quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Ancestralidade

Eu apenas planto sementes.

Coloco num vaso de terra, aguo e espero.
Nenhuma das sementes que plantei nasceram.
Nenhuma.
O vaso parece só conter terra há meses.
E por isso colocam coisas por cima dele.
Jogam bitucas de cigarro.
Eu vou e retiro.
E molho.
Talvez o sal da água ainda faça a terra dali infértil.
Mas eu sei que um dia alguma das sementes naquela terra podem brotar.
E que se nenhuma das sementes que plantei brotarem, ao menos a terra estará fértil
para outras sementes
ou para alguma muda de planta.
A muda contará a todos sobre a herança que cultivei.
Ainda que ninguém escute.

sábado, 18 de julho de 2020

Valor de uso, referencial vazio e corpo desviantes


Um dia desses apareceu para mim como sugestão de leitura um texto sobre a relação entre o ato de comer animais e o modo como as mulheres são consumidas em nosso sistema de consumo.
Era um texto bem simples que fazia uma comparação entre o ato de observar um pedaço de carne retirando o seu sentido de “cadáveres de animais” e o corpo da mulher como algo a disposição para ser “comido”, consumido. 
Um termo utilizado e que achei realmente interessante é o de referencial ausente. Quando pensamos em uma pessoa ou objeto, esse pensar não é algo etéreo e sem matéria: é algo aterrado em referenciais. Isso quer dizer que precisamos ter em mente uma referência real para entendermos o que temos contato. 
O que faz olharmos uma cadeira e sabermos que estamos diante de uma cadeira? A quantidade de pernas? A função de sentar? Como conseguimos ver uma cadeira de três pernas e outra de quatro pernas e interpretarmos ambas como cadeiras? E como diferenciamos um banquinho de quatro pernas e uma cadeira de quatro pernas? 
A nossa visão passa por referenciais de mundo que consegue classificar tudo o que nos rodeia por analogia. 
Ao voltar ao tema corpos e carne já tendo em mãos o conceito de referencial ausente, ficou mais claro perceber como sou vista. 

O texto diz o seguinte:
A função do referencial ausente é manter a carne separada de qualquer ideia de que ela era um animal. As mulheres são referenciais ausentes em nossa cultura também, sendo vistas como um corpo a ser consumido e usado pela publicidade e de muitos outros modos. A teoria feminista é importante, porque nos ajuda a entender o modus operandi de como as opressões estão interligadas. O livro mostra como os animais são consumidos, literalmente, e como as mulheres são consumidas, visualmente, através de acesso sexual de seus corpos estupráveis.

Dessa forma, somos vistas como hologramas vivos, isso quer dizer, seres sem uma história válida, seres sem narrativa. Nossas dores e prazeres passado e expectativas de futuro não existe. Uma grande amiga em conversa sobre o assunto relações afetivas entre homens e mulheres, disse uma coisa muito interessante, que a relação que homens estabelecem com mulheres é a de eterno recomeçar. O que isso quer dizer? Que a relação que estabelecem conosco é como se fosse sem memórias e sem história. Se nos magoaram em algo e nos encontram em outro momento, agem como se toda a história construída anteriormente conosco nunca houvesse existido. Como se nossos corpos não fossem capazes de reter narrativas, apenas somos “deliciosas”, ou úteis ou inúteis. 
Por isso mesmo, após nos violentarem ou nos magoarem, podem conviver conosco como se nada tivesse deixado marcas reflexivas. 
Obviamente, esse tipo de relação de uso - valer somente enquanto gerar algo útil - não é sempre aberta. Mas, para alguns tipos de corpos, esconder que existe uma relação de uso apenas é quase dispensável. Como um bicho menos valorizado, mulheres com deficiência física parecem entrar nesse último grupo. 
O que eu reflito sobre isso é que há uma pressuposição de disponibilidade em relação à nós. Como se de alguma forma houvesse a garantia de que somos corpos disponíveis. Conforme a frase de Elza Soares sobre pessoas negras, somos tratadas como uma das “carnes mais baratas do mercado”.
Hologramas não menos desejáveis como poderia se pensar, somos apenas aparentemente mais disponíveis de se obter e, por isso mesmo, tratadas conforme uma precaridade de trocas. 
A pergunta que fica é como podemos nos empoderar dentro do universo afetivo? Talvez dissociando afeto e sexualidade. A sexualidade seria dessa forma absorvida por encontros casuais. Entretanto, é o tipo de encontro que coloca mulheres já em situação de vulnerabilidade ainda mais em risco (temos o dobro de chances de passar por abuso sexual). 

Ou, abdicando da sexualidade e centrando os afetos em relações de parceria e amizade. 

*Revista Estudos Feministas: Uma teoria feminista-vegana: a política sexual da carne 

domingo, 10 de maio de 2020

Virtualidades

Os seus dedos
Tateiam
e trabalham
frenéticos
e suaves
sob teclas
sobre teias...
friccionam e
massageiam
imagens
e carnes... (o desejo sempre foi uma virtualidade)
Os seus dedos
percorrem
sem tocar
(sem me tocar)
Os seus dedos
estão longe demais
do que me penetra