sexta-feira, 29 de junho de 2012

Amar duras e doces

Eu sou a única heroína de minha solidão,

de meus amores.

 

E nem por serem de vento,

os meus moinhos,

doem menos.

 

Se a minha coragem é quixotiana,

ainda sim, é coragem.

 

As minhas lágrimas não são de vento.

E os meus moinhos, as vezes, também fazem gozo.

 

Você ri da minha armadura.

Mas a verdade é

estou nua.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Corpo líquido

Olá querida linguagem diarística, como vai? Olá eu mesma, única leitora de meus textos! E após um longo silêncio do diálogo comigo mesma, eis que volto a essa esquizofrenia de cada dia. O motivo? Sobre ser “des”, sobre ser “a”, sobre as aventuras de meu desnascer de cada dia.

Faz algum tempo que me faço “políticas” promessas a respeito de alguns projetos. Entre tantos sonhares, citarei os relacionados à escrita. Prometi-me escrever um ensaio sobre corpo na contemporaneidade, um texto sobre infância e espaço, o término de um relato sobre um sonho maluco que tive e a escrita de  uma história infantil. Até o momento, só realizei a conclusão da última. E nesse meio tempo, dores, frustrações, doçuras e a vida que de um momento a outro me colocou em suspenso. Um futuro em neblina. E eis que perdida nas charadas de meu destino o qual resolveu que levará para longe dois de meus melhores amigos, deixar-me sem endereço e atrasar mais uma vez a entrada ao mestrado, vejo uma ponta de beleza. Quem sabe para salvar um ego que desesperadamente segura-se pelas bordas. Ou seja pela beleza mesma  que há em noites de neblina. A vida em suspenso. A vida a contemplar seu próprio processo. O texto hoje é sobre a beleza da neblina... 

Amaldiçoamos em nossa cultura a neblina noturna de nossas vidas. Tentarei explicar.  E a palavra “tentarei” é uma escolha ética. Bauman  em seus textos sobre o Amor, o Tempo e Identidades Liquidas, entre outros temas, aponta-nos o caráter imediatista, acelerado, individualista e frágil de nosso tempo, de nossas identidades e de nossos amores. Amores líquidos e medrosos que presam pela superficialidade das relações, pela assepsia dos contatos humanos e pela angustia do desejo por novidades que nunca é sanado na profundidade das relações amorosas, mas antes, no consumo de identidades líquidas, claro.   Identidades essas fruto de um egocentrismo alucinado e tristemente carente que nos aleija de afetividades duradouras, ou mesmo, de projetos coletivos a longo prazo. 

Sob o falso rótulo de diversidade, diversidade essa nada diversa - que exclui mulheres, mendigos, ex-presos, negros, favelados, velhos e crianças do que não se enquadre em um tempo líquido, de relações liquidas - somos nós todos liquefeitos por discursos de naturalidades nada naturais que passam por cima de tudo que atravesse o que não serve ao consumo. E, nesse momento, poderíamos perguntar ”o que é o consumo?”, ao mesmo tempo que relembramos os dizeres de Schopenhauer sobre o desejo de felicidade. Talvez o filosofo escrevesse com muito mais firmeza sobre a angustia do desejo, se vivesse em nossa época. Afinal, nada mais assertivo na vivencia do tempo líquido do que afirmar que felicidade é um objetivo inútil, posto que é fugaz. Em uma sociedade cujo alicerce é o consumo, a felicidade é sempre uma angustia. Isso porque consumo é resultado. Nossa felicidade é produzida para ser consumida em alguns minutos, ou mesmo, horas e logo depois, descartada. Vou além: consumimos, entre outras coisas, verdades. Ainda. 

Foucault em um de seus livros sobre a História da Sexualidade levanta a hipótese de sermos uma cultura da vontade de saber, ou ainda a vontade de verdade. Desde Platão herdamos a herança de desejar encontrar a grande verdade das coisas. E com isso, embutimos a vontade em apagar qualquer tentativa de diversidade. Foucault nos aponta como desde a inquisição, na religião, à psicologia, na medicina, estamos ideologicamente em busca da Verdade. Para tanto, nos lembra da inquisição com seus confessionários cheios de pecadores e seus fieis a confessarem os pecados que ela mesma criou, em nome de uma pura e essencial verdade divina. Nos lembra também das ciências médicas, como a psicologia, a qual tem como objetivo a busca de nossos misteriosos segredos psíquicos. Segredos de nossas almas e os quais nem mesmo nós saberíamos. Basta lembrarmos como, sob o discurso da verdade e da higiene mental, rotulamos por tanto tempo homossexuais como doente psíquicos e com que frieza lobotomizamos milhares de pessoas sob o diagnóstico de loucura. Assim, em nome da Verdade, pudemos criar o bem e o mal e eleger quem e o que deve se enquadrar nessas categorias. Pudemos eleger as culturas portadoras da verdade, a moral da verdade, a sexualidade da verdade. E o que é a Verdade? Eu arrisco aqui em dizer: a verdade em nossa cultura é resultado. Resultado esse produzido somente por quem pode deter a verdade. 

O ato de dizer, dessa maneira, está restrito ao que detiver os requisitos necessários de determinada identidade. No caso da Grécia, o cidadão – excluídos os escravos, as crianças e as mulheres. Em nosso caso, as diversificadas e legitimas identidades líquidas. O conceito de identidade pressupõe alguns requisitos. Mas, conforme os parâmetros de nossa época e ainda, restringirei, em nossa cultura contemporânea ocidental, pressupõe basicamente a capacidade em ser X e não ser Y.  Dessa forma, nossa sexualidade é engessada pelas identidades masculino e feminino e de sua negação: não-masculino, não-feminino. Nossa existência é engessada por identidades baseadas em resultados, embora com abertura ao efêmero. Mas mesmo essa abertura é pressuposta por identidades pré-determinadas. E sempre sob a égide de um resultado. O processo em si é apartado de nosso projeto de felicidade. E é esse exatamente esse o ponto que gostaria de questionar. 

Se nossa natureza humana é intrinsicamente processual, afinal, cada fase de nossa vida visa sua experiência em si – gravidez, nascimento, infância, fase adulta, velhice, morte,  por que o aprendizado e os prazeres idealizados por nossa cultura presam por vivências que desconsideram o caráter processual dessas mesmas experiências? Por que nos preocupamos tanto com o tempo do que nos dispomos a realizar e tão pouco com o modo e para quem o realizamos? Quais as consequências em se optar por um modo de vida de busca por resultados?

Deixo claro aqui que isso é um ensaio. Não tem nenhum compromisso com verdades e encerramento de discussões. Exatamente porque acredito que a autoridade para questionar pressupõe a responsabilidade do conteúdo, mas isso não implica, como sugerem-nos na academia, uma infinidade de leituras nunca alcançada para esse resultado. E em decorrência disso, uma lógica do silêncio e do poder: os dignos de dizer e os resignados a calar. Se só questiono o que acredito ser digna de o fazer, então, se não o for, o resultado deve ser o calar? Se seguisse a lógica da verdade, realmente, não seria possível arriscar um ensaio que veiculasse o erro, posto que deveria zelar por minha identidade de pesquisadora. Mas varro de meu texto essa lógica, assim como varro o uso da terceira pessoa, com todo respeito à tradição. A verdade é resultado. Eu busco o processo. O professor questiona ao aluno seu conhecimento sobre a verdade. Se ele acerta, ganha pontos, prêmios, passa de ano. Se erra, perde pontos, têm sua palavra deslegitimada, não passa de ano. E se os alunos pudessem questionar sobre conceitos a serem  construídos sob a lógica do processo e não de uma verdade a priori? E se a discussão fosse o objetivo do aprendizado  e se os resultados não pudessem ser dissociados da reflexão?  E se o tempo da reflexão levasse em consideração um sentido comum de bem estar? Sem os de dentro e os de fora. Não advogo pela eliminação da tradição, longe disso. Mas antes de vivências que pudessem ser compartilhadas ante a legitimidade do bem coletivo e comum e que levasse a vida dos que delas compartilham como matéria de interesse  e ponto de partida e não como conteúdo indiferente e sem contribuição nenhuma a nossa vida. Acredito que teríamos aí uma crise de autoridade. Eis a beleza e, segundo muitos, o perigo da inversão do olhar ao processo. 

Vou exemplificar. Se o caminho fosse parte do destino, talvez não aceitássemos o trânsito e os carros. Se o sentido do conhecimento importasse em seu processo e não somente em seu resultado, o tempo e a reflexão sobre o sentido destinado a ele teria toda a importância. Se optássemos por aprendizados, tratamentos de saúde e escolhas alimentares mais amorosos e com mais rituais de passagem coletivos. Se levássemos em conta, dessa maneira, um olhar processual sobre nosso modo de vida, seria possível manter uma lógica do tempo liquido como hoje a temos? Seria possível manter uma lógica da verdade, tendo em vista que nossas crenças levariam em conta o sua construção? Se sem tantas autoridades, mas com conhecimentos que respeitassem cada fase de nossa condição humana retomássemos o sentido de nosso tempo? O sentido de nós dentro do tempo. O sentido de um novo paradigma em que o tempo e o espaço são um continuo de nós mesmos. 

Separamo-nos do tempo e do espaço e, consequentemente de nosso próprio corpo. Por medo da morte, ou por medo de não sermos amados, talvez. Mas nós somos o tempo. Tanto é que a relação com o tempo muda de cultura para cultura e de época para época. Somos também o espaço. As distâncias percorridas e a orientação que conduzem, ou espaços que repele, as repartições de nossa casa e número de moradores, a necessidade dos muros são alguns exemplos de como também somos o espaço. E, por fim, somos nosso corpo. Somos nossas dobras, nossas excrecências, nossa maternidade, nosso modo próprio de tocar, cheirar e olhar o mundo. E nisso, somos também em coletivo. Aniquilamos de tal modo nosso corpo, separamo-nos de tal modo de nossa realidade, tempo e espaço que perdemos o Outro, e consequentemente, a nós mesmos. E, quem sabe, não seja por isso que tenhamos ido morar na linguagem? Segundo Viviane Moises em sua tese de doutorado, essa virtualização de tudo ao excesso é consequência de termos ido morar na linguagem. A linguagem dos livros e das máquinas.  Linguagem essa, em tempos de liquefação, linguagem de desumanização e histeria, linguagem de tempos e memórias cada vez mais fragmentadas, efêmeras e superficiais. Tempos de valorização da linguagem pedante e esterilizada e de hermetismo tecnicista  – vide os textos científicos e jurídicos. Linguagem alienada de corpo, de seu enunciador, de sua história, de seu sentido. Corpo amputado de seu espaço – muros e distâncias ilógicas. De seu sentido – o amor. Corpo destituído de alteridade – e por isso, a passividade, a violência e a busca insana de poder.  Corpo esterilizado de seu próprio processo de maturação – a esterilização da velhice, a impessoalidade dos cuidadores de nossos filhos, a negligência com os velhos. Corpo destituído de dobras – sem rugas, sem cheiro, sem dor, sem excrecências, sem rituais, sem amor. Corpo sem contradições. 

Se o aprendizado nasce da contradição, e a concepção que nos norteia é a de resultado, que só aceita à verdade, como lidar com uma cultura em que o erro deve ser eliminado? Eu tenho um palpite: o de que talvez, a resposta seja o começo de nossas angustias. Eliminando-nos.                                                                           

    



quarta-feira, 13 de junho de 2012

Solo

Eu pensei em escrever sobre as coisas que sinto. Sobre carnes desformes e almas espelhadas em convexo . Sobre gritos que escorrem pelas mãos e que ninguém vê. Sobre ter a sombra aos pedaços e os medos inteiriços. Sobre isso de nunca enxergar-se. Sobre santificarem-te morta enquanto empalham-te viva. Sobre mover-se rio, enquanto todos são mar. Sobre mãos que envergonham-se de tocar e ainda sim tocam. Sobre um útero que ninguém via. Sobre uma vagina que fingi-me não ser. Sobre ser fera e bela em um mesmo corpo. Sobre ser agridoce. Pensei em citar nomes e guetos, e ícones, e músicas, e bantos, e batidas, e histórias de gentes minhas de outras gerações. E procurar alguma Angela Davis, algum dos Panteras Negras ou ler algum Craveirinha que finalmente nomeasse o que sou. Pensei. Não escrevi. Meu silêncio é solitário. Palavra em amnesia não enxerga.   


Carne que se fez linguagem. Eu sou dislexia. A minha carne não toca jazzes, nem blues, nem sambas, nem faz poemas . Terei de inaugurar este novo grito dos olhos.


segunda-feira, 11 de junho de 2012

Adagas

Faca de dois gumes,


eu beijo o espelho e ele não me corta.


O reflexo ali não é o meu.


Não me corta, mas me atravessa. 

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Sem título

O tempo masca o corpo enquanto assiste um noticiário da privada. Ouço um relato de crime hediondo e distraio-me para que não me importe. Durmo. Acordo. Pego o ônibus. E sonho o rebentar de estradas e seus crânios estúpidos pelo chão. O vidro está embaçado.  Chovem-me gritos infantis e uma enxurrada de menstruação e placentas atam-me as vísceras. A vida fez-me água. Fez-me também covarde. E  agora meu reflexo só alcança a fugir de meus espelhos. As estradas seguem intactas. Os noticiários seguem ilesos. Já os meus cacos caem. Inconveniência de minhas aguâncias.  

Eu obedeço pau-mandada a uma pontuação fingida. Aos meus estupradores abro as pernas e ensaio um gozo. Lâminas que me represam.  Todos creem no gemido. Embora desconfiem. 

Sentamo-nos. Há dias. Há anos. Há séculos. Somos insensíveis às feridas de nossas bundas. Epidemia coletiva. Anestesiados à dor. O que ninguém consegue me explicar é ter um cartão de crédito e ainda sim continuar sem um único gozo. Sem querer ignorar. Eu não sei. Mas gostaria. Eu não vejo. Mas pressinto. E ainda sinto essa aflição. Galáxias inteiras gritam-me pelas fibras cataclismos estuporados de pavor.   Eu leio os muros e sei que não estou só. Eu sei. Não exatamente. Sinto. Mais do que certezas.  E como dizer? Não sei dizer. Fizeram represa de mim. Conheço algumas pessoas admiráveis que poderiam fazê-lo. A tarefa, todavia, não é passível de substituição. Sou minha única porca de mim. E ninguém poderá dizê-lo de minha boca. O meu mau hálito é peculiar e doce. Muitos gostariam de assepsiá-lo. E fazer-me acreditar que é causa mortis mau hálito. Silenciosidades, surdo canibalismo. Chupação da voz. Somos peritos em transitivar o verbo calar. Porém, entretanto, em toda via, embora prisioneira dessas margens, não fui amnesiada. Ali além, sei-sinto de que, se eu abrir meus dentes, também haverá licorosos segredos. Fétidos, mas acima de tudo, doces e singulares. Que não estouram crânios. Nem estradas. Nem as margens.  Nem os pontos e vírgulas. Mas lambem esgotos e fedem de cacos o seu reflexo. E nisso, somos. Em comum. 

Podem conter o liquido. Todavia, ainda ouvem na garganta o odor que a atravessa.