segunda-feira, 30 de junho de 2014

Sobre pesos

Eu não sinto outra pele com esta armadura. E, consequentemente, não sinto a minha. É uma violência eu ter todos os dias de vestir esse acessório de horror. Há feridas embaixo dela, feridas nascidas de seu próprio uso. Não bate sol onde ela me protege. As minhas costas doem em carregar seu peso. Há tecidos mortos que começam a putrefazer em decorrência do longo tempo de sua permanência sob meu corpo. A sensibilidade do tato fica cada vez mais debilitada. Eu não gosto dela. Eu não gosto disso. As vezes, eu a retiro, rezo uma oração, e deixo-me ao menos por algumas horas minha superfície livre dessa mortalha. Não me arrependo, mas nem sempre saí ilesa. Contudo, a alguém que tem fé e crença em ser corpo, em ser profundamente corpo, primeiramente corpo, vestir essa maldita armadura é saber aniquilar a si mesma, desde a pele ao coração. Há muita fadiga em carregar uma armadura todos os dias: o eterno desconfiar; essa ética do fingir. Eu queria tanto poder andar pela rua sem pensar no que o outro pode me machucar! Aceitar uma carona, uma flor, uma canção, falar sobre a vida, sobre meus sentimentos e não ter de temer isso... Não ter de pensar nas segundas violentas intenções de tantos abandonos, de tantos exercícios de poder. Poder pra quê? Para novamente me anular? Sendo que se anula ao que me anula no mesmo ato?! Cansaço, cansaço, cansaço... Eu não gosto dessa estética de guerrear. Ela me protege enquanto me oprime. Como ser integra em um mundo em que preciso guerrear?! Se a guerra em si coloca pessoas que se anulam pelo que se é? Por favor, por favor, se me amas, seja sincero e deixe-me ser. Só assim terei alguns momentos de sol e de toque para relembrar-me pele. Para te relembrar em mim. Para haver amor.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

O combinado não sai...


Essa semana, ao ler e pensar tantos temas sobre Amor, relembrei que há dois anos chamei na xinxa  o meu Destino e combinamos que até por volta dos meus trinta e três de idade eu só quereria afetos. Amores, eu passava, que meu coração precisava estar um tempo em sereno e o desejo de mais exposição, variação. As vezes, eu quase volto atrás. Principalmente quando minha vida está em dor de parto, nascimento  e revolução. Dá uma vontade enorme de pedir uma mão, uma mão fixa, de alguém que, como um anjo, puxe-me pelo braço e diga “vem, Yara, eu te ajudo de agora em diante. Tó um cafuné pra você se acalmar.”. Daí eu lembro que mais rápido é pedir ajuda aos amigos.  Que mais rápido é eu aprender a ser aquilo que o destino me rabiscou em lua e signo: ser duas. Ser a que organiza e a que desorganiza. A que resolve a pintura da casa e arruma a cama. A que é a boêmia e do lar. A que vai ter de aprender a dirigir pra levar menino na escola e trabalhar em mil empregos. Para o quê não conseguir só, poder bancar. A feminista, a foucaultiana, a deleuziana. A que carrega um bambolê, em caso de precisão do lúdico. A que luta e que descansa. A que escreve e é escrita... Dá um medo. Mas trato é trato, senhor Destino! Que aprendi a num arredar pé de meus desígnios.  Aos afetos, aos mais lindos afetos, a janela estará sempre aberta, assim como se deve deixar aberta a vidraça caso se queira apreciar o belo do pôr do sol. Ademais, eu passo. E amor, aqui, a quem o ler, é extenso no espectro e vago na incidência.  A escrita aqui é profusa no amor,  opaca no objeto, dúbia na autoria, mas sempre vermelha na refração. O vermelho que em mim, conforme combinado, não poderá ter nada do que amor denote e tão somente o  que do sangue me escorre. Qual o malandro do morro, que em todo canto tem um doce e uma cama asseada à sua espera, serei a poeta que não ama e escreve. Mentir é algo que já tenho intimidade. Todas as eus.  A que ama e desama e reama em mesmo ato.  A que escreve no que se escreve pelo Outro. E só ao Outro apaga. Nascendo dos rabiscos desse Outro ao que permaneço sobrescrita.  

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Das fidelidades imediatas


Fiel à língua sigo
a língua...
que percorrendo o meu
ventre
entre-fendas
de meu íntimo
abra com espada posta
os espaços úmidos
de minha escuridão

e meus assonados
suores sem temores
(ali, ali...)
clareie
entre topadas e tremores
relâmpagos e raios
o que adormece
ainda que
enervado
espasmos
pela língua
tateados
escultura
para dentro
em ritmada
coreografia
te(n)são.

Fiel à língua sigo
enquanto me ancoro
em seus negros olhos
postos
até o fechar dos meus
indefinidos e confusos
mar  esverdeado  por ti
revoltos
na loucura
de seus pelos
em meus lábios
inconciliável
se te olham
nesse instante 
inflamável
vastidão
que só se
faz no que frisa
pela fricção
e indomável

E envolta por seus braços
largos
alago
a mim
ao quarto
à sua pele
ao infinito rasgo
aberto 
enfim
aqui, aqui...
na completitude
e no manuseio do mastro
e do barco
que navega
no que constrói
e se corrói
no próprio 
velejar
o fim-sem-fim
de uma nova língua
sem barragens
fundura preenchida
em mim
no movimento de 
a-fund-acão-
  
e qual eletricidade de nuvens que se chocam
na tempestade
línguas que se tocam 
elétricas em cavidades 
fiel eu sigo
agora eu mesma imensa
e fiel
enquanto apenas sigo
e tomada
e inteireza
enquanto sigo:

e sigo
e sigo
e sigo
imensa, imensa, imensa...

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Definições íntimas


Em meus lábios
nenhuma metafísica
nenhum caos dadaísta
nenhuma abstração
improvável.
(sempre
prováveis)

Para sabê-los
basta
apenas
tê-los
basta apenas
olhá-los
basta
francamente
tocá-los
experimentá-los...

Em meus lábios
o acesso é
sem sinuosa
aporia
sem nenhuma
tonta teoria
e tantas
vezes
sem sequer
qualquer
indumentária
máscara
farsa
tarja
nua pulsão atávica.

Em meus lábios
a saliva é a saliva e se
por acaso
ávido sentires
lancinante
lassidão
não é tão pouco
a Razão
a razão de celestiais babas
de meus lábios
de TODOS os meus lábios
laços
cárneos
feitos e refeitos
na experimentação
mastigação 
de seus esfomeados.

E em meus lábios
a língua lambe
o que em outro se espelha
e da imagem
pouco quer
e interpreta
O que procuram mesmo
é o que na semelhança
se acaricia
languida lambida
E morrem
em ato
no que se regeneram
no que se tateiam
no que se remedeiam
satisfeitos
úmidos e fartos
alagados.

Em meus lábios
é a carne e a saliva
sem nenhuma metafisica
sem nenhuma
tonta teoria
- neles e por eles
(nos seus e pelos seus)
a poesia morre
em seus encontros
físicos
ínfimos
ao nascer de um beijo
na mistura de entremeios
- e nisso é o que é
e é no que passa a
sê-los:

lábios
sendo
lábios
meus
e
nossos
lábios.   

segunda-feira, 9 de junho de 2014

No que me atravessa, contigo estou.


Há quem procure por verdades. Há quem procure por essências. E nisso tudo, geralmente o que as pessoas procuram são estabilidades. Segurança. Eu, filha arredia da senhora dos métodos, a Linguística, aprendi com ela mesma que o método mesmo já é a busca de algo que parte de si. Não adianta. Só se procura o que aos olhos já é em nós falta. As verdades são um pedaço das nossas próprias ansiedades. Por isso, acredito que mentiras podem dizer mais. Elas já vão direto ao que interessa de mim, ainda que sublinhando ou apagando parte dos fatos. A intensidade do fato, sua vibração. Acredito ser o motivo de que eu só funcione pelo desejo de intensidades. Só importa o que a mim me atravessa. O que você é? A sua essência? Pouco ou nada me interessa. Como você me atravessa é o que eu realmente vou reter. Você pergunta sobre meus projetos a longo prazo, sobre meus desejos mais secretos, sobre a verdadeira Yara... e nada. Não há nada de verdadeiro em mim. Eu estou em relação a ti, ao meu corpo e às minhas memórias. Não encontrará aqui encosto em minhas estabilidades. Sinto muito. Terá de se segurar em ti. Não me perguntes quem eu sou. Eu não sei nem mesmo se sou. Se quero ser. Dou um passo. Sinto onde me leva. E só então te direi o próximo. Ando em uma grande neblina. A espera de que, como uma fulguração iluminada e quente, você me atravesse. Que rompa alguma fibra e dispare alguma sinapse do meu sistema nervoso. Alguns podem chamar isso de comodismo. Ledo engano. O que sabes da força e da dor em sempre  segurar o impacto?  Em ter de conseguir sempre que não rompas todas as minhas fibras? Achas que não tenho medo de que me transfigure em ti e nisso perca o que trago tão frágil e intenso para ti como oferenda?! E da  angústia que é só se mover em um caminhar turvo? E do medo diário ao dar o primeiro passo do próprio movimento de caminhar? Devo confessar que não aconselharia essa minha ética. Não é inteligente estar assim. Não há inteligência na paixão. E o que há mesmo disso é uma paixão. Em andar de peito aberto ainda que sob o perigo do relâmpago. Um requinte de esfomeado. De escolher sentir a caricia ou a dor no que tem de mais nevrálgico. Há quem procure verdades. Há quem procure essências. Eu procuro indefesa o que de tão intenso é em ti que me atravessa. E se, ávido de nomes e classificações, ainda insistir em nomear o que “sou”, talvez, sugiro apenas : um atravessamento. Não exijas outra coisa de mim que não encontros e atravessamentos. 

segunda-feira, 2 de junho de 2014

A poeta


A poeta é uma fingidora
sente a dor
e vai lavar louça.

A poeta é uma fingidora
sente a dor
e vai acudir a criança
que chora
com fome
e sem rima.

E chora...
e não escreve
apenas
chora.

A dor que deveras sente
e não lê em livros

que fingem falar de dor
a dor
que é Ela
quem deveras sente
e finge.