quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O que fico da passagem...


Se a palavra é o que nos faz alheios
e no Outro,
inteiros,
o corpo
é pelo  Outro
o que nos faz sentido
desfeitos e refeitos
paradoxos e carne.
(atravesso você e aprendo
:pele e fundura
e meu avesso)
O que fica da passagem.

Eu não posso sentir estrelas quando eu beijo
eu não sinto só a  saliva quando eu te beijo
o beijo eu sinto sim.
e mesmo  
no sal do céu
da boca salgada
salivosa ardência
E estrelas
eu não sinto.
em seu brilho. eu não sinto,
em seu brilho
não:
somente
no minúsculo do minúsculo do minúsculo.
De seu calor degustado
saturada lisura
o prazer em nos saber pequenos
e mais em menos
(o espaço-na-velocidade-da-luz) 
somos sempre mais
quando no mesmo
(em nós 
se misturados)
ainda que pó de estrelas.

O corpo é o que é
e um beijo pode lembrar o ardor de uma constelação inteira

não fosse ela mesma
a lembrança
de um beijo
(e não o seu contrário)
pele e fundura
e meu avesso
na língua 
sempre mais em menos tempo
se atravessados.
E pó de estrelas
são
como nós
intocável quentura
lembrança efêmera da carne
naquilo que tem de quente e crua.

E se o sentido é 
em seu avesso,
no meu é na língua duas vezes:
O que fico na passagem
O que fica da passagem.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Desapaixone-se de si, Narciso!


Desapaixone-se de si , Narciso,
que suas ideias só têm sentido se ouvidas por um Outro
-       vivo.
Que tu sofres mil privações e orgulha-se de suas dores,
mas há outros que mil dores iguais as suas
já passaram sem nem poderem lamentar.
Que o silêncio deles, não te dá o direito a suas vozes,
e que só se sabe da dor do outro, ouvindo-o.
Que as verdadeiras tradições que interessam
são as que contam sobre a história dos que sempre se calaram por não poderem escrevê-la.
E que o seu deus é homem,
todavia quem concebe o mundo, mundo seu e além de si,
tem corpo de mulher.
Desapaixone-se de si, Narciso,
que teus heróis são os que fazem as guerras em que toda mulher é estuprada,
em que nem as crianças são ou serão poupadas e,
em que a sua fé,
no seu deus, sua nação, nas suas terras, no seu trabalho,
no seu dinheiro suado,
 é a fé na cegueira em não ver quem são os que realmente choram.
Desapaixone-se de si, Narciso,
que a sua religião não converterá meu sangue em vinho,
como tu tanto o sonhas,
e em sangue mesmo, viscoso e quente,
que me reaviva o sexo e o desejo
é que relembro a ti
que nenhum reflexo de si será capaz de amá-lo,
e que só esse Outro que voz fala e que é vivo
é quem realmente poderá satisfazê-lo.
Nenhum deus sem carne poderá abraça-lo quando é necessário dar por fim a partida.
Que os pecados da carne
são nada mais que a única coisa para a qual somos feitos
e que o Amor é tão simples e perfeito
que é na carne que tem o seu gozo mais intenso
gozo para o qual foi feito.
Desapaixone-se de si, narciso,
que quando praguejas pelas migalhas que acreditas ser o que sustenta a preguiça dos pobres,
uma mãe enterra o filho sem preguiça e sem tempo para secar o rosto,
já prevendo o outro, que em vingança legitima do irmão,
irá sacar a arma contra os que de sua mãe um dia desdenharam
pois  está vivo e sente,
e não consegues, como tu,
ignorar a dor da própria mãe,
ou dos que como ele um dia se enterrarão
com lápide de indigente.
Quantas mães terão de serem feitas por estupro
para que consigas ouvir seus gritos, ein, Narciso?
E quão alto precisa ser o grito delas para que não o confundas com sua própria voz?
“Que Ela não tinha deus no coração”
“que era vagabunda”
“que é preciso não dar o peixe, mas ensinar a pescar”
enquanto o seu Deus multiplica peixes e bebe vinho
sem nunca ter enfrentado uma única maré
enquanto o seu deus espera o jantar ser servido
jantar feito por uma mulher
jantar pescado pelos filhos de mulher e feitos por ela ou nela
em gozo ou estupro
e que dela mesma por ti são sempre rejeitados como bastardos
Contudo, o seu deus,  ele mesmo alimentado dos peixes dados pelo céu sem nenhum trabalho, espera dos outros que primeiro  aprendam a pescar
ainda que sem barco e sem varas
arquejados pela fome
eles que na realidade são elas e seus filhos.
E tudo isso para quê, Narciso?
Para dar como exemplo que eu, mulher, deveria aprender a dar o outro lado da minha cara para novamente um homem volte a me bater?
Não, Narciso, tu precisas me ouvir:
Desapaixone-se de si,
que  o meu sangue e de meus filhos
não conseguirás converter nem em vinagre nem em vinho,
e eu já aprendi que o seu deus,
esse deus tão seu,
na realidade,
é você.