retire o quadro da parede - o senador é dado a aparecer de surpresa para checar o estado geral de seus presentes. Vários deputados já perderam o mandato por terem desobedecido a essa regra de ouro do convívio parlamentar. Para atenuar a aflição, sugiro algumas alternativas simples e bem-educadas. Que você faça uma operação de miopia, não para corrigi-la, mas para acentuá-la. No apartamento, só ande de costas para a malsinada obra pictórica. Compre uma casa de campo, de preferência na Islândia, e leve o quadro para lá. É a solução mais indolor. Quando Sarney aparecer, diga: "A Islândia é meu pedacinho do paraíso. Achei apropriado levar o seu caramujo para lá." Em seguida, mostre fotos.

*

Whitebotton,
Quero apoiar meu sucessor na Prefeitura, mas o meu antecessor no governo estadual também é candidato. Como manter a posição sem desagradar ninguém e chegar à Presidência?
TUCANO INSONE

Uma viagenzinha ao Japão resolve.

*

Caro Whitebotton,
Soube que a Polícia Federal, nos quadros da Operação Roubalheira LXXIII, fará uma blitz no meu gabinete e pretende me levar à força para interrogatórios. O que faço para não perder a compostura?
APAVORADO EM FLAGRANTE

Nessas horas é que se percebe se a elegância é de berço. É a prova de fogo. Primeira providência: deixar a tela de Sarney (a maior, a Polvo Maneta e Perneta) em evidência. A boa arte maranhense costuma fazer a gentinha se acoelhar. Segunda: compre um paletó de número duas vezes maior, para poder esconder o rosto dos fotógrafos sem amassá-lo. Terceira: deixe uma nota pronta à imprensa, sustentando que seus inimigos políticos querem destruí-lo porque estão mancomunados com os poderosos. Sempre funciona.

*

Prezado Rovélson Whitebotton,
Minha jovem esposa quer levar a mãe para conhecer a Europa. Não tenho como recusar. É obrigatório pagar as despesas da jararaca?
GOVERNANTE SOGRADO

De jeito nenhum! Onde já se viu? O erário está aí para esses pequenos gestos de cortesia que azeitam as relações interfamiliares. Convide-a para presidir uma ONG de inserção social de excluídos e boa viagem aos pombinhos (não deixe de levar uns assessores para fazer companhia à jararaca).

*

Sr. Whitebotton,
Apareci numa gravação clandestina nos telejornais com uma enorme pilha de dinheiro no meu gabinete. Tenho saída?
PREFEITO MARANHENSE

Nessas situações, é melhor recorrer às soluções tradicionais: diga que a pilha era para esconder uma tela do seu líder, José Sarney, que mostrava uma piranha-da-caatinga com chapéu de couro.

*

Prezado Rovélson,
Como ir à Europa descansar um pouco (ninguém é de ferro) sem chamar a atenção da imprensa?
SERGINHO CABRAL

Convide uns dez jornalistas a irem junto, governador.

FESTAS, RECEPÇÕES E JANTARES DE GALA

Bonitinho,
Fui convidado para um jantarzinho na casa de um ex-banqueiro que acabou de deixar a prisão. Quais os assuntos apropriados para puxar conversa?
SEM ASSUNTA

Culinária sempre rende conversas animadas. Pergunte sobre o chef, o cardápio, a louça e o serviço no xadrez. O momento do banho de sol pode render também: qual era o protetor solar preferido? Nas conversas sérias, elogiar a morosidade da Justiça.

*

Botton,
A tua colega Glorinha Kalil publicou um livro de etiqueta em que ela aparece de luvas na capa. Luvas estão na moda nos trópicos?
PORTA-VOZ DOS SEM-LUVA

Ih, você não entendeu nada, nada mesmo. Claro que as pessoas de fino trato usam luvas. E tem mais: é uma peça de vestuário de primeira necessidade para os bem-educados. Exemplo prático: você está nos Jardins e um pobre te pede esmola. Como manda a etiqueta, você lhe dá umas moedinhas e o miserável, sem modos, aproxima os lábios da sua mão. Imaginou o horror? Luvas, portanto, luvas.

*

White,
Estou tão bêbado que entrei na festa andando de costas. Luciana Gimenez me pede uma explicação. O que devo dizer?
PELAS TABELAS

Informe-a de que você está aplicando o conceito feng shui de que o futuro é um poço de esperança, o presente uma prisão de loucura e o passado uma caixa de medos. E que ela precisa encarar seus medos para se tornar uma pessoa melhor.

*

Cara,
Em um happy hour, um de meus colegas de trabalho chega em companhia de uma morena sensacional. Acho que ela está me encarando. O que fazer?
GALANTEADOR EMBAÇADO

Antes de mais nada, Galanteador, atenção à hierarquia. Se o colega for seu subordinado, não demonstre qualquer interesse. Mas quando ele se levantar para ir ao banheiro, diga à moça: "Estou indo para uma boate em quinze minutos. Você pode me encontrar lá, a não ser que queira insistir em curar a homossexualidade do meu amigo - coisa que nem a mulher obesa e seus quatro filhos sabem."

*

Cara,
Não! O colega é meu chefe e percebeu que estou dando em cima dela!
GALANTEADOR EMBAÇADO

A presença de espírito é atributo essencial do verdadeiro cavalheiro: levante a voz e berre para a mulher: "Não quero nada com você, pervertida!" Enquanto o sujeito leva a mulher para um canto para tirar satisfações, saia à francesa. Mas antes comente com o mais fofoqueiro da turma: "Eu estava na minha, ela já chegou partindo para cima."

*

Senhor,
Fui convidado para uma festa na casa de um casal nouveau pauvre. Pensei em levar uma garrafa de Cheval Blanc 1972, mas acho que pode parecer ofensivo. Que tipo de bebida devo levar?
ENÓLOGO SENSÍVEL

Não é porque seus amigos perderam tudo que significa que perderam a classe. O uísque Natu Nobilis e o conhaque de alcatrão São João da Barra são produtos nacionais com excelente custo-benefício. Uma bela garrafa de Xiboquinha ou Contini Bianco também não decepcionam.

*

Homem,
Com o joelho recém-operado, bebi e acabei com três travestis num motel. Como me comportar agora?
MACHUCADO NA BARRA

Com o joelho machucado é difícil, mas com jeito tudo se resolve: fique de ladinho.

*

Caro grã-finólogo,
A anfitriã sai do banheiro com as narinas entupidas de pó branco. Como alertá-la sem ofendê-la?
CONVIVA ATENCIOSO

Você pode perguntar se ela acabou de beijar a bisavó ou a Rainha da Inglaterra, já que seu rosto ficou "cheio de pó de arroz".

*

Caro Rovélson,
O jantar é formal. Como devo saudar alguém que chega atrasado?
MÍMICO ELOQÜENTE

Com a mão esquerda, pegue o terceiro garfo da esquerda para a direita, levante-o até a altura da cabeça e sacuda-o em movimentos firmes e contínuos.

*

Prezado escriba,
Em uma recepção com lugares marcados, onde devo sentar a mulher, o marido e a amante dele?
ANFITRIÃ DIPLOMÁTICA

Numa mesa retangular, a mulher deve se sentar a duas cadeiras do marido, entre dois homens fortes, que possam contê-la, e próxima à amante para que possa vigiá-la. Amante e marido devem se sentar exatamente em frente um do outro para que possam se tocar com os pés por debaixo da mesa. Não é aplicável se o tampo for de vidro. A mulher também pode ser colocada de frente para um quadro de José Sarney: muda de espanto, ela não incomodará ninguém.

*

Rovélson Whitebotton,
Enquanto os convivas estavam distraídos, vomitei no chão. Ninguém percebeu, mas o garçom se aproxima. Como disfarçar o ocorrido?
BEBI MAL

O mais apropriado é derramar o resto de seu vinho sobre o líquido expelido, misturar tudo com o pé discretamente e chamar a atenção do serviçal: "Esse vinho que você me serviu parece vômito!"

*

Caro Whitebotton,
Estou no banheiro de um restaurante do Senado e sou tomado por um irrefreável desejo de fazer um desenho na porta. O que é chique pintar?
EX-PRESIDENTE

Não invente muito. Uma barracuda com chapéu de cangaceiro está bom.

NO REINO ENCANTADO DAS CELEBRIDADES

Bofe Botton,
As revistas de fofoca insistem em saber o que faço para manter a forma. Continuo dizendo que é só água de coco e yoga. O que fazer para reforçar a versão?
IVALO SANGUETE

Contrate um caminhão de água de coco para que fique estacionado em frente a sua portaria por dois dias. Saia à rua carregando o tapete de yoga pelo menos três vezes por semana. E continue entrando no consultório do cirurgião plástico pela porta dos fundos, sem jamais esquecer a peruca e os óculos escuros.

*

Fofo,
Sempre apareci na capa de revistas com meu mais novo namorado. Agora, descobri que gosto mesmo é de mulheres. Como alardear a novidade com fineza?
SAPATO NO ARMÁRIO

Por baixo de uma jaqueta Prada de couro castor, você pode usar uma camiseta básica preta, com letras douradas dizendo: "EU GOSTO É DE GENTE."

*

White,
Preciso avisar os paparazzi que vou a um bar com meu novo namorado, um ator famoso que adotou a linha low profile. Como fazer a convocatória sem estragar a estratégia do rapaz?
MARQUETEIRA CONFUSA

As regras de requinte recomendam aproveitar do fotógrafo alheio. Ligue para os assessores de imprensa de Caetano Veloso, Deborah Secco ou Preta Gil para descobrir os restaurantes, bares e casas de suco aonde eles irão naquela noite. Com a presença dos paparazzi garantida, é só posar ao som de: "Meu Deus, que coincidência!"

*

Meu assessor predileto,
Ao arrumar a mesa para um jantar de cerimônia, onde ponho os canudinhos?
XUXA MENEGHEL

Enfileirados, depois da seqüência de facas. Mas, atenção: os do tipo dobráveis são inadmissíveis.

*

Colega,
Sou um repórter investigativo que foi pego pela polícia com 200 gramas de cocaína. Como me explicar?
BOB WOODWARD

Nessas situações, não se trata nem de uma questão de etiqueta. É um problema ético, e como tal deve ser encarado, pois é a sua credibilidade que está em jogo. Convoque uma entrevista coletiva para esclarecer que foi tudo um mal-entendido, que você apurava uma reportagem sobre tráfico de drogas para exibir na televisão.

*

Rei da Etiqueta,
Há anos não me chamam para fazer nenhum trabalho. No máximo, sou convidada para inaugurações de óticas e pet shops. Não quero parecer rude, mas o que falar aos abutres que querem saber sobre minha rotina vazia?
FAMOSA INFAMOSA

Educadamente, com a voz firme e pausada, diga que está cheia de projetos e vislumbrando mais um desafio em sua carreira, mas que, infelizmente, ainda não pode revelar.

*

Caro Robervón (é assim que se escreve o seu nome?)
Estou no começo da carreira e ainda não sou considerada VIP. Como posso pedir roupas e convites de graça sem perder a categoria?
INFAMOSA INFAMOSA

Incorpore o sobrenome de alguma celebridade do mundo da moda. Você pode ser "Sicrana Pascolatto" ou "Beltrana Pascowitch" (quem quiser ser Fulana Bottonwhite procure meu agente). Roupas, ingressos e convites brotarão espontaneamente.

*

Companheiro excluído,
Levaram-me o Rolex num cruzamento. Dá para ser elegante numa hora dessas?
NARIZ EMPINADO

Claro que dá! É só escrever um libelo contra a injustiça social que todo mundo perceberá que você é bem-educado o bastante para se promover em qualquer situação.

*

Colunista Whitebotton,
Meu casamento

foi capa de todas as revistas, mas terminou depois de um mês e meio. Tenho que devolver os presentes?
LEBRE LÉPIDA

Claro que não, Lépida. Sinta-se na obrigação de mandar um cartão formal de agradecimento apenas para aqueles que ganham mais de 100 mil reais por mês ou tenham algum cargo de direção em uma emissora de tevê.

*

Moço,
Meu noivo foi flagrado em um motel com três travestis. Minha prima do interior fica me perguntando os detalhes do acontecido. Como desconversar sem parecer mal-educada?
INCONSOLÁVEL

Diga que ele ficou de ladinho e mude rápido de assunto.

*

Seu Uaitebótom,
Quero deixar a imagem de ex-BBB definitivamente para trás. O que devo vestir na minha primeira reunião com o gerente da empresa de marketing que se interessou em discutir meu projeto de releitura de Hamlet?
CCC

Use um coque, terninho preto, maquiagem e perfumes discretos. Lembre-se de que o correto é "para eu fazer", e não "para mim fazer".

*

Brasileiros e brasileiras,
Fui apresentado a uma senhorita bem torneada e apessoada (parece uma lagosta de peruca loira) que, segundo Roseana me disse, "está bombando". Penso em presenteá-la, mas não quero parecer intrusivo nem impessoal. O que me sugere?
JOSÉ SARNEY

Que tal um retrato da moça? É chique e original.

Fonte: Revista Piauí

http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=689&pag=5

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Lições do século XX

Rating:★★★★★
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O que aprendemos com o século XX, se é que aprendemos alguma coisa?

TONY JUDT

REVISTA PIAUÍ

O século XX mal acabou e suas disputas e realizações, ideais e medos já se perderam nas sombras do esquecimento. No Ocidente, sempre que possível tivemos grande pressa em desconsiderar a bagagem econômica, intelectual e institucional do século passado, e encorajamos os outros a fazer o mesmo. A partir de 1989, com uma confiança ilimitada e uma reflexão insuficiente, deixamos o século XX para trás. Enveredamos sem medo no seu sucessor, imersos em meias verdades a serviço do que desejamos crer: o triunfo do Ocidente, o fim da História, o momento unipolar americano, a marcha inelutável da globalização e da liberdade de mercado.

A crença de que aquele tempo ficou para trás e agora tudo é diferente nos afeta bem mais do que os finados dogmas e instituições comunistas dos tempos da Guerra Fria. Durante os anos 90, e novamente em seguida ao 11 de Setembro de 2001, mais de uma vez me choquei com a perversa insistência contemporânea em não compreender o contexto dos dilemas de hoje; em não dar ouvidos a algumas das cabeças mais sensatas das últimas décadas. Com a insistência em procurar ativamente esquecer, em vez de lembrar; em negar a continuidade e proclamar o ineditismo em todas as ocasiões possíveis. Adquirimos uma estridente insistência em reafirmar que o passado pouco tem de interessante a ensinar. O nosso mundo, asseguramos, é novo; seus riscos e oportunidades não têm precedentes.

Depois de 1918, enquanto todos concordavam que as coisas nunca voltariam a ser como antes, a forma que o mundo do pós-guerra deveria assumir foi idealizada e contestada em toda parte, sob a longa sombra da experiência e do pensamento do século XIX. A economia neoclássica, o liberalismo, o marxismo (e seu enteado, o comunismo), a "revolução", a burguesia e o proletariado, o imperialismo e o "industrialismo" - os blocos usados na constituição do mundo político do século XX - eram todos artefatos do século XIX. Mesmo aqueles que, a exemplo de Virginia Woolf, acreditavam que "por volta de dezembro de 1910 o caráter humano mudou" - que as profundas mudanças culturais do fin de siècle europeu tinham transformado completamente os termos da troca intelectual - ainda assim dedicavam uma quantidade surpreendente de energia travando uma luta inglória com a sombra dos seus predecessores. O peso do passado se fazia sentir no presente.

Hoje, em contraste, tratamos o século passado com grande ligeireza. Claro que lhe erguemos memoriais em toda parte: santuários, placas, locais de visitação. Até mesmo parques temáticos de fundo histórico são monumentos públicos ao "passado". Mas o século XX que celebramos é apresentado curiosamente fora de foco. A esmagadora maioria dos sítios oficialmente dedicados à conservação da memória do século XX é ou confessadamente nostálgico-triunfalista (louvando homens famosos e celebrando grandes vitórias) ou então, e cada vez mais, oportunidade para a rememoração de um sofrimento seletivo.

O século XX, assim, está a caminho de ser transformado num palácio de memória moral: uma câmara de horrores históricos, com usos pedagógicos, cujas várias estações atendem pelos rótulos de "Munique", "Pearl Harbor", "Auschwitz", "Gulag", "Armênia", "Bósnia" ou "Ruanda". Com o 11 de Setembro figurando como uma espécie de coda suplementar, um sangrento pós-escrito é dirigido àqueles que quiseram esquecer as lições do século, ou deixaram de aprendê-las. O problema dessa representação lapidar do século passado como uma era singularmente horrenda, da qual hoje, felizmente, já emergimos, é que não é uma boa descrição. De muitas maneiras, foi de fato uma época terrível, um tempo de brutalidade e sofrimento em massa talvez sem igual em toda a história conhecida. O problema é a mensagem: que deixamos tudo isso para trás, que o significado do passado é claro e que agora podemos avançar - desembaraçados dos erros anteriores - rumo a tempos melhores e diferentes.

Essa rememoração oficial não contribui para a nossa avaliação ou consciência do passado. Funciona como um substituto, um sucedâneo. Em vez de ensinarmos história, levamos as crianças a percorrer museus e memoriais e, o que é pior, as estimulamos a ver o passado - e as suas lições - através do vetor do sofrimento dos seus antecessores. Hoje, a interpretação "comum" do passado recente compõe-se, assim, de fragmentos múltiplos de vários passados, cada um deles (judeu, polonês, sérvio, armênio, alemão, asiático-americano, palestino, irlandês, homossexual) marcado pela condição ostensiva de vitimado.

O mosaico resultante, em vez de nos ligar a um passado comum, separa-nos dele. Por maiores que fossem os defeitos das narrativas nacionais que nos eram ensinadas, por mais que o seu foco fosse seletivo e a sua mensagem instrumental, pelo menos elas tinham a vantagem de fornecer à nação referências passadas para a experiência do presente. A história tradicional, da maneira como foi ensinada a gerações de escolares e universitários, dava um sentido ao presente por meio da referência ao passado: nomes, lugares, inscrições, idéias e alusões podiam ser organizados numa narrativa memorizada do dia de ontem. Atualmente, esse processo se inverteu. O passado só adquire sentido através da referência às nossas múltiplas, e muitas vezes contrastantes, atribulações atuais.

Esse caráter estrangeiro e desconcertante do passado deve-se, em parte, à mera velocidade das mudanças contemporâneas. A "globalização" realmente revirou a vida das pessoas de tal forma que seus pais ou avós teriam grande dificuldade em imaginar. Muito do que, por décadas e mesmo por séculos, nos parecia familiar e permanente vem caindo cada vez mais rápido no esquecimento. O passado, ao que tudo indica, é realmente um outro país: nele, as coisas eram feitas de outra maneira.

A expansão das comunicações é um caso exemplar. Até as últimas décadas do século XX, a maioria das pessoas tinha um acesso limitado à informação. Graças à educação nacional, à rádio e televisão controladas pelo Estado e a uma cultura impressa comum, todos passaram a ter a mesma probabilidade de saber praticamente as mesmas coisas dentro de um Estado, nação ou comunidade. Hoje, ocorre o contrário. A maioria das pessoas fora da África subsaariana tem acesso a uma quantidade quase infinita de dados. Na falta, porém, de uma cultura comum, as informações e idéias fragmentadas que as pessoas escolhem ou encontram são determinadas por uma multiplicidade de preferências, afinidades e interesses. Com o passar dos anos, cada um de nós tem menos pontos em comum com os mundos em rápida multiplicação dos nossos próprios contemporâneos, sem falar do mundo dos que vieram antes de nós.

Qual é a conseqüência mais funesta da nossa pressa em deixar para trás o século XX? Nos Estados Unidos, pelo menos, é termos esquecido do que a guerra significa. E por um motivo particular. Em boa parte do continente europeu, da Ásia e da África, o século XX foi vivido como uma sucessão de guerras. A guerra representou invasão, ocupação, deslocamento, privação, destruição e assassinatos em massa. Os países que perdiam as guerras muitas vezes também perderam habitantes, território, recursos naturais, segurança e independência. Mesmo os países que emergiam formalmente vitoriosos tinham experiências comparáveis, e rememoravam a guerra com uma feição semelhante à dos derrotados.

A Itália depois da I Guerra Mundial, a China depois da II Guerra e a França depois de ambas podem ser mencionadas nesse caso: todas saíram "vencedoras", mas devastadas. E houve ainda as nações que venceram uma guerra, mas "perderam a paz", desperdiçando as oportunidades proporcionadas pela vitória. Os aliados ocidentais em Versalhes, assim como Israel, nas décadas que se seguiram à sua vitória de junho de 1967, são os exemplos mais flagrantes.

Além disso, no século XX, guerra quase sempre significou guerra civil: muitas vezes encoberta pelo rótulo de ocupação ou "libertação". A guerra civil desempenhou um papel significativo na "limpeza étnica", e provocou alguns dos grandes deslocamentos forçados de populações no século XX, tanto na Índia e na Turquia como na Espanha e na Iugoslávia. Da mesma forma que a ocupação estrangeira, a guerra civil é uma das terríveis memórias "comuns" dos últimos 100 anos. Em vários países, a "superação do passado" - isto é, um acordo para ultrapassar ou esquecer (ou negar) a memória recente de conflitos entre comunidades - transformou-se em objetivo primário de governos do pós-guerra, às vezes alcançado, às vezes causador de excessos.

A guerra não era apenas uma calamidade em si mesma. Ela trazia outros horrores em seu rastro. A I Guerra Mundial levou à militarização sem precedentes da sociedade, à adoração da violência e a um culto de morte que durou muito mais que a guerra propriamente dita e preparou o terreno para as catástrofes políticas que se seguiram. Os Estados e as sociedades tomados durante e depois da II Guerra Mundial, por Hitler ou Stálin (ou pelos dois, em seqüência), viveram não só a ocupação e a exploração, como também a degradação e a corrosão das leis e das normas da sociedade civil. As próprias estruturas da vida civilizada - as regras, as leis, os professores, os policiais, os juízes - desapareceram ou assumiram um significado sinistro: longe de garantir a segurança, o próprio Estado transformou-se na maior fonte de insegurança.

A reciprocidade e a confiança, seja entre vizinhos, colegas, dirigentes ou comunidade, entraram em colapso. Comportamentos que seriam aberrantes em circunstâncias habituais - roubo, desonestidade, dissimulação, indiferença para com o infortúnio alheio e exploração oportunista do seu sofrimento - tornaram-se não apenas normais como, às vezes, os únicos meios de alguém salvar a família e se salvar. A divergência ou a oposição eram sufocadas pelo medo universal.

A guerra, em suma, desencadeava um comportamento que seria inconcebível, além de aberrante, em tempos de paz. É a guerra, e não o racismo, o antagonismo étnico ou o fervor religioso, que leva à atrocidade. A guerra - a guerra total - sempre foi a condição prévia crucial para a criminalidade em massa na era moderna. Os primeiros campos de concentração foram criados pelos britânicos durante a Guerra dos Bôeres, entre 1899 e 1902. Sem a I Guerra Mundial, não haveria o genocídio dos armênios e seria altamente improvável que tanto o comunismo quanto o fascismo se apoderassem de Estados modernos. Sem a II Guerra Mundial não haveria o Holocausto. Não houvesse o envolvimento forçado do Camboja na Guerra do Vietnã, jamais teríamos ouvido falar de Pol Pot. Quanto ao efeito brutalizante da guerra sobre os próprios soldados comuns, ele foi copiosamente documentado.

Os Estados Unidos conseguiram passar ao largo de quase tudo isso. Os americanos talvez sejam o único povo que viveu o século XX sob uma luz muito mais benfazeja. Os Estados Unidos nunca foram invadidos. Não perderam vastas quantidades de cidadãos, nem grandes parcelas de território. Embora humilhados em distantes guerras neocoloniais (no Vietnã e, agora, no Iraque), jamais sofreram as plenas conseqüências de uma derrota. A despeito da sua ambivalência em relação às iniciativas mais recentes, a maioria dos americanos ainda acha que as guerras travadas pelo seu país foram, em sua maioria, "guerras boas".

Os Estados Unidos aumentaram bastante seu papel entre as nações após as duas guerras mundiais - uma situação bem diferente do que aconteceu com a Grã-Bretanha, também indiscutivelmente vitoriosa nesses conflitos, mas ao preço da quase-bancarrota e da perda de um império. Além disso, em comparação com os outros principais poderes litigantes do século XX, os Estados Unidos perderam relativamente poucos soldados nos campos de batalha, e praticamente não tiveram baixas civis.

Esse contraste merece uma ênfase estatística. Na I Guerra Mundial, os Estados Unidos sofreram pouco menos de 120 mil mortes em combate. Para o Reino Unido, a França e a Alemanha, as cifras são, respectivamente, de 885 mil, 1,4 milhão e mais de 2 milhões. Na II Guerra Mundial, quando os Estados Unidos perderam cerca de 420 mil homens em combate, as perdas do Japão foram de 2,1 milhões, as da China de 3,8 milhões, as da Alemanha de 5,5 milhões e as da União Soviética estimadas em 10,7 milhões. O Memorial dos Veteranos do Vietnã, em Washington, registra a morte de 58 195 americanos ao longo de uma guerra que se estendeu por quinze anos. Já o exército francês perdeu o dobro disso em apenas seis semanas de combates, entre maio e junho de 1940.

Na batalha mais custosa travada pelo exército americano em todo o século - a Ofensiva das Ardenas, entre dezembro de 1944 e janeiro de 1945 -, morreram 19 300 soldados. Nas 24 horas iniciais da Batalha do Somme (1º de julho de 1916), o exército britânico teve mais de 20 mil baixas fatais. Na Batalha de Stalingrado, o Exército Vermelho perdeu 750 mil homens e a Wehrmacht um número quase igual de combatentes.

Com isso, à exceção da geração que lutou na II Guerra Mundial, os Estados Unidos não têm memória de combate ou perda nem de longe comparável à das forças armadas de outros países. Mas são as baixas civis que deixam a marca mais duradoura na memória nacional, e aqui o contraste é ainda mais chocante. Apenas na II Guerra Mundial, os britânicos sofreram 67 mil mortes de civis. Na Europa continental, a França perdeu 270 mil civis. A Iugoslávia registrou a morte de mais de meio milhão de civis. A Alemanha, de 1,8 milhão. A Polônia, de 5,5 milhões. E se estima que a União Soviética tenha tido 11,4 milhões de mortes de civis. Essas cifras agregadas incluem cerca de 5,8 milhões de judeus mortos. Mais longe, na China, a contagem de mortos excedeu os 16 milhões. As perdas de civis americanos (excluindo a Marinha Mercante), nas duas guerras mundiais, somam menos de 2 mil mortos.

Conseqüentemente, os Estados Unidos são hoje a única democracia avançada em que figuras públicas glorificam e exaltam os militares, um sentimento comum na Europa antes de 1945, mas praticamente desconhecido nos dias de hoje. Os políticos americanos cercam-se dos símbolos e adornos da competência armada. Ainda em 2008, analistas americanos fustigam os aliados que hesitam em se envolver em conflitos armados. Acredito que seja essa disparidade nas lembranças da guerra e do seu impacto, mais que qualquer diferença estrutural entre os Estados Unidos e os países que lhe são comparáveis em outros aspectos, a responsável pelas suas distintas reações às crises internacionais de hoje.

A afirmação complacente dos neoconservadores, de que a guerra e o conflito são coisas que os americanos compreendem - em contraste com os europeus ingênuos, às voltas com suas fantasias pacifistas -, me parece totalmente equivocada: são os europeus (juntamente com os asiáticos e os africanos) que melhor entendem o que é a guerra. A maioria dos americanos tem a sorte de viver numa bem-aventurada ignorância do que ela realmente significa.

Esse mesmo contraste pode explicar a qualidade que caracteriza boa parte do que se escreve nos Estados Unidos sobre a Guerra Fria e as suas conseqüências. Nos relatos europeus sobre o fim do comunismo, dos dois lados da dita Cortina de Ferro, o sentimento predominante é de alívio diante do final de um capítulo longo e infeliz. Nos Estados Unidos, porém, essa história é normalmente registrada de forma triunfalista. E - por que não? - para muitos comentaristas e analistas políticos americanos, a mensagem do século XX é de que a guerra funciona. Daí o entusiasmo amplamente difundido pela guerra contra o Iraque. Para Washington, a guerra continua a ser uma opção - e, naquela ocasião, foi a primeira delas. Para o resto do mundo desenvolvido, ela é pensada como o último recurso.

A ignorância da história do século XX não contribui apenas para um deplorável entusiasmo pelo conflito armado. Também leva à identificação errônea do inimigo. Temos bons motivos para nos preocuparmos com o terrorismo e o desafio que ele representa. Mas antes de nos lançarmos a uma guerra de 100 anos para erradicar os terroristas da face da terra, é preciso considerar o seguinte: os terroristas nada têm de novo. Mesmo que sejam excluídos os assassinatos ou as tentativas de assassinato de presidentes e monarcas, e nos limitemos aos homens e mulheres que matam civis desarmados em busca de um objetivo político, os terroristas estão em atividade há bem mais de um século.

Já vimos terroristas inspirados pelo anarquismo, terroristas russos, terroristas indianos, terroristas árabes, terroristas bascos, terroristas malaios, terroristas tâmiles e dúzias de outros. Existiram, e ainda existem, terroristas cristãos, terroristas judeus e terroristas muçulmanos. Houve terroristas iugoslavos (os partisans) acertando contas na II Guerra Mundial; terroristas sionistas explodindo mercados árabes na Palestina antes de 1948; terroristas irlandeses financiados por americanos na Londres de Margaret Thatcher; terroristas mujahedin armados pelos Estados Unidos no Afeganistão dos anos 80; e assim por diante.

Ninguém que tenha vivido na Espanha, Itália, Alemanha, Turquia, Japão, Reino Unido ou França, para não falar de países usualmente mais violentos, pode ter deixado de perceber a onipresença de terroristas ao longo do século XX - usando armas de fogo, bombas, armas químicas, carros, trens, aviões e muitas outras coisas. O único fato que mudou nos últimos anos foi a manifestação, em setembro de 2001, do terrorismo homicida dentro dos Estados Unidos. E mesmo isso não era totalmente sem precedentes: os meios foram novos e a carnificina incomparável, mas o terrorismo em solo americano se manifestou ao longo do século XX.

O que dizer do argumento de que o terrorismo de hoje é diferente, um "choque de culturas" inspirado por uma tóxica mistura de religião e autoritarismo, o "islamofascismo"? Também essa interpretação tem amplo apoio numa leitura errônea da história do século XX. E existe aqui uma tripla confusão. A primeira consiste em identificar grosseiramente os diversos fascismos nacionais da Europa entre-guerras com os ressentimentos, as demandas e as estratégias muito diferentes dos (igualmente heterogêneos) movimentos e insurreições muçulmanos do nosso tempo - e querer atribuir a credibilidade das lutas antifascistas do passado às aventuras militares de motivação bem mais dúbia.

Uma segunda confusão advém de igualar um punhado de assassinos apátridas, impelidos por motivação religiosa, à ameaça representada no século XX pelos Estados prósperos e modernos que eram controlados por partidos políticos totalitários, comprometidos com a agressão externa e o extermínio em massa. O nazismo era uma ameaça à nossa própria existência, e a União Soviética chegou a ocupar metade da Europa. Mas e a Al-Qaeda? A comparação é um insulto à nossa inteligência - para não falar da memória daqueles que lutaram contra os ditadores. Mesmo os que defendem essas semelhanças não parecem acreditar nelas. Afinal, se Osama bin Laden fosse realmente comparável a Hitler ou Stálin, teríamos realmente respondido ao 11 de Setembro com a invasão de... Bagdá?

Mas o erro mais grave consiste em confundir forma e conteúdo: a definição dos vários terroristas e terrorismos do nosso tempo apenas pelos seus atos, mesmo tendo objetivos contrastantes e por vezes conflitantes. Seria como pôr no mesmo saco as Brigadas Vermelhas italianas, o grupo alemão Baader-Meinhof, o IRA Provisório irlandês, o ETA basco, os separatistas do Jura suíço e a Frente Nacional de Libertação da Córsega. E, então, afirmar que as diferenças entre eles são insignificantes, rotular o amálgama resultante da combinação de militantes ideológicos que desferem tiros no joelho dos adversários, atiradores de bombas e assassinos políticos de "extremismo europeu" (ou "cristofascismo", talvez?), e em seguida declarar contra esse modelo uma guerra armada, sem quartel e sem meta definida.

A simplificação de inimigos e ameaças, essa facilidade em acreditar que estamos em guerra contra os "islamofascistas", "extremistas" de uma cultura estranha, de algum "Islamistão" distante, que nos odeiam por sermos quem somos, e se dedicam à destruição do nosso "modo de vida", essa simplificação é um sinal seguro de que esquecemos a grande lição do século XX: a facilidade com que a guerra, o medo e o dogma podem nos levar a demonizar os outros, negando-lhes uma humanidade como a nossa ou a proteção das nossas leis, para submetê-los a coisas indizíveis.

De que outra maneira podemos explicar nossa indulgência atual para com a tortura? Porque não há dúvida de que a toleramos. O século XX começou com a Convenção de Haia sobre as leis da guerra. Ainda em 2008, o século XXI tem em seu passivo o campo de prisioneiros de Guantánamo. Ali, e em outras prisões secretas, os Estados Unidos submetem terroristas ou suspeitos de terrorismo a torturas rotineiras. Existem muitos precedentes para isso no século XX, claro, e não apenas em ditaduras. Os britânicos torturavam os terroristas em suas colônias da África oriental até a década de 50. Os franceses torturavam terroristas argelinos que capturavam na "guerra suja" para manter seu domínio sobre o país.

No auge da Guerra da Argélia, Raymond Aron publicou dois ensaios vigorosos, instando a França a sair da colônia e a conceder-lhe a independência. Aquela guerra, insistia ele, não tinha sentido, e a França não tinha como vencê-la. Anos mais tarde, perguntaram a Aron por que também não se juntou aos que combatiam o uso da tortura, ao mesmo tempo que se opunha ao domínio da França sobre a Argélia. "Mas o que eu teria obtido, proclamando a minha oposição à tortura?", respondeu ele. "Nunca encontrei ninguém que fosse a seu favor."

Pois os tempos mudaram. Nos Estados de hoje, existem muitas pessoas racionais e respeitáveis que defendem a tortura - nas circunstâncias corretas e quando aplicadas por quem tem méritos. O professor Alan Dershowitz, da Faculdade de Direito de Harvard, escreve que "a mera análise da relação custo-benefício do emprego dessas torturas não-letais [para extrair a tempo informações perecíveis de um prisioneiro] parece mais que convincente". A professora Jean Bethke Elshtain, da Faculdade de Teologia da Universidade de Chicago, admite que a tortura continua a ser um horror e é "em geral [sic]... interdita". Entretanto, no caso do interrogatório de "prisioneiros no contexto de uma guerra letal e perigosa contra inimigos que não conhecem limites, há momentos em que essa regra pode ser desobedecida".

Essas afirmações terríveis são ecoadas pelo senador Charles Schumer (democrata de Nova York), que, numa audiência de 2004 no Senado, afirmou que "deve haver poucas pessoas nesta sala ou nos Estados Unidos que digam que a tortura nunca deva ser usada". Certamente não o juiz da Suprema Corte Antonin Scalia, que declarou, em fevereiro de 2008, que seria um absurdo dizer que a tortura não pode ser usada. Nas palavras dele: "Depois que isto é reconhecido, o jogo muda de figura. E o quanto a ameaça precisa ser iminente? E o quanto pode ser intensa a dor infligida? Acho que essas questões não são nem um pouco fáceis. Mas sei que ninguém pode se apresentar em toda confiança, satisfeito consigo mesmo, e dizer: 'Ah, é tortura, e portanto é uma coisa ruim.'"

Foi precisamente por essa decisão, de que "é tortura e, portanto, uma coisa ruim", que até pouco tempo atrás se distinguia a democracia das ditaduras. Nós nos orgulhamos de ter derrotado o "Império do Mal" dos soviéticos. De fato. Mas talvez devamos ler de novo as memórias dos que sofreram nas mãos desse império - as memórias de Eugen Loebl, Artur London, Jo Langer, Lena Constante e incontáveis outros - e então comparar os tormentos degradantes que sofreram com os tratamentos aprovados e autorizados pelo presidente Bush e o Congresso. Serão tão diferentes assim?

Escorregamos ladeira abaixo. As distinções mais sofisticadas que fazemos hoje na guerra contra o terror - entre o império da lei e circunstâncias "excepcionais", entre cidadãos e não-cidadãos, aos quais tudo pode ser feito; entre as pessoas normais e os "terroristas"; entre "nós" e "eles" - não são novas. Todas foram invocadas ao longo do século XX. São as mesmíssimas distinções que autorizaram os piores horrores do passado recente: campos de internação, deportação, tortura e assassínio - os crimes em resposta aos quais sempre murmuramos "nunca mais". Então, o que julgamos ter aprendido com o passado? De que serve o nosso culto moralista da memória e dos memoriais?

FONTE: http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=687&pag=5





segunda-feira, 21 de julho de 2008

Suplício da Monalisa

Rating:★★★★★
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Não ter o sorriso na hora certa
Paralisou a Monalisa
É por isso que a boca
Ficou assim no assombro
Indecifrável de um dia.

Um dia, um vampiro
Lambeu a boca
Da Monalisa

(A eternidade é para os imortais)

(Os cabelos vermelhos ocultos
Da Monalisa
Os seios robustos da Monalisa
Os anseios loucos da Monalisa)

Ninguém sabia

Nesse dia, Monalisa, secular,
Me disse toda jocosa:
Seduzi um misterioso
ET lendo shekespeare
Na poltrona da sala

(Eu, olhando para Monalisa, pensei:
Me comoveriam
Os olhos mansos da madona

Não fossem rasos
E apagados ocultos
E cegos para o ardor)

Numa tarde fogosa
Olhei bem para Monalisa
Ela, petrificada, no acaso
De um quadro

(doce prisão de Monalisa)

Suspirou.

Neste dia,
Decifrei o mistério
Gozoso e,
Engolindo um fragmento,
Vomitei um sorriso:
Com toda a mestria
Virei o quadro pelo avesso.

Na traseira da Madona
Estava escrito: mon cherie, mon amour.

(ela tem fogo no rabo!)

Agarrei a frase
Depositei na pia
Deixei vazar
Com calma
Perfurei a bunda da Monalisa
Com um prego
Ela gemeu
E num espamo
Jogou-me os braços
Agarrou-me pelos cabelos.

Enpunhei o punhal na hora certa.

No jornal, o anúncio dizia:
Monalisa decaptada por Jack,
O estripador. Que estrepolia!
Que despudor!

Denise Sampaio Ferraz. Olímpia é graduada em Comunicação Social e é mestre em Teoria da Literatura pela UNESP de São José do Rio Preto (SP)

Fonte: Site da Revista Cult.
http://revistacult.uol.com.br/website/oficinaTexto.asp?edtCode=FFBBE6C1-3D1E-42FF-856B-78D78F77C8C6&nwsCode=D3B163EC-E6C6-4D6A-B559-51D057DA3855

Memória e esperança

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As revoluções aspiram ao poder para transformar a realidade; em 1968, o que se queria transformar era a realidade do poder

por Franklin Leopoldo e Silva

O século 20 conheceu formas de poder opressivas e violentas contra as quais as pessoas se rebelaram em nome da liberdade e da dignidade, alcançando por fim vitórias que custaram o sacrifício de muitas vidas. Como a coragem e o heroísmo superam a morte, podemos dizer que nesse caso os mortos venceram. O século 21 provavelmente conhecerá formas dissimuladas de opressão em que os indivíduos entregarão seus corpos e suas almas a poderes cuja violência já estará instalada dentro deles e à qual, portanto, não poderão fazer qualquer oposição. Como a resignação, o conformismo e o egoísmo valem menos que a vida, podemos dizer que, nesse caso, sobreviver será uma derrota, a ser partilhada num mundo de mortos-vivos. O poder se transforma para manter a sua inflexibilidade. O poder nos transforma graças à flexibilidade de nossas convicções. O poder triunfa quando renunciamos a qualquer convicção, quando perdemos a força de persistir e, assim, de podermos ser derrotados. Se assumimos que já não há grandes causas a defender, estamos cientes de que não seremos derrotados porque já o estamos de antemão. Do risco da derrota à incorporação da passividade o caminho é o silenciamento de tudo que em nós clamaria pela humanidade. Não há estrada mais segura para levar ao desaparecimento da política e à dissolução da ética: um caminho onde nos perdemos dos outros e de nós mesmos.

Quando já não há mais nada a esperar, nos ajustamos ao vazio e, num mundo deserto, nos dispomos a carregar o fardo da inutilidade, esperando que a existência histórica nos seja leve. A vida contemporânea é principalmente um processo de conformação, em que tudo nos impede de perceber e de pensar a possibilidade de transformação, apesar de vivermos num mundo em que as novidades nos assolam: o progresso nos aprisiona no próprio ritmo em que nos conduz.

Redesenhar o futuro

O ano de 1968 marca o último episódio em que pudemos crer na possibilidade de desenhar o mapa do futuro. Suas linhas não eram nada precisas, a mão não possuía a firmeza e a segurança da maturidade, o pensamento não era claro, a vista se dividia entre a realidade e o sonho, mas o coração era sensível à esperança e tudo isso fundamentava a certeza simples de que o devir histórico continha a transformação e se definia pela expectativa de que todos poderiam tornar-se outros e que o mundo se tornaria outro porque nada do que existia era suficientemente forte para resistir à história e ao futuro.

Não havia, na verdade, projeto político definido de reestruturação objetiva da sociedade e do poder. Havia, evidentemente, as afirmações protocolares dos militantes, as teses dos partidos, as análises teóricas das práticas reais e possíveis, até a projeção de utopias. Mas seria preciso ser Deus para ver com clareza a própria recriação do mundo. Não há nada de estranho em assumir um compromisso pelo qual se engaja na incerteza, se a ação é inspirada pela liberdade e pela vontade de enfrentar todas as contingências. Não se trata apenas de imaginar um mundo possível, mas de considerar que a aventura humana pode transgredir as possibilidades e, mesmo que de tudo isso resulte uma realidade menor do que o intento, a tentativa terá valido a pena.



Exigência radical

O que havia de grandiosamente impossível na base de tudo que se queria fazer não eram reivindicações implausíveis ou irrealistas. Era algo mais radical: a completa transformação do poder. As revoluções costumam aspirar ao poder para transformar a realidade; em 1968 o que se queria transformar era a realidade do poder. Não se pretendia o seu alargamento, a expansão de seu alcance inclusivo, a modificação de seus dispositivos, a sua redistribuição, a renovação de seu modo de ser e de operar. O que se pretendia era o poder de transformar o poder. Essa visão momentânea e ofuscante do que estava além de todas as possibilidades não pode ser explicada nem mesmo por aqueles que estiveram mais diretamente presentes ao acontecimento. Porque essa transformação do poder não poderia consistir em lhe dar nova forma, mas em instalar uma tal reciprocidade entre vida e poder que tornasse impossível conceber o fluxo da experiência humana sem essa impregnação, de tal modo que viver e poder coincidissem num permanente processo de reinvenção da realidade, por parte de todos, isto é, de cada um segundo a sua singularidade.

Seria fastidioso enumerar os pontos em que essa idéia - ou esse sentimento, porque também essa dicotomia teria que ser revolucionada - contrariava todos os elementos de todos os cânones culturais e políticos. Mas isso nos permite avaliar, de forma aproximativa e imprecisa, como estamos longe de 1968. A distância cronológica de 40 anos contrasta com a distância política, que provavelmente sequer possamos medir.

Se isso era realizável, plausível ou possível é o que menos importa saber. A força de um propósito e a liberdade que o anima não se medem pela sua realização, mas pela intensidade do impulso que os originou. Em todo e qualquer esforço para compreender o que se passou em 1968, algo permanecerá sempre velado, até porque assim já estava na época. Essa parcela de obscuridade faz parte da ação histórica e é tanto maior quanto mais significativa ela tenha sido. Os momentos históricos podem ser reconstruídos de várias formas, mas eles somente revelam nessa reconstrução aquilo que somos capazes de ver. Por isso, são inúteis e inválidas, quando não são desonestas, as tentativas de compreender 1968 através de procedimentos retrospectivos que procuram sobrepor ao acontecimento componentes da situação presente. Que lá houvesse intenções manipuladoras, trajetórias políticas com rota própria, interesses alheios ao espírito do movimento, grandes equívocos, tudo isso estava de fato presente, como elementos divergentes que confluíam contraditoriamente, como ocorre nos eventos históricos. Mas nada disso abala a originalidade do acontecimento, antes integra o seu teor dramático.

Resistência da memória

Tampouco é pertinente estabelecer certas relações de continuidade ou de contrariedade entre 1968 e o curso que a história tomou desde então, no que concerne a eventos e personagens. É difícil e perigoso falar, nesse caso, de "desdobramentos". O que 1968 projetou foi tão radical que qualquer caminho histórico posteriormente percorrido e que se queira vincular ao acontecimento como resultado ou herança corre o risco de parecer insignificante. O significado do acontecimento, que se torna cada vez mais difícil avaliar à medida que o tempo passa, certamente superou os fatos particulares e os protagonistas efetivos. Cada vez que "comemoramos" 1968, o esquecimento e a distorção comparecem como convidados indesejáveis, mas obrigatoriamente presentes.

A memória, como se sabe, é a arma dos resistentes. Nesse sentido, aqueles que propõem o total esquecimento de 1968 estariam, talvez, prestando um serviço à História, à revelia de si mesmos. Pois o empenho com que propõem que o acontecimento seja apagado e desprezado é um testemunho evidente de que algo ali se passou que seria conveniente esquecer por completo. Algo que não deveria ter acontecido. E que foi tão importante que não basta que tenha sido derrotado: teria que desaparecer da memória e da história. Ora, isso é razão suficiente para que, apesar de todas as dificuldades, preservemos a memória de 1968. Porque, se os episódios de barbárie devem ser lembrados para que não sejam repetidos, os episódios em que a história se encheu de liberdade e esperança devem ser lembrados sempre, para que, eventualmente, possamos, não repeti-los, mas tentar fazer com que vença, em outro momento e de outra maneira, a esperança dos vencidos.

Franklin Leopoldo e Silva é professor titular do Departamento de Filosofia da USP

Fonte: Revista Cult, edição de julho de 2008.

http://revistacult.uol.com.br/website/news.asp?edtCode=FFBBE6C1-3D1E-42FF-856B-78D78F77C8C6&nwsCode=0305C7F3-5459-43C1-97A6-C49C483E3C7C

quarta-feira, 16 de julho de 2008

As nossas carnes na carne do outro. Até onde segue a extensão de nós?

Já é de algum tempo que a relação que estabeleço com meu corpo me é motivo de reflexão e espanto.  Sei que o olhar sob a relação que estabelecemos com o nosso corpo não é uma temática que traz novidade, e que corro o risco de, inclusive, descrever aqui uma série de proposições clichês disparando relatos visivelmente fruto da inocência que carrego em relação ao assunto. Mas é que, como tenho um corpo diferenciado, a ausência de modelos com os quais eu possa estabelecer comparações equilibradas torna as minhas incompreensões ainda mais díspares.  Não pretendo, todavia, me deter a essas diferenças. As utilizarei simplesmente para demonstrar o quanto de uma ponta a outra (daquilo que possa ser universal àquilo que é restrito a minha condição) é difícil conhecer o próprio corpo (ao menos, creio assim!)e as relações que estabelece. 

Quando eu era criança, não subia escadas sozinha. Acreditava não conseguir. Um belo dia, uma tia que, vez ou outra, cuidava de mim, me propôs uma maneira de subir escadas.  “Segure-se aqui! Apóie-se ali!”. E assim foi a minha vida toda. Diversas tarefas cujas pessoas ao meu redor desempenhavam com a mesma naturalidade com que respiravam, a mim exigiam a sensibilidade de descobrir como as realizar só que de um outro modo.  Geralmente, eram aprendizados adquiridos naqueles momentos de conflito em que eu não havia como pedir ajuda a alguém. Há coisas, por exemplo, que hoje considero absolutamente simples, mas que demoraram muitos anos para que eu aprendesse a fazer.

O corpo humano não se mantém em pé apenas porque é sustentado por um esqueleto. Se pensarmos que uma pessoa acometida de labirintite não consegue estabelecer o próprio equilíbrio, então, ficará próximo do que quero dizer. Um bailarino apresenta movimentos incríveis e tudo o que ele possui para tanto é o mesmo de seus telespectadores: o seu corpo. Em minhas aulas de teatro, aprendíamos, entre outras coisas, a saltar, a cair, a correr... Enfim, a cuidar de nossos movimentos, mesmo os aparentemente simplórios, para que fossem os mais exatos, pontuados e equilibrados possíveis. Nisso reside um dos qualitativos indispensáveis para um ator: o cuidado com que desempenha os seus gestos. Nas aulas de dança não era diferente. A diferença do caráter destas últimas é que, além do meu corpo, colocava-se em jogo intrinsecamente o corpo de outra pessoa. E é nesse ponto que pretendo me deter: eu, o outro e os nossos corpos... Juntos!

Devo iniciar esta reflexão dizendo: difícil. Realmente, eu não sei como a humanidade conseguiu se multiplicar com tanta rapidez e eficiência. Acima eu citei uma série de dificuldades e aprendizados no desempenho realizado por nosso corpo e que, por não determos o nosso olhar, passam despercebidos. Agora, ao imaginar que durante o ato sexual o que está no cerne de sua prática é concomitantemente a sensibilidade às nossas sensações e às de um outro; e que ainda por cima esse outro pode ter um corpo que de tão diferente chega a quase ser o avesso do nosso, então a palavra que vem a cabeça é difícil. Gostoso e difícil, que paradoxo!  A coisa se complica ainda mais se levarmos em consideração que além de dois corpos em movimento, estão também na cama e em duplicata, uma série de fantasias, exigências e expectativas, a moral e todos os seus simulacros, todos os medos. Tantos quantos couberem dentro das cabeçinhas dos que estiverem ocupando a cama... Tudo isso em movimentos rítmicos, ágeis, entre gemidos, beijos, tapas, arranhões, frases, gritos...e tabus. Éramos para ser uma espécie em extinção! Rsrs! Ainda sim, conseguimos ir para a balada, conversar duas horas como uma pessoa e no final de tudo ainda gozar!

Mas ao repassar em minha memória todas as minhas transas, desfilou à minha frente recordações e ao final um espanto: a de que eu somente sentira o meu primeiro gozo a pouquíssimo tempo (até porque, definir orgasmo e, ainda por cima, orgasmo feminino...díficil!)! Pois é... A feminista, a independente, a analista de discurso, a femeazinha emancipada! (este último qualitativo de empréstimo de Um copo de cólera) Quanto engano... No borbulhar disso tudo, um ensaio: teria eu me perdido na urgência da busca pelo prazer, pelo gozo, de tal forma a criar mecanismos anestésicos do outro e, consequentemente, de mim? A ansiedade do gozo que lhe anestesiou de sua própria essência: a sensibilidade na interação dos dois corpos. Sensibilidade essa que é compartilhada na atenção que retemos sobre nós e na que é depositada no outro.  Uma via de mão dulpa. Olha que merda! Bom, ficam as perguntas. A única pré-conclusão que consegui chegar até o momento é a de que realmente, eu não me conheço. E a de que ainda precisarei  aprender muito...      

      

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Site da filósofa Marcia Tiburi

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Lembrar é essencial *

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O homem é o animal que lembra. Podemos dizer isso tendo em conta que não haveria, de um modo geral, a cultura, sem o trabalho da memória. Definir o que é a memória, porém, não é fácil. Os cientistas tentam explicá-la afirmando seu funcionamento físico-químico em nível cerebral. Os historiadores criam suas condições gráficas por meio de documentos e provas, definem, com isso, uma linguagem compreensível sobre o que ela seja: o que podemos chamar de “campo da memória”. Os artistas e escritores tentam invocar seus subterrâneos, aquilo que, mesmo sem sabermos, constitui nosso substrato imagético e simbólico. Mas o que é a memória para cada um de nós que, em tempos de excesso de informação, de estilhaçamento de sentidos, experimenta o fluxo competitivo do cotidiano, a rapidez da vida, como se ela não nos pertencesse? Como fazemos a experiência coletiva e individual da memória? É possível lembrar? Lembrar o quê? Devemos lembrar?

Se esta pergunta é possível, a contrária também tem validade: haverá algo que devamos esquecer?

A memória é um enigma

Para os antigos gregos Mnemósyne era a deusa da memória, a mãe das nove musas que inspiravam os poetas, os músicos, os bailarinos. Seu simbolismo define que a memória precisa ser criada pelas artes. Numa civilização oral como foi a grega nada mais compreensível do que uma divinização da memória. A memória é a mãe das artes, tanto quanto nelas se reproduz, por meio delas é que mantém sua existência. Por isso, ela presidia a poesia, permitindo ao poeta saber e dizer o que os humanos comuns não sabiam. Que a memória seja mãe das musas significa que a lembrança é a mãe da criatividade. Mas de que lembrança se está tratando?
Para além da mitologia, na filosofia, distinguiam-se dois modos de rememoração: Mneme, espécie de arquivo disponível que se pode acessar a qualquer momento e Anamnese ou a memória que está guardada em cada um e que pode ser recuperada com certo esforço. A primeira envolve um registro consciente, enquanto a segunda manifesta o que há de inconsciente na produção de nossas vidas, ou seja, o que nos constitui sem que tenhamos percebido que nos aconteceu, que se forjou por nossa própria obra.
A memória era a deusa que permitia a conexão com os mortos, com o que já foi, com o que poderia ter sido, com o que, para sempre, não mais nos pertence desde que, com ele, não partilhamos o tempo.

Quando esquecer é uma culpa mal-resolvida

O atual modo de vida, pleno de elementos descartáveis, não privilegia a memória. O que se chama “consumismo” tem relação direta com o abandono e o descaso com a memória. Descarta-se tudo, de objetos de uso doméstico a amigos, de roupas a amores. O projeto ecologista da reciclagem é, de certo modo, um trabalho de memória. Na apressada vida urbana vige a regra de que tudo passa, o encanto pertence apenas à novidade, tudo vira lixo instantaneamente. A fungibilidade, a capacidade de trocar, é universal. Se tudo o que existe deve ser descartado, significa que sua existência não faz muita diferença. Esquecer assim, ou elevar o esquecimento a esta lei, é algo perverso.
Este gesto tem, porém, uma estranha e maléfica compensação. Numa cultura em esquecer é a lei, ressentir é inevitável. O ressentimento é a incapacidade de esquecer, impossibilidade de deixar de lado, de abandonar o verdadeiro lixo, ou, em outros termos, o passado com o que, nele, foi espúrio. Ressentimos porque não somos capazes de ver além, carregamos o sofrimento como gozo, ou seja, como o que, contraditoriamente, nos faz bem.
Por outro lado, o ressentimento é movido pela culpa de ter abandonado algo que, injustiçado, tempos depois, reclama sua volta. O ressentimento é um mal por ser fruto da culpa. A culpa, por sua vez, é como uma doença contagiosa da qual a humanidade inteira foi vítima, e ainda é, enquanto não aprende a compreender e aceitar suas próprias escolhas. A esta capacidade chama-se hoje responsabilidade. Mas mesmo com a responsabilidade é preciso tomar cuidado para que ela não seja um mero disfarce da culpa que ainda não eliminamos. Responsabilidade só é possível quando há solidariedade. Quando nos responsabilizamos não apenas por nossas vidas e atos, mas percebemos que somos apenas parte da vida e que muitas de nossas escolhas são coletivas.

Vantagens da memória e do esquecimento

Nietzsche, filósofo que morreu em 1900, dizia que a memória tinha vantagens e desvantagens na vida. É certo que quem quiser viver bem, quem almejar de algum modo ser feliz, deverá provar o equilíbrio entre lembrar e esquecer. Temos, neste momento, um problema de distinção: o que devemos esquecer, o que devemos lembrar? Na busca de um meio termo, mais vantajoso será guardar o que nos traz bons afetos, ou alegria e descartar o que nos traz maus sentimentos, ou tristezas. Motivos para a infelicidade não faltam a quem quiser olhar para a história humana e a história pessoal. Mas enquanto a memória histórica nos faz bem, pois nos mostra o que se passou para chegarmos até aqui, a memória pessoal faz o mesmo, mas ela só tem sentido se conectada à memória coletiva. Para poder buscar a alegria de viver é preciso olhar para a frente, para o futuro e reinventar a vida a cada dia. É esta invenção do presente que nos dará, no futuro, um passado do qual tenhamos prazer em lembrar. Viver do passado ou no passado, só prejudica o presente no qual, elaboramos o que será amanhã o passado.

Esquecer com criatividade

Diante do trauma, da lembrança que ficou recalcada em substratos profundos de nossa inconsciência, que define o ser e o agir sociedades inteiras, como o que foi vivido em catástrofes como a nazista, a do Vietnã, a da colonização e escravização no Brasil, e tantas que conhecemos nas vidas pessoais e familiares, esquecer torna-se um remédio contra o sofrimento. Mas esquecer não é apagar o que se viveu de modo abstrato, muitas vezes é justamente pela “rememoração” que nos lembramos. Por isso, contar histórias, fazer arte, ou seja, deixar-se levar pelas musas, continua sendo a melhor saída. A vida criativa é a única que evita o mau esquecimento e, por outro lado, a má lembrança que é o ressentimento.

* Publicado na Revista Vida Simples, Março 2007

Fonte: Site da Marcia Tiburi, a autora.
http://www.marciatiburi.com.br/textos/lembrar.htm

segunda-feira, 7 de julho de 2008

As imagens falam por si...(prestem atenção nos grifos!)

Clique no anexo para ver a imagem...
Attachment: Feminismo.bmp

Esclarecer o Pessimismo

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Marcia Tiburi
Revista Cult, Abril 2007

Da Indústria Cultural à industrialização da ética – para pensar o 60° aniversário da Dialética do Esclarecimento e sua atualidade
Quem é capaz de contestar hoje a existência da Indústria Cultural? A crítica que foi escândalo na Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer (1) desde 1947 perdeu seu significado. O texto, porém, mantém um alerta como sinal cifrado a exigir interpretação. Ele se refere ao empobrecimento da experiência (2), decisivo na destruição do sujeito livre. Mais do que uma questão de estética e de decisão sobre as virtudes da obra de arte ou dos meios de comunicação, o problema da IC é um problema de ética, o poder do indivíduo de decidir sobre sua vida que a cada dia escapa de suas mãos.

O Esquematismo ou o pensar igual

O texto sobre a IC, caduco para alguns, ainda é atual. Pelo menos duas de suas questões permanecem essenciais: a do Iluminismo como “mistificação das massas” e a do “esquematismo” do pensamento. Quanto ao primeiro aspecto, a questão é saber por que a aceitação de que há uma IC que adquiriu o valor de lei sobre a criação humana implantou-se com força de raiz no fundamento da sociedade? Que ninguém (ou esta seja a lei apesar das exceções) crie fora do mercado sem visar servi-lo é a prova da mistificação das massas consideradas culpadas por tudo que lhes é oferecido. O artista, se sobrevive como tal, torna-se herói em relação ao todo, o funcionário da comunicação entrega-se à burocracia do processo de repetição de imagens e idéias, o espectador máquina de ver, ouvir e dançar, imita a maquinaria, certo de que encontrou um canto aconchegante no sistema. Desavisado, o que o indivíduo aniquilado em sua capacidade de fazer experiência não sabe - e dificilmente saberá – é que a capacidade de pensar lhe foi roubada e, portanto, ele perdeu a chave de sua liberdade.
A ausência de pensamento reflexivo resulta do “esquematismo” que substitui o pensamento livre. Rodrigo Duarte explica a função do esquematismo como processo pelo qual “uma instância exterior ao sujeito (...) usurpa dele a capacidade de interpretar os dados fornecidos pelos sentidos segundo padrões que originalmente lhe eram internos (3). A função do sujeito de relacionar conceitos gerais à multiplicidade das coisas de que falava Kant foi eliminada. Compra-se hoje o pensamento enlatado. Com os pensamentos prontos a ação se torna repetitiva e igual. A rigor não há mais ação alguma. A inação política ou a ação sem sentido dão a impressão de frenesi, a “correria” do cotidiano. A compulsão a agir, ação que não sabe de seu objetivo, toma conta de tudo. Se não sei o que faço é porque não pensei no que faço, mas já não posso pensar porque alguém pensou no meu lugar. Se “a cultura contemporânea confere a tudo uma ar de semelhança” é o fim da diferença, fim do pensamento, fim do desejo, o que a IC nos vendeu.
A industrialização da ética é o que está em jogo na IC. Ética não é apenas a forma do comportamento como a moral, mas o modo de questioná-lo. É a ação que se dá em nome do pensamento livre. A ética só aparece se a pergunta “o que devo fazer?” for respondida levando em conta o sentido de toda ação em relação a outro. Se não há ética é porque não há reflexão sobre a ação e nem a chance de refletir sobre. A passagem da “indignação moral” - a emoção passageira e repetitiva em relação ao que, em termos morais, nos escandaliza - à “reflexão ética” é proibida na industrialização da ética. Esta indústria está na base fundadora da sociedade, e claramente associada aos meios de comunicação, à escola, à família, aos poderes executivo, legislativo e judiciário e, infelizmente, mesmo aos intelectuais que se omitem de sua tarefa de esclarecimento. Seu produto inquestionado são valores e jargões que se repetem sem cessar. Infelizmente contra a falta de ética só uma ética mais forte pode vingar, assim como contra a ignorância apenas um conhecimento mais profundo pode ser uma arma.

A industrialização da ética e a repetição

A industrialização da ética se reproduz pela repetição. O que Nietzsche entendeu como a verdade por efeito de repetição(4) é o mecanismo básico desta indústria. Repetimos seus slogans sem ponderação: “o poder corrompe” diz-se para evitar que todos o queiram, “é preciso ser feliz” diz-se para desviar a atenção sobre o sentido mais complexo da vida, “a competitividade é boa” diz-se com o mesmo objetivo de dominar as relações e evitar a união solidária, forma de poder contrária à violência e à dominação. Palavras sérias como “felicidade”, “direito”, “dignidade” e a própria “ética” são transformadas em meras palavras mágicas sem conteúdo. O poder da Indústria é só o que se confirma: quanto mais repito mais transformo a palavra em marca registrada, aumento seu valor de ilusão.
A crítica abstrata ao pessimismo e o elogio ao otimismo também são elementos cruciais desta industrialização do pensamento e da ação. Confundimos pessimismo com niilismo, achando que o primeiro é a mera negação da vida (que nem o niilismo, como corrente do pensamento, é) e perdemos com isso o seu potencial de alerta. Ou será que a indústria da ética também já nos habituou de tal forma ao que o pessimismo seria o único a criticar? Benjamin disse ser preciso organizar o pessimismo (5), isso significava olhar para o que é péssimo sem simplesmente tornar-se cativo dele. O pessimismo como atenção e alerta da reflexão é hoje uma atitude de cuidado do pensamento com a ação, com a prática. Atualmente é o único caminho para a evolução da discussão sobre a ética.


(1) Adorno, Theodor e Horkheimer, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradução de Guido Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
(2) Tema que já era central na obra de Benjamin. Ver Experiência e Pobreza. In Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas I. IV edição. P. 114-119.
(3) Duarte, Rodrigo. Teoria Crítica da Indústria Cultural. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2003.p.54.
(4) Nietzsche, Friedrich. Sobre Verdade e Mentira no sentido extramoral. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1997.
(5) Benjamin, Walter. O Surrealismo. O ultimo instantâneo da inteligência européia. In Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas I. IV edição. P. 33.

Fonte: Site da Marcia Tiburi, a autora do texto.
http://www.marciatiburi.com.br/textos/esclareceropessimismo.htm

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Revista Piauí

http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=663&pag=4
Coloquei o link não da Revista, mas de uma matéria que está na revista sobre a Rodoviária. Imperdível!
A sensibilidade e a complexidade que faz falta no jornalismo da grande mídia.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Vida Tempo

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acho que a vida anda passando a mão em mim
a vida anda passando a mão em mim
acho que a vida anda passando
a vida anda passando
acho que a vida anda
a vida anda em mim
acho que há vida em mim
a vida em mim anda passando
acho que a vida anda passando a mão em mim


e por falar em sexo quem anda me comendo
é o tempo
na verdade faz tempo mas eu escondia
porque ele me pegava à força e por trás

um dia resolvi encará-lo de frente e disse: tempo
se você tem que me comer
que seja com o meu consentimento
e me olhando nos olhos

acho que ganhei o tempo
de lá pra cá ele tem sido bom comigo
dizem que ando até remoçando

Do livro Pensamento do Chão, de Viviane Mosé.

Obs: O texto é centralizado, o que, na minha cabeça, dá o formato de uma ampulheta. Mas graças a imbecialidade dessa ferramenta, não consigo retomar o texto em seu formato original.

Fonte: http://noitesmaldormidas.arteblog.com.br/47404/Vida-Tempo-poema-de-Viviane-Mose/

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Profanação: ato metafísico e democrático - Brevíssima análise de um detalhe na obra de Giorgio Agamben

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Revista Cult Junho 2007

A história da filosofia podia ser a história de sua terminologia, disse um dos filósofos mais críticos de que temos notícia, autor da obra Stichworte, termo que se traduz no que em português se expressa por “farpas" (1). Vilém Flusser disse algo parecido ao defender que não existem conceitos sem palavras e que, portanto, podemos ir direto ao que interessa (2). Palavras-Chave de Raymond Williams, publicado no Brasil há pouco, revela a mesma preocupação (3). Não é diferente em As Palavras e as Coisas quando Foucault conecta a vontade de dizer que se condensa na palavra à impossibilidade de dizer que está sempre do lado da coisa (4). Em todos os casos se trata de ter atenção à análise histórica dos termos nos quais se materializam idéias e conceitos, relações e intenções. Toda palavra é um sistema de pensamento inteiro e compactado. O fragmento na sua verdade sistemática e imediatamente expressa. Espécie de botão de flor do pensamento, mais do que semente.
Afim aos mesmos tons é o livro Profanações de Giorgio Agamben cuja edição brasileira recém nasceu (5). A começar pelo título, tem-se o exemplo do alcance que a análise de uma palavra pode oferecer em termos que superam em muito o estado de dicionário que um dia o poeta criticou – sem que a análise crítica sobre a verdade e a beleza do dicionário fosse sua questão - e alertam para o fato de que toda palavra carrega com ela um universo onde o lingüístico faz sua morada, o político. Não é a palavra apenas um nome vago que designa o mundo como o mero dedo de Crátilo que apavorava Sócrates ao apontar para as coisas destituindo a linguagem de sua função inaugural. A palavra é corpo que sobrevive à história e se revela a camada mais sutil de sua sedimentação. O poeta radical é o mago da palavra porque conhece a lei do seu funcionamento e promove a sua desarticulação na invenção da poesia. O filósofo, quando nasce, faz o mesmo para logo, em nome da dúvida, abandonar a poesia sempre ameaçada em virar certeza.
Dos enunciados de Agamben, sobressaem termos como gênio e magia, paródia e felicidade. Por meio de palavras, sem ater-se ao dado etimológico, ele procura a verdade dos conceitos e das ações. É o termo profanação o melhor modelo que evidencia o modo como a palavra - mais que roupa ou pele que reveste o conceito - é ela mesma que ensina a pensar e, nisto, desenha um método, um procedimento filosófico de descortinamento do objeto de análise pela atenção ao que lhe é mais superficial, seu nome próprio.
No capítulo Elogio da Profanação uma análise do verbo profanar a partir da definição do jurista romano Trebácio, põe o leitor diante da reunião da idéia e da ação concentrados na palavra. Profanar quer dizer devolver à esfera humana o que tinha sido sacralizado, o que fora separado dos homens. Profanar é, pois. restituir ao uso humano. É tornar comum. É repor o sacro à ordem da realização democrática. Agamben realiza a profanação filosófica com seu texto, mostrando que a boa filosofia é análoga ao gesto de restituição democrática. Ele facilita a compreensão, pela exposição do complexo. Não por torná-la rasa. Daí a diferença do que é filosofia e outros métodos possíveis.
O gesto da profanação envolve a posição democrática do “uso”. Agamben realiza a crítica do pior do jargão capitalista, o consumo. Só por tocar nesta seara Agamben desce com suas pinças eruditas à pocilga do pensamento e da ação para recolher pérolas. Com isto ele demonstra a verdade do seu método: profanar é falar do lixo, do resto, do banal, do que se tem como menor, do que dá vergonha e, todavia, mostrar seus profundos veios metafísicos e políticos, cujo conhecimento é o tom exato do seu significado. Profanar é romper com o mero gosto em cuja vigência a sociedade impede a expressão. É a profanação da linguagem que cria a literatura, a profanação da forma que cria a arte, a profanação da moral que cria a ética. A profanação dos conceitos cria a filosofia.
Uso X Abuso: dimensões da relação humana com o que existe
Que filósofo de respeito – leiamos com ironia - ainda poderia se envolver com a vulgaridade do jargão e ainda descobrir por meio de uma análise erudita – e destoante -toda a sua lógica? É assim que, para falar da forma do uso que designa a profanação, Agamben recorre ao cânone teológico do consumo como impossibilidade do uso fixado pela Cúria Romana em seu conflito com a Ordem dos Franciscanos que, no século XIII, reivindicava na lógica da “altíssima pobreza” a “possibilidade de um uso totalmente desvinculado da esfera do direito”, o uso de fato. É João XXII quem argumenta que o uso que se dá no consumo dos bens sempre é da ordem da propriedade. Tal uso se define no próprio ato de seu consumo, de sua destruição, de seu “abusus”. O consumo é a destruição da coisa e, por conseqüência, impedimento de seu uso já que a substância da coisa aniquila-se nele. O consumo é, portanto, algo que só existe no instante de seu desaparecimento. O uso, diferente do consumo, é o das coisas que não podem ser objeto de posse. O uso de algo que não se podia ter era uma contradição para o papa. Para Agamben, a verdadeira natureza da propriedade surge como dispositivo de deslocamento do livre uso dos homens para uma esfera separada que constitui o direito.
É neste ponto que o consumo como direito de posse tem relação com o sagrado como esfera das coisas que foram separadas do uso humano. A “infelicidade dos consumidores” do capitalismo, diz o ousado pensador, advém da incorporação da “não-usabilidade e da crença de que exercem seu direito de propriedade sobre os mesmos, porque se tornaram incapazes de os profanar”. Aquele que compra e consome, não usa.
Usar, por sua vez, é gesto que a sociedade ignorante de seus próprios símbolos, perdeu de vista. A criança usa palavras e coisas quando as transforma em brinquedos realizando o sentido da profanação. Ela evita a destruição pelo uso que se renova a cada brincadeira. A impossibilidade de usar é a mesma impossibilidade de profanar que surge como uma espécie de doença conceitual e emocional contagiosa que vigora em tempos de capitalismo dando-lhe sustentação. O fetiche da mercadoria se explica aí: o sacro é aquilo que separado torna-se santo, mas também escória e tabu, vide o significado do homem sagrado em sua obra (6). A filosofia que, desde seus primórdios se retirou da esfera do útil, do mero serviço, foi para poder morar na esfera do uso como brinquedo, como potencialidade, como profanação necessária do poder do pensamento que ao se sacralizar impede o pensamento livre pela proibição do novo modo de pensar.
A principal atitude que uma ética atual – aquilo que Agamben chama “tarefa política da geração que vem” - deve colocar em cena é a da profanação da religião do capitalismo de que fala Benjamin, da religião do espetáculo, da religião da pornografia, da política como corrupção, da religião da democracia banal, da religião da ciência, da universidade, de tudo o que se coloca como dispositivo para realizar o sonho do “improfanável”. De tudo o que quer sustentar o sagrado sem aceitar sua dialética com o que lhe nega.



(1) Adorno, Theodor. Palavras e Sinais. Modelos Críticos 2. Trad. Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995.
(2) Flusser, Vilém. A dúvida. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999.
(3) Williams, Raymond. Palavras-Chave. Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007.
(4) Foucault, Michel. As Palavras e as Coisas. Trad. Salma Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
(5) Agamben, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
(6) Agamben, Girogio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2002.

Fonte: Site da autora, Marcia Tiburi - http://www.marciatiburi.com.br/textos/profanacao.htm