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quarta-feira, 25 de julho de 2012

É preciso consumir mais

Rating:★★★★★
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Fonte: Site Quadrado dos Loucos. Por Bruno Cava.

“Retirar-se do mercado mundial, numa curiosa renovação da ‘solução econômica’ fascista? Ou ir no sentido contrário, isto é, ir mais longe no movimento do mercado? Não retirar-se do processo, mas ir mais longe, acelerar o processo, como dizia Nietzsche: a esse respeito, nós ainda não vimos nada.” – Gilles Deleuze e Félix Guattari, em O anti-Édipo

“Talvez o caminho não seja consumir menos, mas de um jeito diferente; canalizar nossos desejos de outras maneiras, para outros e novos objetos. O socioambientalismo fracassará, se a sua mensagem às pessoas for: ‘desejem menos” – João Telésforo, em Do ambientalismo catastrofista à ecologia dos desejos (no Brasil & Desenvolvimento)

“Consumir é produzir. Já consumir o consumo é cortar o circuito.” – Eduardo V. de Castro, via tuíter [Hélio Oiticica também falava em consumir o consumo]

“Para quebrar Belo Monte, índios fazem o que os operários fordistas faziam em 1969: nós queremos tudo!” – Giuseppe Cocco, via tuíter

“O capital não cria apenas objetos para os sujeitos consumirem, mas cria também sujeitos para os objetos de consumo.” – Karl Marx



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Uma coisa que sempre me incomodou em debates críticos ao consumismo é como geralmente se dão entre pessoas bem situadas. Estou falando de longos debates sobre como na nossa sociedade se consomem coisas demais, como a nossa cultura ocidental é baseada na superprodução do supérfluo, no desperdício. Mas não é tão polêmico quanto parece à primeira vista. Nas universidades, em programas da TV, em espaços ongueiros, as rodas de debate a respeito tendem muito rapidamente a colher a unanimidade dos participantes. Terminam por concordar como só uma mudança de mentalidade pode, quem sabe, ajudar a evitar a catástrofe civilizacional.

Nada como a consciência ambiental para dormir tranquilo. São pessoas assim que, sem nenhum pudor em exibir a própria auto-indulgência, teriam se elevado a um estado de consciência superior, e agora se investem da missão de conscientizar os demais de seu papel e sua dívida, diante da iminência do colapso. Até posso entender que alguns ricos padecidos da má consciência de classe resolvam levar uma vida mais globalmente consciente e ecologicamente responsável. Nada mais prafrentex do que economizar água, fazer coleta seletiva, alimento orgânico, ir ao trabalho de bicicleta. Ainda emagrece, né. Me refiro aos críticos do consumismo tão bem familiarizados com bons restaurantes e hotéis, apartamentos confortáveis, carros pessoais, táxis, notebooks, escovas progressivas e viagens a Paris. Mas eu pessoalmente nunca vi pobre anti-consumo. Desconfio, aliás, que a pauta do consumismo não apele entre aqueles que só podem consumir pouco. Essa pauta nunca me convenceu de não ser cínica. Ou sutilmente reacionária. A mim, soa de extrema perversidade recomendar aos pobres que consumam menos. Que eles tenham de pensar noutro modo de vida, e querer coisas diferentes do que os ricos sempre quiseram, tiveram acesso e usufruíram. Justo agora, quando a maioria da população brasileira pode consumir alguma coisa, um começo de mudança real, dizem-lhe que é pecado.

Hoje, o discurso da austeridade enlaça governos de países em crise e eco-esquerdistas, do Banco Mundial ao SWU, todos por um querer mais comedido. Um topos conservador em tempos de crise global. Dá até a pensar: por que se mobilizar por renda, distribuição da riqueza ou melhores salários, se o bom mesmo é consumir menos? Às elites, obviamente, apetece prescrever o menor consumo porque assim o pobre se contentará com as migalhas de sempre. Menos materialistas, os eco-esquerdistas por sua vez sustentam que o Capital traria dentro de si uma potência maligna. A luta anticapitalista é outro nome para a cruzada dos cidadãos de bem contra a corja no poder. O processo do capital se expandiria não pela força das contradições de seu regime de acumulação, segundo a história e a geografia da luta de classe (Marx); mas por um ânimo inescrupuloso. Por meio da publicidade de massa, o capital mefistofélico atrai as almas simplórias e desinformadas. Seu encanto traga populações inteiras, ávidas pelo ouro de tolos, cativadas por vitrines, ídolos pop, merchãs de novela e mensagens subliminares. A sociedade de consumo arrasta o desejo para o aspecto objetal-alienado, e termina por conspurcar a bondade intrínseca, — seja do espírito humano, da natureza sacrossanta, da divina Gaia a que estamos integrados.

Quanto elitismo. Mas quem sou eu para pretender dirigir o desejo dos outros? que consciência é esta que me levaria a um entendimento mais profundo sobre a condição de existência e resistência de cada um, dos pobres, das raças e minorias?

Para que o capitalismo funcione, é preciso deixar que as pessoas desejem, e incentivá-las a querer mais. Menos a querer determinados objetos do que modos de vida, do que maneiras de se conectar, associar, enredar e maquinar objetos e sujeitos entre si. Um rendimento do desejo. A telenovela não vende somente uma marca de roupa, mas um mundo em que essa marca faz sentido e os sujeitos que consomem esse estilo existem ou podem vir a existir. O comercial de plano de saúde embute uma concepção de família, de bem estar, de segurança. A mulher da propaganda de cerveja precede a própria cerveja. Todo bom marqueteiro sabe como antes se deve criar o consumidor do que o produto a consumir-se. Num mercado diversificado, isto significa forjar mundos muitas vezes contraditórios e inconciliáveis, onde o consumidor é muitos. Como ser ao mesmo tempo a mãe do comercial de margarina e a vadia da cerveja? Só o desejo permite uma coisa dessas.

Portanto, a esquizofrenia capitalista repercute a potência infinita do querer e nesse sentido o capitalismo funciona deixando passar, canalizando os fluxos do desejo, para lhes extrair poder e dinheiro. O segredo do negócio está em animar desejo e consumo, uma operação primeiramente publicitária, mas igualmente política e ética. Reside em desenvolver aparelhos de captura capazes de cristalizar essas conexões e cadeias desejantes entre sujeitos e objetos parciais, moventes, em suma, conformar a atividade subjetiva maquinadora de mundos e formas de vida e entrecruzamentos deles, numa palavra: a subjetividade. Eis aí a grande sabedoria da classe capitalista: não se opor, negar ou moralizar o desejo, mas surfar na produção de subjetividade, na vida mesma, medi-la e vendê-la. O capitalismo não cai no maniqueísmo. Joga com o desejo e trapaceia. E a trapaça pode ser que funcione visto que as pessoas gostam de ser “enganadas” (porque no fundo não o são), jamais porque a carne é fraca. O bom e velho também quero!, que nenhum esquerdismo vai desenganar. E eis o porquê, possivelmente, do fracasso de todos os moralismos vermelhos ou verdes que já sucederam: lutam contra o desejo, uma luta derrotada de saída. Pretendem castrar com sucessivos você não pode querer isto ou aquilo, assim ou assado.

Se o socialismo real e o ecologismo catastrofista falharam e continuam falhando, quem sabe é porque buscam exigir das pessoas que desejem menos, que sejam mais ascetas. Opõem uma frágil consciência culpada à força invencível que move a natureza e a cultura em todas as suas dimensões. Ingenuidade ou outro tipo de engodo da classe dominante? O fato é que as pessoas estavam cansadas de prateleiras vazias, da disciplina “revolucionária”, da improdutividade. E não só porque queriam Hollywood, McDonald´s e dançar moonwalk, mas porque queriam poder querer. Queriam explorar o querer mesmo sem a moral puritana impregnada por todo o lugar.

O capitalismo é mesmo paradoxal. Se precisa e incentiva consumo, que é sobretudo uma questão de subjetividade, ele pode sair do controle. A canalização dos fluxos libidinais se desarranja pela própria natureza imprevisível e criativa do desejo. Nunca sabemos por que desertos errará o desejo em nós. Os mundos e formas de vida desbordam dos esquemas em que deveriam funcionar regulados pelo trabalho e a propriedade. Outros usos aparecem, outras maneiras mais libertas de produzir, compartilhar e viver bem. Sempre está pintando uma coisa nova, um jeitinho diferente. Não por acaso, as empresas não cessam de pesquisar esses novos usos, atrás de mercados pouco explorados. A exploração da música não entrou em crise junto com a indústria fonográfica, o modelo de negócio é que mudou.O capitalismo tenta se adaptar como pode. Isto não significa que, no final das contas, não haja escapatória para as garras do capital, num eterno jogo de gato e rato. Mas sim que a luta se dá por dentro do consumo mesmo, uma disputa de subjetividades antagônicas, luta de classe. É o que Deleuze e Guattari chamam de “máquinas de guerra revolucionária”, isto é, formações subjetivas de produzir e viver que escapam dos aparelhos de captura dos fluxos do desejo.

Isso tudo é muito político. Basta pensar como os pobres conseguem fazer muito com pouco. O máximo do mínimo, o luxo do lixo, a arte da rua. Como são criativos em reinventar os usos e a si mesmos, na relação social, na maneira com que cooperam e superam as dificuldades e constrangimentos. Por isso, a condição do pobre não pode ser colocada em segundo plano nas discussões sobre o consumo, como se não houvesse uma tremenda desigualdade socioambiental onde quer que olhemos. Se ele sempre quer mais, não é porque algo lhe falte e isso o exaspere. Não porque inveje o consumo de madame, a vida-lazer do playboy e da patricinha. Poucas coisas podem ser mais reacionárias do que dizer que o pobre quer ser igual ao rico, que, ao ter acesso à renda e consumo, elitize-se e embraqueça. O pobre quer mais porque pode mais, porque tem direito, e esse direito ele afirma e exerce quando se mobiliza, luta e resiste. Porque pode e quer devorar inclusive o rico, com toda a sua parafernália de consumos impotentes e subjetividades miseráveis, tudo isso que o define como rico em primeiro lugar. Consumir o consumo, como propunham Andy Warhol e Hélio Oiticica, só pode estar nessa libertação do desejo por dentro do consumo, plano de síntese do modo de produção capitalista e lugar em que se manifesta com premência a sua esquizofrenia. Assim o capitalismo radicaliza a sua crise, na luta de classe. Longe da paranoia de rico, a catástrofe passa a ser da classe capitalista, do próprio rico, pondo em xeque as estratégias de manipulação da falta e produção de miséria. Trata-se de acelerar o processo de consumo, intensivamente, do viver enquanto multiplicação real de sujeitos, objetos e seus arranjos produtivos plurívocos, sua floresta louca de possibilidades e travessias.

A genuína invectiva revolucionária é consumir mais, sempre mais, muito mais.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Partilha do sensível

Rating:★★★★★
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A associação entre arte e política segundo o filósofo Jacques Rancière

08/08/2009

Gabriela Longman e Diego Viana
Fotos: Ilana Lichtenstein

Para Jacques Rancière, política e arte têm uma origem comum. Em suas obras, o filósofo francês desenvolve uma teoria em torno da "partilha do sensível", conceito que descreve a formação da comunidade política com base no encontro discordante das percepções individuais. A política, para ele, é essencialmente estética, ou seja, está fundada sobre o mundo sensível, assim como a expressão artística. Por isso, um regime político só pode ser democrático se incentivar a multiplicidade de manifestações dentro da comunidade.

Recém-lançado na França, seu último livro, Le spectateur émancipé (O espectador emancipado - ainda inédito no Brasil),
debate a recepção da arte e a importância - ética e política - da posição do espectador. O volume é uma compilação de conferências realizadas por ele nos últimos anos, uma delas no Sesc, em São Paulo. Em 2002, uma de suas principais obras, O mestre ignorante, foi traduzida e distribuída gratuitamente entre professores em formação no Rio de Janeiro. Trata-se da história de Joseph Jacotot, que, no século 19, ensinou a língua francesa a jovens holandeses da classe operária. Detalhe: nem mesmo o professor conhecia o idioma de Zola.

Originalmente discípulo do filósofo marxista Louis Althusser e coautor de Ler O capital, de 1965, Rancière afastou-se do pensamento do mestre nos anos 1970. Rejeitou a ortodoxia marxista da época, mas jamais deixou de se considerar um homem de esquerda. Até se aposentar em 2000, foi professor da Universidade Paris 8, fundada para acolher formas de pensamento que não encotravam espaço no ambiente da Sorbonne. Sua ligação com o Brasil é antiga. Sua esposa, Danielle Ancier, era professora de filosofia na USP em 1968. Eles se conheceram quando ele esteve no país para uma conferência sobre Ler O capital.

O filósofo nos recebeu em seu apartamento no nono arrondissement parisiense. Perto de completar 70 anos, afirma que "o presente não é muito alegre", mas critica as visões saudosistas de parte da esquerda. Defensor do ativismo social, ele comenta a ascensão dos ecologistas e questiona a ideia de um mundo dominado por imagens. Convidado para um colóquio no Rio de Janeiro pelo Ano da França no Brasil, ele recusou em função de um conflito de agenda, mas concendeu a seguinte entrevista para a CULT.


CULT - Seu último livro, Le spectateur émancipé, menciona o teatro, as artes performáticas, a fotografia, as artes visuais e o cinema, mas não fala de TV. O espectador de TV também é ativo?

Jacques Rancière - No meu livro, eu tentei reinterpretar a relação das pessoas com o espetáculo sem me interessar tanto pela questão das mídias. Mas me centrei mais na ideia, tão comum, de que "agora não há nada mais além da TV... não há mais arte, não há mais cultura, não há mais literatura, nada".

Há casos em que o espectador está na frente da TV mudando de canal sem prestar atenção ao que está vendo. Eu me preocupei mais com o cinema, as artes plásticas, nos quais uma relação forte do olhar está pressuposta. A TV, de modo geral, não pressupõe um olhar forte, mas um olhar alienado ou distraído.

No espetáculo, o espectador de teatro é levado a trabalhar, porque aquilo que ele tem à sua frente o obriga a um trabalho de síntese. É preciso sair de uma peça, de uma exposição ou do cinema com certa ideia na cabeça, o que não necessariamente é o caso da televisão, em que as coisas podem simplesmente passar.

Já um lugar onde os espectadores se encontram, para as artes performáticas, por exemplo, implica um recorte fechado no tempo. Não é uma questão de suporte, mas do tipo de atitude e de atenção criadas. Podemos nos colocar na frente de um filme de TV com a postura de quem está no cinema. Nesse momento, nós agimos como o espectador de cinema.


CULT - O senhor rejeita a ideia de estetização da política que encontramos em Walter Benjamin. Como podemos interpretar a manipulação das sensações dentro do campo político? Por exemplo, o incentivo ao medo do terrorismo, a apresentação de políticos como mercadorias não seriam maneiras de estetizar a relação das pessoas com o poder político?

Rancière - Penso que a política tem sempre uma dimensão estética, o que é verdade também para o exercício das formas de poder. De certa maneira, não há uma mudança qualitativa entre o discurso em torno do terrorismo hoje e o discurso midiático contra os trabalhadores no século 19, que dizia que os operários contestadores cortavam pessoas em pedaços. Sempre houve, digamos, uma série de discursos organizados pelo poder. Eventualmente, eles serviram como forma de ilustração.

Não há novidade radical. A estética e a política são maneiras de organizar o sensível: de dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos. Para mim, é um dado permanente. É diferente da ideia benjaminiana de que o exercício do poder teria se estetizado num momento específico. Benjamin é sensível às formas e manifestações do Terceiro Reich, mas é preciso dizer que o poder sempre funcionou com manifestações espetaculares, seja na Grécia clássica, seja nas monarquias modernas.

Há um momento em que é preciso distinguir duas coisas: de um lado, a adoção de certas formas espetaculares de mise-en-scène do poder e da comunidade. De outro, a ideia mesma de comunidade. É preciso saber se pensamos a comunidade política simplesmente como um grupo de indivíduos governados por um poder ou se a pensamos como um organismo animado.
Na imaginação das comunidades há sempre esse jogo, essa oscilação entre a representação jurídica e uma representação estética. Mas não creio que se possa definir um momento preciso de estetização da comunidade.
Por exemplo, o nazismo, que é usado frequentemente como exemplo de política estetizada, na verdade também recuperou a estética de seu tempo. Pense nas demostrações dos grupos de ginástica em Praga nos anos 1930. Eram associações apolíticas ou absolutamente democráticas, com a mesma estética que encontramos no nazismo.
Para mim, é preciso tomar distância da ideia de um momento totalitário da história marcado especialmente pela estetização política, como se pudéssemos inscrever isso num momento de anti-história das formas estéticas da política e das formas de espetacularização do poder.

CULT - Uma das críticas mais frequentes à arte contemporânea é a impossibilidade de definir o que é uma obra de arte e o que não é. O senhor escreve que, "para que uma maneira de fazer técnica seja qualificada como artística, primeiro é preciso que seu tema o seja". Como definir a obra de arte ou a arte em si?
- Uma das críticas mais frequentes à arte contemporânea é a impossibilidade de definir o que é uma obra de arte e o que não é. O senhor escreve que, "para que uma maneira de fazer técnica seja qualificada como artística, primeiro é preciso que seu tema o seja". Como definir a obra de arte ou a arte em si?

Rancière - Não definimos a obra de arte como "obra". O que eu digo, no fundo, é que uma forma de arte é sempre ligada à dignidade dos temas.
O romance torna-se grande arte quando a vida de qualquer um se tranforma em arte. A fotografia no cinema não é só uma forma de mostrar o visível, mas mostra que uma cena de rua ou a vida de qualquer pessoa tem direito de ser citada na arte.
A partir do momento em que tudo é representável, não há mais especificidade. A especificidade não será dada, enfim, pela técnica em particular, mas pelos códigos de apresentação. Mais uma vez, não creio que haja uma radicalidade nova.
Há algumas décadas, as análises de Arthur Danto vieram dizer que somente a instituição é quem faz a obra de arte. De certa maneira, isso sempre foi verdadeiro. A "representação da representação" ligada a certo tipo de procedimento ou de instituição sempre foi necessária para identificar uma coisa como pertencente ao universo da arte.


CULT - Mas, hoje, mesmo uma grande parte do público questiona o fato de estar vendo "arte". Não há uma maior distância entre a apresentação e a recepção?

Rancière - Vivemos hoje em dia a contradição máxima, qualquer coisa pode entrar na esfera da arte. Mais do que nunca, a arte, hoje, se constitui como uma esfera à parte, com as pessoas que a produzem, com as instituições que a fazem circular, seus críticos.
Numa época em que os afrescos de uma igreja eram o que se considerava arte, essa questão simplesmente não se colocava, porque a arte não existia como instituição. É a contradição constitutiva do regime estético.


CULT - A última Bienal de São Paulo tinha um andar inteiramente vazio, simbolizando o vazio na arte. Como podemos interpretar esse vazio? O senhor fala do fim da arte utópica. O vazio seria a arte "atópica"?

Rancière - Podemos fazer o vazio significar várias coisas. Há artistas que organizam retrospectivas de suas obras, e o que vemos? Nada. Há apenas guias que falam. Há muitas possibilidades. Podemos conceber uma exposição sobre o tema do vazio no modernismo duro. Ou então imaginar uma exposição pós-moderna desencantada "mostrando o vazio porque a arte contemporânea é vazia". Ou ainda criar uma exposição em termos conceituais, em que efetivamente substituímos as obras pelo discurso sobre as obras, e assim por diante.

Mas a verdade é que eu nunca estou muito interessado por esse tipo de estratégia. Se partimos da ideia de que não há nada, é preciso mostrar que não há nada, e mostrar que o que há não vale nada, e assim por diante.

São estratégias eficazes, mas não tão interessantes. Quando não sabemos muito bem como qualificar algo, sempre podemos fazer uso do "vazio". Eu me lembro da Bienal de Veneza de dois anos atrás, em que havia uma multiplicidade de obras neo-naïf, neoexpressionistas, como iconografia provocante. Há multiplas estratégias.


CULT - O senhor critica muitas vezes a separação a priori entre atividade e passividade. Nesse contexto, como analisa as tecnologias colaborativas que estão surgindo na atividade artística?

Rancière - O que digo não é especialmente ligado à arte colaborativa. Em primeiro lugar, toda atividade comporta também uma posição de espectador. Agimos sempre, também, como espectadores do mundo.
Em segundo lugar, toda posição de espectador já é uma posição de intérprete, com um olhar que desvia o sentido do espetáculo. É minha tese global, que não está ligada só a uma arte interativa.

Todas as obras que se propõem como interativas, de certa maneira, definem as regras do jogo. Então, esse tipo de obra pode acabar sendo mais impositivo do que uma arte que está diante do espectador e com a qual ele pode fazer o que bem entender.
Podemos dizer, então, que as obras estão no museu, na galeria, na internet, e o espectador é convidado a colaborar. Mas isso é só mais uma forma de participação, e não necessariamente a mais interessante.


CULT - O senhor recupera o lado político da literatura, graças a seu poder de reconfigurar os modos de existência, e evoca a passagem de Aristóteles em que ele diz que o ser humano é político porque possui o logos, ou seja, é capaz de fazer discursos. Hoje, os meios de publicação tradicionais, jornais, editoras etc. estão ameaçados por formas como blogs e redes sociais. Que tipo de mudanças podemos esperar na vida política com essas novas formas?

Rancière - Isso depende de até que ponto a internet define uma escritura específica. Para mim, na verdade, a internet define essencialmente apenas um modo específico de circulação da informação, que não nega as formas anteriores da escrita. Dá para consultar, numa infinidade de sites, as obras clássicas da literatura e da filosofia, ao mesmo tempo em que existe a linguagem SMS.

Tudo circula, cada vez mais rápido e com mais facilidade: da linguagem minimalista dos SMS aos livros todos, digitalizados pelas grandes bibliotecas. Muitas vezes, recuperam-se livros que não podem mais ser encontrados no papel. Desconfio sempre desse discurso de que o Google vai matar o livro. Não há motivo, porque podemos ler livros no Google.
Para pensar essa questão da política e da literatura na era da internet, precisamos primeiro pensar nas relações entre tipos de mensagem. A internet é, para mim, um suporte que não vem associado a um tipo de mensagem particular. Portanto, não deve causar grandes mudanças.

É diferente do que aconteceu com a chegada do cinema, por exemplo. Podemos constatar que a literatura não tem hoje o papel que tinha no século 19. Apesar do número enorme de romances publicados, poucos são os que remodelam a imagem do indivíduo e da comunidade. Esse papel foi assumido pelo cinema. A literatura oferecia uma capacidade de alargar as formas de percepção do mundo e da comunidade, ela agia sobre a visão e o sentimento de praticamente qualquer um. Hoje, quem faz isso é o cinema, a televisão, a internet.


CULT - Até há pouco tempo, havia Bush e Dick Cheney de um lado e, de outro, a Europa como uma espécie de guardiã do "bom senso" na política. Agora, os norte-americanos elegeram Obama e os europeus escolheram Sarkozy e Berlusconi, acompanhados por um fortalecimento geral dos partidos conservadores. Falando das eleições de 2002, o senhor disse que não se pode vencer a extrema direita associando-se ao consenso e às oligarquias. O ano de 2009 é a conclusão do que começou em 2002?

Rancière - Não acho que podemos comparar. Em 2009, foram eleições europeias. Se tomamos o caso da França, em 2005 houve o referendo da Constitição Europeia e a União triunfou.

Em 2007, Sarkozy chegou ao poder e renegociou os poderes dessa Constituição. Ele decidiu que não se submeteria ao referendo pois, segundo ele, havia questões importantes de Estado envolvidas. Esse é um primeiro ponto. É preciso dizer que falamos de 40% do eleitorado que votou e é preciso pensar nos 60% que não votou.

A mudança entre 2002 e 2009 é que a parte do corpo eleitoral que não votou está mais à esquerda. A vitória da direita está ligada mais ao fato de que o eleitorado de esquerda não se reconhece nos partidos de esquerda, do que numa conversão da população inteira ao sarkozismo. O eleitorado de direita está contente com o que tem, está contente com Sarkozy e Berlusconi.

O eleitorado de esquerda não está satisfeito nem com os homens que estão poder, como Gordon Brown, nem com os que estão na oposição, e o melhor exemplo é a oposição socialista na França. Não acho que haja um crescimento extraordinário da direita e da extrema direita, mas sim um desencanto da esquerda.


CULT - Mas a crise gerou nos Estados Unidos um abandono da direita, representada por Bush...

Rancière - Houve uma mobilização enorme em torno das eleições norte-americanas. Uma série de pessoas que nunca tinham votado foi votar pela primeira vez, especialmente os negros.

No caso da Europa, foi o contrário. Há países onde apenas 20% dos eleitores votaram, e só 40% na França. Não acho que esse contraponto deva ser pensado em relação direta com a crise financeira. O resultado foi precipitado por ela, mas a ideia de Obama contra Bush remete a uma insatisfação anterior e mais fundamental do que a mera reação à crise econômica.


CULT - Os desinteresses pela política e pela arte seriam duas vertentes da mesma situação?

Rancière - Não tenho certeza, até porque o desinteresse pela política não é tão claro assim. Muita gente votou nas eleições presidenciais há dois anos. Nas eleições europeias, aparentemente muitas pessoas que normalmente votam não votaram, e muita gente que não costuma votar saiu de casa porque queria salvar o planeta. Esse é um primeiro aspecto.
O segundo é que não creio que haja um desinteresse pela estética, pela arte. As pessoas ainda vão ver Jeff Koons em Versalhes. O interesse pelos artistas ainda é muito importante. É verdade que de vez em quando há coisas desastrosas, teve La force de l'art no Grand Palais e estava sempre deserto, mas as pessoas se davam cotoveladas para ver Picasso.


CULT - Se a mudança do mundo passa por reconfigurações da maneira de pensar e entender a realidade, então ela não passa pelas revoluções como as conhecemos?

Rancière - Podemos pensar nisso baseados nas revoluções que já aconteceram. Em primeiro lugar, uma revolução é uma ruptura na ordem do que é visível, pensável, realizável, o universo do possível. Os movimentos de revolução sempre tiveram a forma de bolas de neve.

A partir do momento em que um poder legítimo se encontra deslegitimizado, parece que não está em condições de reinar pela força, porque caíram todas as estruturas que legitimam a força. Criam-se cenas inéditas, aparecem pessoas que não eram visíveis, pessoas na rua, nas barricadas. As instituições perdem a legitimidade, aparecem novos modos de palavra, novos meios de fazer circular a informação, novas formas da economia, e assim por diante. É uma ruptura do universo sensível que cria uma miríade de possibilidades.

Não penso as revoluções, nenhuma delas, como etapas de um processo histórico, ascensão de uma classe, triunfo de um partido, e assim por diante. Não há teoria da revolução que diga como ela nasce e como conduzi-la, porque, cada vez que ela começa, o que existia antes já não é válido.

Existe uma carta interessante de Marx, um pouco após 1848, quando os socialistas pensavam que as estruturas seriam abaladas mais uma vez. Ele diz que as revoluções não funcionam como os fenômenos científicos normais, são mais como os fenômenos imprevisíveis, os terremotos. Não sabemos como elas vão se comportar. Todas as teorias científicas, estratégicas, das revoluções demonstram isso.


CULT - Não podemos antecipá-las...

Rancière - Podemos prepará-las, mas não antecipá-las. A temporalidade autônoma de uma revolução, os espaços que elas criam não correspondem jamais ao quadro conceitual que temos no início.


CULT - A estratégia da esquerda tradicional é o confronto aberto, o que se opõe à sua teoria de reconfiguração estética da vida política...

Rancière - Temos de pensar na estética em sentido largo, como modos de percepção e sensibilidade, a maneira pela qual os indivíduos e grupos constroem o mundo. É um processo estético que cria o novo, ou seja, desloca os dados do problema.

Os universos de percepção não compreendem mais os mesmos objetos, nem os mesmos sujeitos, não funcionam mais nas mesmas regras, então instauram possibilidades inéditas. Não é simplesmente que as revoluções caiam do céu, mas os processos de emancipação que funcionam são aqueles que tornam as pessoas capazes de inventar práticas que não existiam ainda.

Não sou contra processos cumulativos, claro: se imigrantes ilegais têm capacidade de fazer greves e manifestações em condições perigosas para eles mesmos, isso define um alargamento não só do poder e das capacidades que temos, mas também do mundo no qual inscrevemos nossas ações e nosso pensamento.

A transformação dos mundos vividos é completamente diferente da elaboração de estratégias para a tomada do poder. Se há um movimento de emancipação, há uma transformação do universo dos possíveis, da percepção e da ação, então podemos imaginar como consequência também um movimento de tipo revolucionário, de tomada do poder. É claro que estamos falando do passado, porque o presente não é muito alegre.


CULT - Por que "o presente não é muito alegre"?

Rancière - O presente não é alegre porque não há esperanças fortes, digamos assim, que sustentem os movimentos existentes.

Por exemplo, a recente greve das universidades, que criou algumas formas de manifestação, digamos, particulares: cursos na rua, no metrô, invenções para deslocar para o campo da sociedade como um todo o problema que atinge o ensino superior francês.

Mas todas essas inovações foram completamente isoladas do ponto de vista da informação. O ano de 1968 existiu em parte porque o rádio cobria profundamente o movimento estudantil, sabia-se tudo que acontecia, havia uma geração de jovens repórteres de rádio que fez circular as informações.

Agora, aconteceu o contrário. A mídia aprisionou o movimento universitário numa espécie de paisagem hostil, gente que não entendia, que dizia coisas alucinantes. O partido majoritário de direita (UMP) criou associações de pais de estudantes exigindo o reembolso das inscrições porque os estudantes não tiveram aula. Isso era impensável há dez anos.

As forças da dominação e da exploração aumentaram consideravelmente seus meios de ação. Diante da crise financeira, não vimos nenhum discurso forte e sério contra o capitalismo, só esses pequenos grupos e partidos anticapitalistas com as mesmas ideias de décadas atrás. Nada que trouxesse esperança, movimentos com ideias alternativas a uma concepção hegemônica confrontada com suas próprias contradições.

O presente não é muito alegre porque as forças da dominação e da exploração fizeram progressos consideráveis. Estudei, por exemplo, o movimento operário do século 19, que criou novas formas de associação e de visão do mundo e que resultou em movimentos políticos que, como sabemos, falharam. Mas é certo que o universo dos possíveis foi amplamente reformulado. O povo em manifestação podia algo que não podia antes, diante da realeza.

No mesmo sentido, o operariado adquiriu novos poderes e direitos face aos patrões. As formas de comunicação se comunicam entre elas e criam um universo de circulação de energia, ideias, vontades. Foi muito marcante, em 1968, vermos surgirem de repente, em diversos lugares ao mesmo tempo, formas de contestação e de ação.

É claro que tudo isso caiu com o movimento, mas foi um momento em que os estudantes viram que podiam fazer o mesmo que os operários, e vice-versa. Criaram-se formas de ação completamente imprevistas. O que se transmite são aberturas do campo do possível, não do campo estratégico.


CULT - No interior de sua distinção entre política e polícia, como podemos interpretar o crescimento da vigilância e do controle? Por que fizemos essa escolha, em vez do encontro político?

Rancière - É a lógica do funcionamento dos Estados como instâncias de administração, e dos sistemas midiáticos: trocar a política pela identificação de problemas que precisam ser solucionados. Se não é o conflito que é motor, o motor é uma espécie de patologia da vida política que a administração se propõe a remediar. É o modo de funcionamento do Estado moderno.

De um lado, há uma pretensão ao objetivismo, identificar os problemas e as imperfeições da sociedade, e, de outro lado, precisamente essa espécie de objetivismo idealizado é, essencialmente, uma questão de gestão das opiniões.
Tomando a questão da segurança, qual é o balanço da gestão de Sarkozy, primeiro como ministro do Interior, depois como presidente da República? Um desastre.

Estamos muito menos seguros do que antes. O que está em funcionamento é a gestão da insegurança como um sentimento para agregar as pessoas em torno de um poder que gerencia a segurança.

Resisto muito às teorias paranoicas de "sociedade de controle" que dizem que "somos observados e controlados em todo canto". No 11 de Setembro, vimos como as pessoas podem passar tranquilamente diante das câmeras de segurança e fazer seu atentado sem serem molestadas. Acredito muito mais na ideia de uma administração ideológica, no sentido tradicional, dos sentimentos, particularmente no que diz respeito à segurança.

Criamos um sentimento de que vivemos na insegurança e precisamos de gestores de segurança. Isso cria uma legitimação de decisões autoritárias que podem se estender a praticamente tudo. No fim, a segurança acaba significando qualquer coisa. A pobreza dos subúrbios, a saúde dos idosos, os "países terroristas" pelo mundo, os poluidores, qualquer coisa.
A segurança vira um sentimento de perigo onipresente, extrapolando a ideia da proteção das "pessoas de bem" contra os maus de qualquer tipo. Isso cria estruturas de gestão estatais e interestatais, que não são necessariamente da ordem do controle minucioso ou do terror, mas de um sentimento flutuante.

Fonte: http://revistacult.uol.com.br/novo/entrevista.asp?edtCode=405A8403-AD34-47FE-9051-22017E8B23A9&nwsCode=0452FD78-D0E1-4275-95F6-6E5618F6F8AA

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Sexo, poder e a política da identidade (Michael Foulcault)

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Você sugere em seus livros que a liberação sexual não está tanto em colocar em jogo as verdades secretas sobre si mesmo ou sobre seu desejo do que em um elemento do processo de definição e construção do desejo. Quais são as implicações práticas desta distinção?
O que eu gostaria de dizer é que, em minha opinião, o movimento homossexual tem mais necessidade hoje de uma arte de viver do que de uma ciência ou um conhecimento científico (ou pseudocientífico) do que é a sexualidade. A sexualidade faz parte de nossa conduta. Ela faz parte da liberdade em nosso usufruto deste mundo. A sexualidade é algo que nós mesmos criamos - ela é nossa própria criação, ou melhor, ela não é a descoberta de um aspecto secreto de nosso desejo. Nós devemos compreender que, com nossos desejos, através deles, se instauram novas formas de relações, novas formas de amor e novas formas de criação. O sexo não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de aceder a uma vida criativa.

É, no fundo, a conclusão à qual você chega quando diz que devemos tentar tornar-nos gays e não nos contentar em reafirmar nossa identidade de gays.
Sim, é isto. Nós não devemos descobrir que somos homossexuais.

Nem descobrir o que isto queira dizer?
Exatamente, nós devemos, antes, criar um modo de vida gay. Um tornar-se gay.

E é algo sem limites?
Sim, claramente. Quando examinamos as diferentes maneiras pelas quais as pessoas têm vivenciado sua liberdade sexual - a maneira que elas têm criado suas obras de arte -, forçosamente constatamos que a sexualidade tal qual a conhecemos hoje torna-se uma das fontes mais produtivas de nossa sociedade e de nosso ser. Eu penso que deveríamos compreender a sexualidade em um outro sentido: o mundo considera que a sexualidade constitui o segredo da vida cultural criadora; ela é mais um processo que se inscreve, para nós hoje, na necessidade de criar uma nova vida cultural, sob a condução de nossas escolhas sexuais.

Na prática, uma das conseqüências dessa tentativa de colocar em jogo o segredo é que o movimento homossexual não foi mais longe do que a reivindicação de direitos civis ou humanos relativos à sexualidade. Isso quer dizer que a liberação sexual tem se limitado ao nível de uma exigência de tolerância sexual.
Sim, mas é um aspecto que é preciso afirmar. É importante, de início, para um indivíduo ter a possibilidade - e o direito - de escolher a sua sexualidade. Os direitos do indivíduo no que diz respeito à sexualidade são importantes, e mais ainda os lugares onde não são respeitados. É preciso, neste momento, não considerar como resolvidos estes problemas. Desde o início dos anos sessenta, se produziu um verdadeiro processo de liberação. Este processo foi muito benéfico no que diz respeito situações relativas às mentalidades, mas a situação não está definitivamente estabilizada. Nós devemos ainda dar um passo adiante, penso eu. Eu acredito que um dos fatores de estabilização será a criação de novas formas de vida, de relações, de amizades nas sociedades, a arte, a cultura de novas formas que se instaurassem por meio de nossas escolhas sexuais, éticas e políticas. Devemos não somente nos defender, mas também nos afirmar, e nos afirmar não somente enquanto identidades, mas enquanto força criativa.

Muitas coisas no que você diz lembram, por exemplo, as tentativas do movimento feminista, que deseja criar sua própria linguagem e sua própria cultura.
Sim, mas eu não estou seguro de que nós devamos criar nossa própria cultura. Nós devemos criar uma cultura. Devemos realizar criações culturais. Mas aí, devemos nos embater com o problema da identidade. Desconheço o que faríamos para produzir essas criações e desconheço quais formas essas criações tomariam. Por exemplo, eu não estou de todo certo de que a melhor forma de criação literária que possa atingir aos homossexuais sejam os romances homossexuais.

De fato, nós mesmos não concordaríamos em dizer isso. Seria partir de um essencialismo que nos devemos precisamente evitar.
É verdade. O que se entende, por exemplo, por "pintura gay"? E, entretanto, eu estou certo que a partir de nossas escolhas sexuais, a partir de nossas escolhas éticas podemos criar algo que tenha uma certa relação com a homossexualidade. Mas esta coisa não deve ser uma tradução da homossexualidade no domínio da música, da pintura - o que sei eu, novamente? - que penso não ser possível.

Como você vê a extraordinária proliferação, depois dos últimos dez ou quinze anos, das práticas homossexuais masculinas, a sensualização, se você prefere, de certas partes até então negligenciadas do corpo e a expressão de novos desejos? Eu penso, é claro, nas características mais surpreendentes daquilo que chamamos filmes gueto-pornôs, os clubes de S/M [sadomasoquismo] ou de fistfucking. É isto uma simples extensão, em uma outra esfera, da proliferação geral dos discursos sexuais depois do séc. XIX, ou antes se tratam de desenvolvimentos de outro tipo, próprios do contexto histórico atual?
De fato, o que gostaríamos de falar aqui é precisamente, penso, das inovações que implicam essas práticas. Consideramos, por exemplo, a "sub-cultura S/M", para retomar uma expressão cara a nossa amiga Gayle Rubin1. Eu não penso que o movimento das práticas sexuais tenha a ver com colocar em jogo a descoberta de tendências sado-masoquistas profundamente escondidas em nosso inconsciente. Eu penso que o S/M é muito mais que isso, é a criação real de novas possibilidades de prazer, que não se tinha imaginado anteriormente. A idéia de que o S/M é ligado com uma violência profunda e que essa prática é um meio de liberar essa violência, de dar vazão à agressão é uma idéia estúpida. Sabemos muito bem que essas pessoas não são agressivas; que elas inventam novas possibilidades de prazer utilizando certas partes estranhas do corpo - erotizando o corpo. Eu penso que temos uma forma de criação, de empreendimento de criatividade, dos quais a principal característica é o que chamo de dessexualização do prazer. A idéia de que o prazer físico provém sempre do prazer sexual e a idéia de que o prazer sexual é a base de todos os prazeres possíveis, penso, é verdadeiramente algo de falso. O que essas práticas de S/M nos mostram é que nós podemos produzir prazer a partir dos objetos mais estranhos, utilizando certas partes estanhas do corpo, nas situações mais inabituais, etc.

A assimilação do prazer ao sexo é, então, ultrapassada.
É exatamente isso. A possibilidade de utilizar nossos corpos como uma fonte possível de uma multiplicidade de prazeres é muito importante. Se consideramos, por exemplo, a construção tradicional do prazer, constata-se que os prazeres físicos, ou os prazeres da carne, são sempre a bebida, a comida e o sexo. É ai que se limita, me parece, nossa compreensão dos corpos, dos prazeres. O que me frustra, por exemplo, que se considere sempre o problema das drogas exclusivamente em termos de liberdade ou de proibição. Penso que as drogas deveriam tornar-se elemento de nossa cultura.

Enquanto fonte de prazer?
Enquanto fonte de prazer. Devemos estudar as drogas. Devemos experimentar as drogas. Devemos fabricas boas drogas - capazes de produzir um prazer muito intenso. O puritanismo, que coloca o problema das drogas - um puritanismo que implica o que se deve estar contra ou a favor - é uma atitude errônea. As drogas já fazem parte de nossa cultura. Da mesma forma que há boa música e má música, há boas e más drogas. E então, da mesma forma que não podemos dizer somos "contra" a música, não podemos dizer que somos "contra" as drogas.

O objetivo é testar o prazer e suas possibilidades.
Sim. O prazer também deve fazer parte de nossa cultura. É muito interessante notar, por exemplo, que depois de séculos as pessoas em geral - mas também os médicos, os psiquiatras e mesmo os movimentos de liberação - têm sempre falado do desejo e nunca do prazer. "Nós devemos liberar o nosso desejo", dizem eles. Não! Devemos criar prazeres novos. Então, pode ser que o desejo surja.

É significativo que certas identidades se constituam em torno de novas práticas sexuais tais quais o S/M? Essas identidades favorecem a exploração dessas práticas; elas contribuem também para o direito do indivíduo de entregar-se. Mas elas também não restringem as possibilidades do indivíduo?
Veja bem, se a identidade é apenas um jogo, apenas um procedimento para favorecer relações, relações sociais e as relações de prazer sexual que criem novas amizades, então ela é útil. Mas se a identidade se torna o problema mais importante da existência sexual, se as pessoas pensam que elas devem "desvendar" sua "identidade própria" e que esta identidade deva tornar-se a lei, o princípio, o código de sua existência, se a questão que se coloca continuamente é: "Isso está de acordo com minha identidade?", então eu penso que fizeram um retorno a uma forma de ética muito próxima à da heterossexualidade tradicional. Se devemos nos posicionar em relação à questão da identidade, temos que partir do fato de que somos seres únicos. Mas as relações que devemos estabelecer conosco mesmos não são relações de identidade, elas devem ser antes relações de diferenciação, de criação, de inovação. É muito chato ser sempre o mesmo. Nós não devemos excluir a identidade se é pelo viés desta identidade que as pessoas encontram seu prazer, mas não devemos considerar essa identidade como uma regra ética universal.

Mas até agora a identidade sexual tem sido muito útil politicamente.
Sim, ela tem sido muito útil, mas é uma identidade que nos limita e, penso eu que temos (e podemos ter) o direito de ser livres.

Queremos que algumas de nossas práticas sexuais sejam práticas de resistência no sentido político ou social. Como isso é possível, sendo que a estimulação do prazer pode servir para exercer um controle? Podemos estar seguros de que não haverá exploração desses novos prazeres? Estou pensando na maneira pela qual a publicidade utiliza a estimulação do prazer como um instrumento de controle social.
Não se pode nunca estar seguro de que não haverá exploração. De fato podemos estar seguros de que haverá uma, e que tudo o que se tem criado ou adquirido, todo o terreno que se tem ganhado será, em um momento ou outro, utilizado desta maneira. Parece ser assim na vida, na luta e na história dos homens. E eu não penso que isso seja uma objeção a todos esses movimentos ou a todas essas situações. Porém, você tem razão em assinalar que devemos ser prudentes e conscientes do fato de que devemos seguir a diante, ter também outras necessidades. O gueto S/M de São Francisco é um bom exemplo de uma comunidade que fez a experiência do prazer e que constituiu uma identidade em torno deste prazer. Esta guetização, esta identificação, este processo de exclusão produz efeitos de retorno. Eu não ousaria usar a palavra "dialética", mas não está muito longe disso.

Você escreve que o poder não é somente uma força negativa, mas também uma força produtiva; que o poder está sempre presente; e que onde há poder, há resistência, e que a resistência não é nunca uma posição de exterioridade em relação ao poder. Mas se é assim, como não chegarmos à conclusão de que estamos presos no interior dessa relação e de que não podemos, de uma certa maneira, escapar?
Na realidade, eu não penso que a palavra "presos" seja a palavra justa. Trata-se de uma luta, mas o que quero dizer quando falo de relações de poder é que estamos, uns em relação aos outros, em uma situação estratégica. Por sermos homossexuais, por exemplo, estamos em luta com o governo e o governo em luta conosco. Quando temos negócios com o governo a luta, é claro, não é simétrica, a situação de poder não é a mesma, mas participamos ao mesmo tempo dessa luta. Basta que qualquer um de nós se eleve sobre o outro, e o prolongamento dessa situação pode determinar a conduta a seguir, influenciar a conduta ou a não-conduta de outro. Não somos presos, então. Acontece que estamos sempre de acordo com a situação. O que quero dizer é que temos a possibilidade de mudar a situação, que esta possibilidade existe sempre. Não podemos nos colocar fora da situação, em nenhum lugar estamos livres de toda relação de poder. Eu não quis dizer que somos sempre presos, pelo contrário, que somos sempre livres. Enfim, em poucas palavras, há sempre a possibilidade de mudar as coisas.

A resistência está, então, no interior dessa dinâmica da qual se pode retirá-la?
Sim. Veja que se não há resistência, não há relações de poder. Porque tudo seria simplesmente uma questão de obediência. A partir do momento que o indivíduo está em uma situação de não fazer o que quer, ele deve utilizar as relações de poder. A resistência vem em primeiro lugar, e ela permanece superior a todas as forças do processo, seu efeito obriga a mudarem as relações de poder. Eu penso que o termo "resistência" é a palavra mais importante, a palavra-chave dessa dinâmica.

Politicamente falando, o elemento mais importante pode ser, quando se examina o poder, o fato de que, segundo certas concepções anteriores, "resistir" significa simplesmente dizer não. É somente em termo de negação que se tem conceitualizado a resistência. Tal como você a compreende, entretanto, a resistência não é unicamente uma negação. Ela é um processo de criação. Criar e recriar, transformar a situação, participar ativamente do processo, isso é resistir.
Sim, assim eu definiria as coisas. Dizer não constitui a forma mínima de resistência. Mas, naturalmente, em alguns momentos é muito importante. É preciso dizer não e fazer deste não uma forma decisiva de resistência.

Isso suscita a questão de saber de qual maneira, e em qual medida, um sujeito - ou uma subjetividade - dominado pode criar seu próprio discurso. Na análise tradicional do poder, o elemento onipresente sobre o qual se funda a análise é o discurso dominante, as reações a este discurso ou, no interior desse discurso, apenas os elementos subsidiários. Entretanto, se por "resistência" no seio das relações de poder entendemos mais que uma simples negação, não se pode dizer que certas praticas - o S/M lesbiano, por exemplo - são de fato a maneira na qual sujeitos dominados formulam sua própria linguagem?
De fato. Eu penso que a resistência é um elemento das relações estratégicas nas quais se constitui o poder. A resistência se apóia, na realidade, sobre a situação à qual combate. No movimento homossexual, por exemplo, a definição médica de homossexualidade constituiu-se em um instrumento muito importante para combater a opressão da qual era vítima a homossexualidade no fim do século XIX e início do XX. Esta medicalização, que foi um meio de opressão, tem sido também um instrumento de resistência, já que as pessoas podem dizer: "se somos doentes, então por que nos condenam, nos menosprezam?", etc. É claro que este discurso nos parece hoje bastante ingênuo, mas para a época ele foi muito importante.
Eu diria também, no que diz respeito ao movimento lesbiano, em minha perspectiva, que o fato de que as mulheres tenham sido por séculos e séculos isoladas na sociedade, frustradas, desprezadas de várias maneiras lhes proporcionou uma possibilidade real de constituir uma sociedade, de criar um certo tipo de relação social entre elas, fora de um mundo dominado pelos homens. O livro de Lillian Faderman, Surpassing the Love of Men2, é, a este respeito, muito interessante. Ele levanta uma questão: Que tipo de experiência emocional, que tipo de relações podem ser estabelecidas num mundo onde as mulheres não têm poder social, legal ou político? E Faderman afirma que as mulheres utilizaram esse isolamento e essa ausência de poder.

Se a resistência é o processo que consiste em liberar-se das práticas discursivas, parece que o S/M lesbiano seja uma das práticas que, a uma primeira vista, pode-se declarar mais legitimamente praticas de resistência. Em que medida essas práticas e essas identidades podem ser percebidas como uma contestação ao discurso dominante?
O que me parece interessante, no que diz respeito ao S/M lesbiano é que ele permite se liberar de um certo número de estereótipos da feminilidade que são utilizados no movimento lesbiano - uma estratégia que o movimento lesbiano elaborou no passado. Essa estratégia se funda sobre a opressão de que foram vítimas as lésbicas, e o movimento a utilizou para lutar contra essa opressão. Mas é possível que hoje essas ferramentas, essas armas estejas ultrapassadas. É claro que o S/M lesbiano tenta se liberar de todos os velhos estereótipos da feminilidade, das atitudes de rejeição dos homens, etc.

Em sua opinião, o que se pode aprender a respeito do poder - e além do mais também, o prazer - com a prática do S/M que é no fundo uma erotização explicita do poder?
Pode-se dizer que o S/M é a erotização do poder, a erotização das relações estratégicas. O que me choca no S/M é a maneira como ele se difere do poder social. O poder se caracteriza pelo fato de que ele constitui uma relação estratégica que se estabeleceu nas instituições. No seio das relações de poder, a mobilidade é então limitada, e certas fortalezas são muito difíceis de derrubar por terem sido institucionalizadas, porque sua influência é sensível no curso da justiça, nos códigos. Isso significa que as relações estratégicas entre os indivíduos se caracterizam pela rigidez.
Dessa maneira, o jogo do S/M é muito interessante porque, enquanto relação estratégica, é sempre fluida. Há papeis, é claro, mas qualquer um sabe bem que esses papéis podem ser invertidos. Às vezes, quando o jogo começa, um é o mestre e, no fim, este que é escravo pode tornar-se mestre. Ou mesmo quando os papéis são estáveis, os protagonistas sabem muito bem que isso se trata de um jogo: ou as regras são transgredidas ou há um acordo, explícito ou tácito, que define certas fronteiras. Este jogo é muito interessante enquanto fonte de prazer físico. Mas eu não diria que ele reproduz, no interior da relação erótica, a estrutura do poder. É uma encenação de estruturas do poder em um jogo estratégico, capaz de procurar um prazer sexual ou físico.

Em que esse jogo estratégico é diferente na sexualidade e nas relações de poder?
A prática do S/M se abre a criação do prazer e existe uma identidade entre o que acontece e essa criação. É a razão pela qual o S/M é verdadeiramente uma sub-cultura. É um processo de invenção. O S/M é a utilização de uma relação estratégica como fonte de prazer (de prazer físico). Esta não é a primeira vez que as pessoas utilizam as relações estratégicas como fonte de prazer. Havia, na Idade Média, por exemplo, a tradição do amor cortesão, com o trovador, a maneira que se instaura as relações amorosas entre uma dama e seu amante, etc. Tratava-se, também, de um jogo estratégico. Este jogo é retomado, hoje, entre os garotos e garotas que vão dançar sábado à noite. Eles colocam em cena relações estratégicas. O interessante é que, na vida heterossexual, essas relações estratégicas precedem o sexo. Elas existem seguindo a finalidade de obter o sexo. No S/M, por outro lado, essas relações estratégicas fazem parte do sexo, como uma convenção de prazer no interior de uma relação particular.
Em um dos casos, as relações estratégicas são puramente sociais e é o ser social que é objetivado; enquanto que no outro caso, o corpo é implicado. E é essa transferência de relações estratégicas que passam do ritual da corte ao plano sexual, o que é particularmente interessante.

Em uma entrevista concedida há um ou dois anos à revista Gay Pied3, você dizia que o que mais perturbava às pessoas nas relações homossexuais não é tanto o ato sexual em si, mas a perspectiva de ver as relações afetivas se desenvolverem fora dos quadros normativos. Os lugares e as amizades que se atam são imprevisíveis. Você acha que é esse potencial desconhecido que as relações homossexuais portam, ou você diria que essas relações são percebidas como uma ameaça direta em oposição às instituições sociais?
Se há uma coisa que me interessa hoje é o problema da amizade. No decorrer dos séculos que se seguiram à Antiguidade, a amizade se constituiu em uma relação social muito importante: uma relação social no interior da qual os indivíduos dispõem de uma certa liberdade, de uma certa forma de escolha (limitada, claramente), que lhes permitia também viver relações afetivas muito intensas. A amizade tinha também implicações econômicas e sociais - o indivíduo devia auxiliar seus amigos, etc. Eu penso que, no séc. XVI e no séc. XVII, viu-se desaparecer esse tipo de amizade, no meio da sociedade masculina. E a amizade começa a tornar-se outra coisa. A partir do séc. XVI, encontram-se textos que criticam explicitamente a amizade, que é considerada como algo perigoso.
O exército, a burocracia, a administração, as universidades, as escolas, etc. - no sentido que se tem essas palavras nos dias de hoje - não podiam funcionar diante de amizades tão intensas. Podemos ver em instituições um esforço considerável por diminuir ou minimizar as relações afetivas. Neste caso, em particular, nas escolas. Quando se inauguraram as escolas secundárias que acolheram alguns jovens rapazes, um dos problemas foi o de saber como se podia não somente impedir as relações sexuais, claramente, mas também em impedir as amizades. Sobre o tema da amizade, pode-se estudar, por exemplo, a estratégias das instituições jesuítas - eles estavam cientes da impossibilidade de supressão da amizade, eles tentaram então utilizar o papel que tinha o sexo, o amor, a amizade e de limitá-los. Deveríamos agora, depois de estudar a história da sexualidade, tentar compreender a história da amizade, ou das amizades. É uma história extremamente interessante.
E uma de minhas hipóteses - estou certo de que ela se verificaria se nos colocássemos esta tarefa - é que a homossexualidade (pelo que eu entendo a existência de relações sexuais entre os homens), torna-se um problema a partir do séc. XVIII. A vemos tornar-se um problema com a polícia, com o sistema jurídico. Penso que se ela tornou-se um problema, um problema social, nessa época, é porque a amizade desapareceu. Enquanto a amizade representou algo importante, enquanto ela era socialmente aceita, não era observado que os homens mantivessem entre eles relações sexuais. Não se poderia simplesmente dizer que eles não as tinham, mas que elas não tinham importância. Isso não tinha nenhuma implicação social, as coisas eram culturalmente aceitas. Que eles fizessem amor ou que eles se abraçassem não tinha a menor importância. Absolutamente nenhuma. Uma vez desaparecida a amizade enquanto relação culturalmente aceita, a questão é colocada: "o que fazem, então, dois homens juntos?" E neste momento o problema apareceu. Em nossos dias, quando os homens fazem amor ou têm relações sexuais, isso é percebido como um problema. Estou seguro de ter razão: a desaparição da amizade enquanto relação social e o fato da homossexualidade ser declarada como problema social, político e médico fazem parte do mesmo processo.

Se o que importa hoje é explorar as novas possibilidades da amizade, é preciso frisar que em um sentido largo, todas as instituições sociais são feitas para favorecer as amizades e as estruturas heterossexuais, com o menosprezo às amizades e estruturas homossexuais. O verdadeiro trabalho não é instaurar novas relações sociais, novos modelos de valores, novas estruturas familiares etc.? Todas as estruturas e as instituições que caminham juntas com a monogamia e com a família tradicional são uma das coisas que os homossexuais não tem facilmente acesso. Que tipo de instituições devemos começar a instaurar com a finalidade não somente de defender-nos, mas também de criar novas formas sociais que constituirão uma solução efetiva?
Quais instituições? Não tenho uma idéia precisa. Claramente, penso que seja totalmente contraditório aplicar para esse fim e esse tipo de amizade o modelo da vida familiar ou as instituições que caminham junto com a família. Mas é verdade que, em função de algumas relações que existem na sociedade são formas protegidas de vida familiar, se constata que algumas variantes não são protegidas, são ao mesmo tempo, mais ricas, mais interessantes e mais criativas do que essas relações. Mas, naturalmente, elas são também bem mais frágeis e vulneráveis. A questão de saber quais tipos de instituições devemos criar é uma questão capital, mas eu não posso trazer a resposta. Nosso trabalho, penso eu, é tentar elaborar uma solução.

Em que medida queremos ou temos necessidade de que o projeto de liberação dos homossexuais seja um projeto que, longe de se contentar em propor um percurso, pretenda abrir novos caminhos? Dito de outra forma, sua concepção de política sexual recusa a necessidade de um programa a ser seguido, em função preconizar a experimentação de novos tipos de relação?
Penso que uma das grandes constatações que temos feito desde a Primeira Guerra é essa do fracasso de todos os programas sociais e políticos. Percebemos que as coisas não se produzem nunca como os programas políticos querem descrever; e que os programas tem sempre, ou quase sempre, conduzido seja a abusos, seja a uma dominação política por parte de um grupo, quer sejam técnicos, burocratas ou outros. Mas uma das realizações dos anos sessenta e setenta - que considero como realizações benéficas - é que certos modelos institucionais têm sido experimentados sem programas. Sem programa não quer dizer cegamente - enquanto cegueira de pensamento. Na França, por exemplo, nos últimos tempos, se tem criticado bastante o fato de que os diferentes movimentos políticos em favor da liberdade sexual, das prisões, da ecologia, etc., não tenham programa. Mas, penso, não ter programa pode ser ao mesmo tempo, muito útil, muito original e muito criativo, se isso não quer dizer não ter reflexão real sobre o que acontece ou não se preocupar com o que é impossível.
Desde o século XIX, as grandes instituições políticas e os grandes partidos políticos confiscaram o processo de criação política, quero dizer com isso que eles têm tentado dar à criação política a forma de um programa político, com a finalidade de se apoderar do poder. Penso que é necessário preservar o que se produziu nos anos sessenta e no início dos anos setenta. Uma das coisas que é preciso preservar, creio, é a existência, fora dos grandes partidos políticos, e fora do programa normal ou comum, uma certa forma de inovação política, de criação política e de experimentação política. É um fato que a vida cotidiana das pessoas tem mudado entre o início dos anos sessenta e agora; minha própria vida é testemunho disso. Evidentemente, não devemos essas mudanças aos partidos políticos, mas aos numerosos movimentos. Esses movimentos têm verdadeiramente transformado nossas vidas, nossa mentalidade e nossas atitudes, assim como as atitudes e a mentalidade de outras pessoas - as pessoas que não pertencem a esses movimentos. E isso é algo de muito importante e muito positivo. Eu repito, não são essas velhas organizações políticas tradicionais e normais que permitem esse exame.


Michel Foucault, an Interview: Sex, Power and the Politics of Identity; entrevista com B. Gallagher e A. Wilson, Toronto, junho de 1982; The Advocate, n. 400, 7 de agosto de 1984, pp. 26-30 e 58. Esta entrevista estava destinada à revista canadense Body Politic. Tradução de wanderson flor do nascimento.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Magnólia (Trecho)

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Marcia Tiburi
Madrugada

Desossar horas entre dedos

Fato 1. Duas gavetas fechadas. Não sei o que fazer com elas. Vou esperar as lembranças que vêm quando paramos no tempo.
Fato 1.1. Mapas. Um relógio de ponteiros parados. A chaleira de esmalte lascada no canto. Fotografias das bicicletas. Uma bicicleta. Tudo o que não foi usado está guardado no porão. Não há porão, só o espaço oco antes ocupado por minha memória. As gavetas.
Fato 1.2. O oco ocupa um vasto espaço.
Fato 1.3. Dentro do oco voam muitos pássaros e outros bichos de asas em meio à vertigem tormentosa dos objetos.
Fato 1.4. O gato está entre eles.
Fato 1.5. Magnólia ao lado do gato.
Fato 1.6. E manchas.

Escuridão

Tudo não passa de imaginação. Então é preciso saber o que se pode fazer com o mundo que insiste em ser real.

Os objetos, sobretudo os inúteis, têm um sentido e um gozo que tornam o resto da vida algo entre a falha e o risco no vazio. Prefiro-os aos seres humanos, aos artifícios, aos ofícios, aos saberes. Entendo-me com a natureza. A natureza, que se perceba, não passa de coisa, ainda que a coisa das coisas que ao ser coisa é, por força, o fundamento do mundo composto das coisas não mais que coisas e das coisas em si, das coisas de muitos modos ditas e das certamente esquecidas, das com lados, ângulos, seções, elementos, categorias, cores, temperaturas. Coisas há para confundir a qualquer um.

A fortiori.

Entendo-me com as coisas e, por isso, preciso colocá-las no lugar.

Tudo está disposto à confusão. O nada se diz de muitos modos e tenho só duas gavetas para dar cabo da questão.

Porém, como o nada é sorrateiro, diante dos sistemas e classificações quase evidentes, basta perceber, deve haver em algum lugar o abismo de olhos rígidos a pulsar prestes ao bote. Em uma das gavetas, é certo, mais que certo, um axioma, uma verdade das que tornam inerte a vida toda. É dele que vou falar mesmo sabendo que deveria calar.

Então, primeiro calo-me, mas não sei por quanto tempo. Um minuto, um segundo, um dia, um ano. Talvez o tempo exato do talvez que me alucina. E como há muitos modos de dizer o nada, e as duas gavetas e o sorrateiro abismo de olhos para o nada, existem os vários mundos e os modos de dizê-los, mas o que interessa aqui são os modos de não dizer e desdizer. Interessa amenizar a imaginação até que fique morta, pois tem me causado muita dor de cabeça. Direi para qualquer efeito de apenas dois dos mundos, o que se diz e o que se desdiz, a opção pela facilidade é sempre a mais sábia. E prestarei atenção em mim, antes do inventário dos feitos. Talvez em pouco tempo eu mude de idéia, pois a classificação tem um início, mas jamais tem limite.

Eu, pois e eu? Vivo sobre esta cadeira sem rodas. Já deixei de ser humana e virei coisa. Igualei-me ao ambiente. Não é difícil confundir o imóvel e o objeto. Mas classificar-me cansa como seguir Sócrates e seu conhece-te a ti mesmo.

Ninguém conhece a si mesmo.

Assim desosso as horas, ou, para evitar metáforas, espero.

Fato 2. Abro a primeira gaveta. Há um pacote de cartas amarelas.

Fato 2.1. As cartas são amarradas com um barbante sujo.
Fato 2.2. Penso duas vezes se abro ou não o pacote.
Fato 2.3. Não há endereço de remessa, nem remetente.
Fato 2.4. Não parece haver o que ler.
Fato 2.5. Aqui tudo pertencia a Magnólia. Agora talvez tudo me pertença.
Fato 2.6. Pena não haver tempo além das manchas.

Escuridão

Podemos empilhar o mundo no chão e tirar-lhe o pó de anos. Ora, não podemos saber se o pó é de anos, semanas, dias, não é possível interpretar os sinais, o a priori das conclusões sempre vem cheio de empáfia, por azar sempre existem cartas remetendo o tempo em letras. É preciso parar para ver.

Ou esquecer de vez, mas é impossível quando não houve lembrança.

É das cartas que vêm toda a dúvida sobre conhecer a si mesmo. Eu, porém, não tenho mais nenhuma dúvida, ainda que existam cartas e, como estas, tão incógnitas.

Se ninguém se conhece a si mesmo, pois esse é nosso maior problema, oportuno é procurar o próprio nada que sempre faz desistir de toda explicação. O nada é sempre guardado entre gavetas ou no fundo das xícaras onde se bebeu chá, café, nos cestos onde se deixou cair as folhas desusadas, os restos sujos de papel de bala. O nada reside nas coisas e somente elas podem oferecer o real desenho que faz de cada um ninguém.

Guardemos o nada para a hora inválida em que o todo inevitável fizer a verdade das verdades subir à tona decantando os avessos.

Quando houver tempo.

Para saber o nada basta olhar para minha cadeira sem rodas, o copo vazio, ouvir o miado do gato longe. Basta olhar-me. Não lembro dele. Lembrar jamais é fácil. Embora esquecer não passe tantas vezes de uma boa desculpa. Onde estou lembro apenas do cansaço como uma sensação que não se apaga e não diz mais do que o tempo indo em ondas camufladas.

Fonte: http://revistacriativa.globo.com/Criativa/0,19125,ETT1062738-4240,00.html
Fonte da imagem: http://croagfilliu.wordpress.com/2006/10/17/

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Memória e esperança

Rating:★★★★★
Category:Other
As revoluções aspiram ao poder para transformar a realidade; em 1968, o que se queria transformar era a realidade do poder

por Franklin Leopoldo e Silva

O século 20 conheceu formas de poder opressivas e violentas contra as quais as pessoas se rebelaram em nome da liberdade e da dignidade, alcançando por fim vitórias que custaram o sacrifício de muitas vidas. Como a coragem e o heroísmo superam a morte, podemos dizer que nesse caso os mortos venceram. O século 21 provavelmente conhecerá formas dissimuladas de opressão em que os indivíduos entregarão seus corpos e suas almas a poderes cuja violência já estará instalada dentro deles e à qual, portanto, não poderão fazer qualquer oposição. Como a resignação, o conformismo e o egoísmo valem menos que a vida, podemos dizer que, nesse caso, sobreviver será uma derrota, a ser partilhada num mundo de mortos-vivos. O poder se transforma para manter a sua inflexibilidade. O poder nos transforma graças à flexibilidade de nossas convicções. O poder triunfa quando renunciamos a qualquer convicção, quando perdemos a força de persistir e, assim, de podermos ser derrotados. Se assumimos que já não há grandes causas a defender, estamos cientes de que não seremos derrotados porque já o estamos de antemão. Do risco da derrota à incorporação da passividade o caminho é o silenciamento de tudo que em nós clamaria pela humanidade. Não há estrada mais segura para levar ao desaparecimento da política e à dissolução da ética: um caminho onde nos perdemos dos outros e de nós mesmos.

Quando já não há mais nada a esperar, nos ajustamos ao vazio e, num mundo deserto, nos dispomos a carregar o fardo da inutilidade, esperando que a existência histórica nos seja leve. A vida contemporânea é principalmente um processo de conformação, em que tudo nos impede de perceber e de pensar a possibilidade de transformação, apesar de vivermos num mundo em que as novidades nos assolam: o progresso nos aprisiona no próprio ritmo em que nos conduz.

Redesenhar o futuro

O ano de 1968 marca o último episódio em que pudemos crer na possibilidade de desenhar o mapa do futuro. Suas linhas não eram nada precisas, a mão não possuía a firmeza e a segurança da maturidade, o pensamento não era claro, a vista se dividia entre a realidade e o sonho, mas o coração era sensível à esperança e tudo isso fundamentava a certeza simples de que o devir histórico continha a transformação e se definia pela expectativa de que todos poderiam tornar-se outros e que o mundo se tornaria outro porque nada do que existia era suficientemente forte para resistir à história e ao futuro.

Não havia, na verdade, projeto político definido de reestruturação objetiva da sociedade e do poder. Havia, evidentemente, as afirmações protocolares dos militantes, as teses dos partidos, as análises teóricas das práticas reais e possíveis, até a projeção de utopias. Mas seria preciso ser Deus para ver com clareza a própria recriação do mundo. Não há nada de estranho em assumir um compromisso pelo qual se engaja na incerteza, se a ação é inspirada pela liberdade e pela vontade de enfrentar todas as contingências. Não se trata apenas de imaginar um mundo possível, mas de considerar que a aventura humana pode transgredir as possibilidades e, mesmo que de tudo isso resulte uma realidade menor do que o intento, a tentativa terá valido a pena.



Exigência radical

O que havia de grandiosamente impossível na base de tudo que se queria fazer não eram reivindicações implausíveis ou irrealistas. Era algo mais radical: a completa transformação do poder. As revoluções costumam aspirar ao poder para transformar a realidade; em 1968 o que se queria transformar era a realidade do poder. Não se pretendia o seu alargamento, a expansão de seu alcance inclusivo, a modificação de seus dispositivos, a sua redistribuição, a renovação de seu modo de ser e de operar. O que se pretendia era o poder de transformar o poder. Essa visão momentânea e ofuscante do que estava além de todas as possibilidades não pode ser explicada nem mesmo por aqueles que estiveram mais diretamente presentes ao acontecimento. Porque essa transformação do poder não poderia consistir em lhe dar nova forma, mas em instalar uma tal reciprocidade entre vida e poder que tornasse impossível conceber o fluxo da experiência humana sem essa impregnação, de tal modo que viver e poder coincidissem num permanente processo de reinvenção da realidade, por parte de todos, isto é, de cada um segundo a sua singularidade.

Seria fastidioso enumerar os pontos em que essa idéia - ou esse sentimento, porque também essa dicotomia teria que ser revolucionada - contrariava todos os elementos de todos os cânones culturais e políticos. Mas isso nos permite avaliar, de forma aproximativa e imprecisa, como estamos longe de 1968. A distância cronológica de 40 anos contrasta com a distância política, que provavelmente sequer possamos medir.

Se isso era realizável, plausível ou possível é o que menos importa saber. A força de um propósito e a liberdade que o anima não se medem pela sua realização, mas pela intensidade do impulso que os originou. Em todo e qualquer esforço para compreender o que se passou em 1968, algo permanecerá sempre velado, até porque assim já estava na época. Essa parcela de obscuridade faz parte da ação histórica e é tanto maior quanto mais significativa ela tenha sido. Os momentos históricos podem ser reconstruídos de várias formas, mas eles somente revelam nessa reconstrução aquilo que somos capazes de ver. Por isso, são inúteis e inválidas, quando não são desonestas, as tentativas de compreender 1968 através de procedimentos retrospectivos que procuram sobrepor ao acontecimento componentes da situação presente. Que lá houvesse intenções manipuladoras, trajetórias políticas com rota própria, interesses alheios ao espírito do movimento, grandes equívocos, tudo isso estava de fato presente, como elementos divergentes que confluíam contraditoriamente, como ocorre nos eventos históricos. Mas nada disso abala a originalidade do acontecimento, antes integra o seu teor dramático.

Resistência da memória

Tampouco é pertinente estabelecer certas relações de continuidade ou de contrariedade entre 1968 e o curso que a história tomou desde então, no que concerne a eventos e personagens. É difícil e perigoso falar, nesse caso, de "desdobramentos". O que 1968 projetou foi tão radical que qualquer caminho histórico posteriormente percorrido e que se queira vincular ao acontecimento como resultado ou herança corre o risco de parecer insignificante. O significado do acontecimento, que se torna cada vez mais difícil avaliar à medida que o tempo passa, certamente superou os fatos particulares e os protagonistas efetivos. Cada vez que "comemoramos" 1968, o esquecimento e a distorção comparecem como convidados indesejáveis, mas obrigatoriamente presentes.

A memória, como se sabe, é a arma dos resistentes. Nesse sentido, aqueles que propõem o total esquecimento de 1968 estariam, talvez, prestando um serviço à História, à revelia de si mesmos. Pois o empenho com que propõem que o acontecimento seja apagado e desprezado é um testemunho evidente de que algo ali se passou que seria conveniente esquecer por completo. Algo que não deveria ter acontecido. E que foi tão importante que não basta que tenha sido derrotado: teria que desaparecer da memória e da história. Ora, isso é razão suficiente para que, apesar de todas as dificuldades, preservemos a memória de 1968. Porque, se os episódios de barbárie devem ser lembrados para que não sejam repetidos, os episódios em que a história se encheu de liberdade e esperança devem ser lembrados sempre, para que, eventualmente, possamos, não repeti-los, mas tentar fazer com que vença, em outro momento e de outra maneira, a esperança dos vencidos.

Franklin Leopoldo e Silva é professor titular do Departamento de Filosofia da USP

Fonte: Revista Cult, edição de julho de 2008.

http://revistacult.uol.com.br/website/news.asp?edtCode=FFBBE6C1-3D1E-42FF-856B-78D78F77C8C6&nwsCode=0305C7F3-5459-43C1-97A6-C49C483E3C7C

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Lembrar é essencial *

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O homem é o animal que lembra. Podemos dizer isso tendo em conta que não haveria, de um modo geral, a cultura, sem o trabalho da memória. Definir o que é a memória, porém, não é fácil. Os cientistas tentam explicá-la afirmando seu funcionamento físico-químico em nível cerebral. Os historiadores criam suas condições gráficas por meio de documentos e provas, definem, com isso, uma linguagem compreensível sobre o que ela seja: o que podemos chamar de “campo da memória”. Os artistas e escritores tentam invocar seus subterrâneos, aquilo que, mesmo sem sabermos, constitui nosso substrato imagético e simbólico. Mas o que é a memória para cada um de nós que, em tempos de excesso de informação, de estilhaçamento de sentidos, experimenta o fluxo competitivo do cotidiano, a rapidez da vida, como se ela não nos pertencesse? Como fazemos a experiência coletiva e individual da memória? É possível lembrar? Lembrar o quê? Devemos lembrar?

Se esta pergunta é possível, a contrária também tem validade: haverá algo que devamos esquecer?

A memória é um enigma

Para os antigos gregos Mnemósyne era a deusa da memória, a mãe das nove musas que inspiravam os poetas, os músicos, os bailarinos. Seu simbolismo define que a memória precisa ser criada pelas artes. Numa civilização oral como foi a grega nada mais compreensível do que uma divinização da memória. A memória é a mãe das artes, tanto quanto nelas se reproduz, por meio delas é que mantém sua existência. Por isso, ela presidia a poesia, permitindo ao poeta saber e dizer o que os humanos comuns não sabiam. Que a memória seja mãe das musas significa que a lembrança é a mãe da criatividade. Mas de que lembrança se está tratando?
Para além da mitologia, na filosofia, distinguiam-se dois modos de rememoração: Mneme, espécie de arquivo disponível que se pode acessar a qualquer momento e Anamnese ou a memória que está guardada em cada um e que pode ser recuperada com certo esforço. A primeira envolve um registro consciente, enquanto a segunda manifesta o que há de inconsciente na produção de nossas vidas, ou seja, o que nos constitui sem que tenhamos percebido que nos aconteceu, que se forjou por nossa própria obra.
A memória era a deusa que permitia a conexão com os mortos, com o que já foi, com o que poderia ter sido, com o que, para sempre, não mais nos pertence desde que, com ele, não partilhamos o tempo.

Quando esquecer é uma culpa mal-resolvida

O atual modo de vida, pleno de elementos descartáveis, não privilegia a memória. O que se chama “consumismo” tem relação direta com o abandono e o descaso com a memória. Descarta-se tudo, de objetos de uso doméstico a amigos, de roupas a amores. O projeto ecologista da reciclagem é, de certo modo, um trabalho de memória. Na apressada vida urbana vige a regra de que tudo passa, o encanto pertence apenas à novidade, tudo vira lixo instantaneamente. A fungibilidade, a capacidade de trocar, é universal. Se tudo o que existe deve ser descartado, significa que sua existência não faz muita diferença. Esquecer assim, ou elevar o esquecimento a esta lei, é algo perverso.
Este gesto tem, porém, uma estranha e maléfica compensação. Numa cultura em esquecer é a lei, ressentir é inevitável. O ressentimento é a incapacidade de esquecer, impossibilidade de deixar de lado, de abandonar o verdadeiro lixo, ou, em outros termos, o passado com o que, nele, foi espúrio. Ressentimos porque não somos capazes de ver além, carregamos o sofrimento como gozo, ou seja, como o que, contraditoriamente, nos faz bem.
Por outro lado, o ressentimento é movido pela culpa de ter abandonado algo que, injustiçado, tempos depois, reclama sua volta. O ressentimento é um mal por ser fruto da culpa. A culpa, por sua vez, é como uma doença contagiosa da qual a humanidade inteira foi vítima, e ainda é, enquanto não aprende a compreender e aceitar suas próprias escolhas. A esta capacidade chama-se hoje responsabilidade. Mas mesmo com a responsabilidade é preciso tomar cuidado para que ela não seja um mero disfarce da culpa que ainda não eliminamos. Responsabilidade só é possível quando há solidariedade. Quando nos responsabilizamos não apenas por nossas vidas e atos, mas percebemos que somos apenas parte da vida e que muitas de nossas escolhas são coletivas.

Vantagens da memória e do esquecimento

Nietzsche, filósofo que morreu em 1900, dizia que a memória tinha vantagens e desvantagens na vida. É certo que quem quiser viver bem, quem almejar de algum modo ser feliz, deverá provar o equilíbrio entre lembrar e esquecer. Temos, neste momento, um problema de distinção: o que devemos esquecer, o que devemos lembrar? Na busca de um meio termo, mais vantajoso será guardar o que nos traz bons afetos, ou alegria e descartar o que nos traz maus sentimentos, ou tristezas. Motivos para a infelicidade não faltam a quem quiser olhar para a história humana e a história pessoal. Mas enquanto a memória histórica nos faz bem, pois nos mostra o que se passou para chegarmos até aqui, a memória pessoal faz o mesmo, mas ela só tem sentido se conectada à memória coletiva. Para poder buscar a alegria de viver é preciso olhar para a frente, para o futuro e reinventar a vida a cada dia. É esta invenção do presente que nos dará, no futuro, um passado do qual tenhamos prazer em lembrar. Viver do passado ou no passado, só prejudica o presente no qual, elaboramos o que será amanhã o passado.

Esquecer com criatividade

Diante do trauma, da lembrança que ficou recalcada em substratos profundos de nossa inconsciência, que define o ser e o agir sociedades inteiras, como o que foi vivido em catástrofes como a nazista, a do Vietnã, a da colonização e escravização no Brasil, e tantas que conhecemos nas vidas pessoais e familiares, esquecer torna-se um remédio contra o sofrimento. Mas esquecer não é apagar o que se viveu de modo abstrato, muitas vezes é justamente pela “rememoração” que nos lembramos. Por isso, contar histórias, fazer arte, ou seja, deixar-se levar pelas musas, continua sendo a melhor saída. A vida criativa é a única que evita o mau esquecimento e, por outro lado, a má lembrança que é o ressentimento.

* Publicado na Revista Vida Simples, Março 2007

Fonte: Site da Marcia Tiburi, a autora.
http://www.marciatiburi.com.br/textos/lembrar.htm

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Esclarecer o Pessimismo

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Marcia Tiburi
Revista Cult, Abril 2007

Da Indústria Cultural à industrialização da ética – para pensar o 60° aniversário da Dialética do Esclarecimento e sua atualidade
Quem é capaz de contestar hoje a existência da Indústria Cultural? A crítica que foi escândalo na Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer (1) desde 1947 perdeu seu significado. O texto, porém, mantém um alerta como sinal cifrado a exigir interpretação. Ele se refere ao empobrecimento da experiência (2), decisivo na destruição do sujeito livre. Mais do que uma questão de estética e de decisão sobre as virtudes da obra de arte ou dos meios de comunicação, o problema da IC é um problema de ética, o poder do indivíduo de decidir sobre sua vida que a cada dia escapa de suas mãos.

O Esquematismo ou o pensar igual

O texto sobre a IC, caduco para alguns, ainda é atual. Pelo menos duas de suas questões permanecem essenciais: a do Iluminismo como “mistificação das massas” e a do “esquematismo” do pensamento. Quanto ao primeiro aspecto, a questão é saber por que a aceitação de que há uma IC que adquiriu o valor de lei sobre a criação humana implantou-se com força de raiz no fundamento da sociedade? Que ninguém (ou esta seja a lei apesar das exceções) crie fora do mercado sem visar servi-lo é a prova da mistificação das massas consideradas culpadas por tudo que lhes é oferecido. O artista, se sobrevive como tal, torna-se herói em relação ao todo, o funcionário da comunicação entrega-se à burocracia do processo de repetição de imagens e idéias, o espectador máquina de ver, ouvir e dançar, imita a maquinaria, certo de que encontrou um canto aconchegante no sistema. Desavisado, o que o indivíduo aniquilado em sua capacidade de fazer experiência não sabe - e dificilmente saberá – é que a capacidade de pensar lhe foi roubada e, portanto, ele perdeu a chave de sua liberdade.
A ausência de pensamento reflexivo resulta do “esquematismo” que substitui o pensamento livre. Rodrigo Duarte explica a função do esquematismo como processo pelo qual “uma instância exterior ao sujeito (...) usurpa dele a capacidade de interpretar os dados fornecidos pelos sentidos segundo padrões que originalmente lhe eram internos (3). A função do sujeito de relacionar conceitos gerais à multiplicidade das coisas de que falava Kant foi eliminada. Compra-se hoje o pensamento enlatado. Com os pensamentos prontos a ação se torna repetitiva e igual. A rigor não há mais ação alguma. A inação política ou a ação sem sentido dão a impressão de frenesi, a “correria” do cotidiano. A compulsão a agir, ação que não sabe de seu objetivo, toma conta de tudo. Se não sei o que faço é porque não pensei no que faço, mas já não posso pensar porque alguém pensou no meu lugar. Se “a cultura contemporânea confere a tudo uma ar de semelhança” é o fim da diferença, fim do pensamento, fim do desejo, o que a IC nos vendeu.
A industrialização da ética é o que está em jogo na IC. Ética não é apenas a forma do comportamento como a moral, mas o modo de questioná-lo. É a ação que se dá em nome do pensamento livre. A ética só aparece se a pergunta “o que devo fazer?” for respondida levando em conta o sentido de toda ação em relação a outro. Se não há ética é porque não há reflexão sobre a ação e nem a chance de refletir sobre. A passagem da “indignação moral” - a emoção passageira e repetitiva em relação ao que, em termos morais, nos escandaliza - à “reflexão ética” é proibida na industrialização da ética. Esta indústria está na base fundadora da sociedade, e claramente associada aos meios de comunicação, à escola, à família, aos poderes executivo, legislativo e judiciário e, infelizmente, mesmo aos intelectuais que se omitem de sua tarefa de esclarecimento. Seu produto inquestionado são valores e jargões que se repetem sem cessar. Infelizmente contra a falta de ética só uma ética mais forte pode vingar, assim como contra a ignorância apenas um conhecimento mais profundo pode ser uma arma.

A industrialização da ética e a repetição

A industrialização da ética se reproduz pela repetição. O que Nietzsche entendeu como a verdade por efeito de repetição(4) é o mecanismo básico desta indústria. Repetimos seus slogans sem ponderação: “o poder corrompe” diz-se para evitar que todos o queiram, “é preciso ser feliz” diz-se para desviar a atenção sobre o sentido mais complexo da vida, “a competitividade é boa” diz-se com o mesmo objetivo de dominar as relações e evitar a união solidária, forma de poder contrária à violência e à dominação. Palavras sérias como “felicidade”, “direito”, “dignidade” e a própria “ética” são transformadas em meras palavras mágicas sem conteúdo. O poder da Indústria é só o que se confirma: quanto mais repito mais transformo a palavra em marca registrada, aumento seu valor de ilusão.
A crítica abstrata ao pessimismo e o elogio ao otimismo também são elementos cruciais desta industrialização do pensamento e da ação. Confundimos pessimismo com niilismo, achando que o primeiro é a mera negação da vida (que nem o niilismo, como corrente do pensamento, é) e perdemos com isso o seu potencial de alerta. Ou será que a indústria da ética também já nos habituou de tal forma ao que o pessimismo seria o único a criticar? Benjamin disse ser preciso organizar o pessimismo (5), isso significava olhar para o que é péssimo sem simplesmente tornar-se cativo dele. O pessimismo como atenção e alerta da reflexão é hoje uma atitude de cuidado do pensamento com a ação, com a prática. Atualmente é o único caminho para a evolução da discussão sobre a ética.


(1) Adorno, Theodor e Horkheimer, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradução de Guido Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
(2) Tema que já era central na obra de Benjamin. Ver Experiência e Pobreza. In Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas I. IV edição. P. 114-119.
(3) Duarte, Rodrigo. Teoria Crítica da Indústria Cultural. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2003.p.54.
(4) Nietzsche, Friedrich. Sobre Verdade e Mentira no sentido extramoral. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1997.
(5) Benjamin, Walter. O Surrealismo. O ultimo instantâneo da inteligência européia. In Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas I. IV edição. P. 33.

Fonte: Site da Marcia Tiburi, a autora do texto.
http://www.marciatiburi.com.br/textos/esclareceropessimismo.htm