Para não ter de enlouquecer
desviei dos perdidos da rua
- e nisso perdi-me de meus caminhos
descaminhos de solidão
atalhos a precipicius
trilhas de sonhidão
trilhas de sonhidão
Para não ter de enlouquecer
e bebi o sal das mares até pegar birra do mar
- e esquecer a inundação nos olhos
imensidões de lembranças
espuma da força que um dia tive
outros nomes para silêncios
cooptação da língua
costura de lábios que arrebentam muralhas de pedra sabão
o gosto de glicerina na voz
cooptação da língua
costura de lábios que arrebentam muralhas de pedra sabão
o gosto de glicerina na voz
Para não ter de enlouquecer
forjei ininterruptas cadencias musculares
quase repetidas
dissimuladamente felizes
e entediadas
errancia das horas que poderiam ter sido
- contigo
e não foram
e se foram ainda sim
e gritei a rebeldia de meus ecos
descompassada
e implorei por delicados afagos
e implorei por delicados afagos
acovardados
quase belos de carinho
quase não vazios
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Para não ter de enlouquecer…
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E tomei remédio para minhas cólicas
e para minha ansiedade
e para a ciranda de espantalhos
que teci por não aguentar a presença dos pássaros
e seus desagradáveis livres voos
livres...
longe
onde a loucura não faz sentido…
e arranquei na unha o útero blasfemado em inchaço
e o comi com talheres de prata e guardanapo de pano
o que escorria da memória
e usei o que sobrou para hidratar os cabelos do vento em meu rosto
e sorri um meio sorriso de Monalisa
e sonhei-me adolescente que corre ainda sem nenhuma pedra pelo caminho
mesmo sempre manca e nunca tendo conseguido correr
e dancei desmiolada como quem sempre fez Ballet
e publiquei vídeos com esqueletos todos iguais para provar que eu era uma dessas de sua laia
- ainda que meu esqueleto nunca tenha sido igual ao de ninguém
Para não ter de enlouquecer…
E criei um lugar só meu
em que pudesse fazer o que eu era em paz
e enganei a homens pintudos e seus furúnculos egos
e escrevi poemas de lentidões
e de amores para sempre
(fora de qualquer lógica da lógica)
e aceitei pasmada
maquinar-me aço e fria
lavabo de portas e papeis histéricos
borrões
borrões
e ao final do ciclo escolhi enfim
enfim!
enfim!
E.N.L.O.U.Q.U.E.C.E.R.
não tinha jeito
flor - bela
no asfalto
gaucho
tirania de angustia nunca estanque
Fodam-se!
e me fiz poeta
trovadora
enlouquecer palavras
e já saciando-me
som e vozeada
enlouqueço
enlouqueço
na santa paz de deus e seus diabos
e enfim xingo os pássaros e voo com eles
destrambelho de vez
e enlouqueço
na santa paz de deus e seus diabos
e pela primeira vez me vejo linda e forte ao mesmo tempo
e enlouqueço
e sou poeta.