quarta-feira, 28 de agosto de 2013

A valsa


Um pra lá e dois pra cá, meu pai ensinava. Ou tentava. Era começo de 1997 e eu havia acabado de pedir ao meu pai se ele poderia pagar a minha formatura da oitava série. Para mim, um evento importantíssimo. Para o meu pai, caro. Então, vendo meu semblante cinza diante da incerteza de sua resposta, pegou-me pelos braços, a distrair-me, e começou: “um pra lá e dois pra cá, tem que saber dançar valsa..”
Um ano depois ele se foi, não houve formatura.

Gabriel e eu as vezes dançamos juntos.  Ele fez teatro no Circo Escola e sabe dançar bem. Danças de roda, dança de rua, danças de crianças. Liguei a música e o convidei a dançar. Para minha surpresa, ele havia aprendido na escola – embora não soubesse o nome ...
- Mãe, é um passo grande pra lá e agora dois. 
A mãe era a filha. Duas pontas em um nó do Tempo.
Eu não aprendi a valsar ainda. Nem a ser mãe por completo: eu as vezes sou a filha aprendendo a dançar valsa. Só que agora, do começo.      

Eu sou meu corpo em você


O meu corpo é navalha alada 
que talha 
o desejo
multiplica
em ambos
corpos-desejos

e voa(m).

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

À minha ex-amiga II

Deve dar algum tipo de prazer "mostrar quem manda", "que consegue tudo" pisando sempre em quem está embaixo e lambendo quem está em cima: deve ser um simulacro de punição aos que lhe têm desamor ao mesmo tempo que encena gratidão a quem lhe considera útil. Porque ser útil é melhor do que ser insignificante ou repugnante. Conseguir tudo no grito, pois suas "belas palavras"soam repetitivas e falsas a quem realmente a ouviu. Grito que respeita cabresto e só grita se o cachorro já estiver morto.
Alteridade? Ética? Quem precisa de ética quando tem o poder de calar a indiferença (dolorosa indiferença) de quem tanto amou?
Eu tenho inveja de uma ex-amiga dela: que sumiu sem nada justificar. Ao contrário de mim, não deixou nenhum espaço para que criasse mentiras que justificassem sua patologia social. É possível mentir pra si. Mas não é possível mentir sem ninguém a ouvir e sem saber o que mentir. Sua ex-amiga a conhecia bem, sabe o que fez.
Quanto a mim, as justificativas ela já as têm. Poderá dormir em paz e até sorrir: "será até bom pra ela, fiz um favor", pensará de todos os atos lívidos e machistas (mesmo dizendo-se feminista) que cometeu. Você fode seu amigo e depois avisa a ele dos motivos, para se livrar "da culpa".  Se o resultado da foda for bom, passe livre pro céu? Porém, não interessa o quanto será bom pra mim. Importa a intenção do ato. Não importa o quanto tenha raiva da Outra a quem acredita "ter feito minha cabeça contra" ela. Da Outra eu nada esperava, nunca esperei. Apenas dos amigos espera-se algo.
E eu, faz dois anos, nada espero de minha ex-amiga.      

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Chovia...


Em meu aniversário de 15 anos, em uma pizzaria de São Miguel Paulista,  minhas amigas de adolescência (oi, Fernanda!) resolveram fazer uma surpresa. Subiram ao palco do restaurante e falaram coisas maravilhosas sobre mim, sobre nossa amizade. E choraram. E eu ali, sorrindo, seca e distante, embora feliz. Fazia um ano que eu havia perdido meu pai e aquilo havia me secado as córneas, ressequido toda a umidade da infância, apodrido até mesmo o sal de minhas lágrimas. Eu então precisava sorrir, precisava ler livros, precisava fazer mil cursos e causos, precisava me distanciar do que não entendia. E o choro de alegria pedido pela ocasião nunca viria a acontecer, para frustração de todos ali.  
No dia 20 de março de 2006, às 22h10, na maternidade Pro Matre Paulista, aos 21 anos de idade, ainda recém saída da adolescência, ranzinza, sem paciência com crianças, louca de pavor de cirurgias (péssimo histórico e uma cicatriz horrível na perna), eis que, pela primeira vez eu soube: estar tão feliz que a única reação que se tem é chorar. Aberta e sem fôlego (o bebê apertava-me os órgãos), eu chovia  em meio a um sol noturno. Não houve discursos. Apenas um choro, choro-tempestade, choro-tufão, forte o suficiente para molhar o que há tanto permanecia seco.     

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A prece


Já era noite e aquela semana parecia um mau presságio. Cansaço, trabalho, menstruação, dispensa da babá, falta de dinheiro... Faltas e excessos. Irritada, queria dormir, queria que o dia acabasse logo. Pedia ao pequeno para, dessa vez, “não enrolar”.  Segurava para ignorar seu choro, que também estava cansado, segurava para ignorar a fome enquanto o esperava comer, segurava para ignorar o que os apartava – há tanto tempo... Colocado o pijama ao seu lado na cama, fora banhar-se. Ao retornar, o menino ainda nu, a dormir: “só para dar trabalho, não é possível!”. Não segurou-se dessa vez (devia). Tentava acordá-lo à força, vestiu-o cravando as unhas, suas duas unhas, em sua inocente pele. Tudo sem resultado, ainda dormia. “Chinelou-lhe” o bumbum com uma de suas pantufas almofadadas. Já com frio (havia tirado a toalha que o cobria), acordou. E chorava. Dormia, vestia-se e chorava. Menos pela grosseria da mãe, que pelo frio e pelo sono em estar nu em uma noite de inverno. O choro deveria comover, mas segurava. E repetia: “Era só vestir uma roupa!” “Uma maldita roupa!” “O caralho de uma roupa!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!” Parou. 
E o abraçou forte.
Mesmo com o pequeno ainda dormindo, iniciou uma nova repetição: “Desculpa, filho, desculpa...”  Terminou de vesti-lo já delicadamente,  apagou a luz. (Apagada a raiva, o sentido do mundo esclarecendo a noite). E o beijou. Muitas vezes, muitas vezes, muitas vezes... Sua pele úmida molhava o rosto do pequeno, que já ressonava tranquilo. No outro dia, a pergunta: “você lembra da mamãe brigando com você ontem a noite?” – Não, mãe, você brigou porquê? “Porque... porque...”.
Não sabe se Deus existe, mas desconfia que algumas preces são atendidas.