quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Encontro

 quanto mais as pessoas negam meu corpo
mais o procuro
é por meio dessa matéria - corpo - que eu sinto o mundo
e por meio desse sentir que construo o quê penso
alguém dizer para mim que eu venci meu corpo
e querer que eu transcenda meu corpo
é destruir minha inteireza
é me jogar numa busca ainda mais incessante desse corpo
dessa minha máquina de sentir e pensar
Esperar que eu supere meu corpo
que eu dê algo em troca da falta que transferem ao meu corpo
inventar poderes mágicos para ele
em volta de uma falta que não existe
só para disfarçar o incômodo com uma suposta falta
minha,
só me devassa mais
como todo mundo eu também quero saber
o que as pessoas acham que eu sou
e quem sou eu em meio a tantos espelhos
distorcidos
O quê posso querer ser...
Mas
eu não poderia ser mais bonita se
(não tivesse deficiência física)
eu não sou feia por causa da
(deficiência física)
eu não sou mais inteligente para compensar
(minha deficiência física)
nem mais psiquicamente forte
As fibras que compõem meu cérebro têm
igual ou maior limitação que boa parte das pessoas
e eu não estou me expondo mais
eu estou me impondo com mais ferocidade apenas
se eu não posso ser "normal"
então serei a minha detalhada invenção
de anormalidade
eu não estarei mais somente nas
descrições e fotos de livros médicos
nem somente na categoria de pornografia bizarra
Eu não serei a esposa de um homem
misericordioso e muito preocupado
E sim
A antipatologia de um corpo
A antipornografia de um tesão
A minha grafia ontológica
A minha detalhada invenção em naturalidade
eu existirei deliciosamente
para fora de mim
como uma invenção minha
pelo menos em alguma medida
e os livros médicos não serão a única referência possível
da existência de pessoas como eu
E
não sinta dó de mim
seu amor me assedia quando você vira as costas
e eu penso em ceder
mas lembro que
não preciso disso
que você não é mais feliz porque tem mais dedos
e nem eu lembro disso quando os boletos chegam
mas eu lembro bem que
as mulheres não são mais felizes porque têm um homem
e nem eu serei se tiver um
eu só ando querendo me ter
que foi a minha primeira subtração pelo mundo
então
eu invento
com muita naturalidade
não me incomodar com o quê inventam sobre mim
sobre meu corpo
Jogo fora alguns santinhos não requisitados
Assim que viram as costas
E escrevo um poema
com mais uma parte de meu retrato-falado e novas invenções