quinta-feira, 30 de maio de 2019

A carne do olho


Seria de pura carne nossa o quê fica dentro dos olhos? Ou os olhos são eles sim depósito da carne do outro? E eu li em algum lugar que é atrás dos olhos que mora o amor. Ao mesmo tempo, acredito, é por meio deles que tantas vezes o amor vem mesmo sim é a morrer.
Édipo cegou a si mesmo ao descobrir que por engano havia se deitado com a própria mãe. Dorian Gray só teria a juventude eterna garantida se jamais se olhasse em seu próprio retrato. Quando ficou diante de si, esfarinhou-se por seus próprios olhos.
Todos os dias, quem tem visão vê. Teoricamente, né? Porque nem sempre quem olha, enxerga. Já experimentou caçar um objeto que o tempo todo estava ali, na frente da sua cara, mas nada de achar? Pois é. Todos os dias eu era obrigada a usar os olhos de modo atento e proposital. Os olhos não traduzem o que capturam sozinhos, precisam do Outro como espelho. E o que eu sentia por essa janela de jaula chamada corpo nem sempre era o amor atrás dos olhos.
Eu sentia também muito sangue no olho. Raiva.
Será que os vidros das minhas janelas estariam embaçados?
No conto “O Espelho”, de Guimarães Rosa, o personagem um belo dia ao se olhar no espelho, não se reconhece. Logo em seguida, esse mesmo personagem se olha e sente repulsa. E a imagem ao espelho vai mudando ao longo do conto. O que para tantos era ficção, para mim era um fato cotidiano.
Explico. Um dia enquanto eu me olhava ao espelho, percebi algo diferente. As mãos, os cabelos, as pernas... Eu não conseguia ver nada disso no espelho. Essas partes do meu corpo apareciam somente de maneira embaçada. E não, não havia nenhum problema de visão. Então eu tenho esse silencio da visão, uma casa de janelas embaçadas.
Embaçada porque fechada, fechada porque nem todo outro é bom espelho. Esse semana mesmo. Estavam ali, janelas postas sobre janelas, ou seja, a alma nos olhos e as outras janelas, aquelas, somente semi-serradas atrás de vidros transparentes e anônimos. Pressa e confusão, estilhaço de pessoas no entra e sai do metrô. Almas de janelas abertas e grossas cortinas fechadas passando como cacos que se dispersam quando vidraças são quebradas.
Ali eu apenas uma moça de traços redesenhados pela maquiagem, batom vinho, reflexo do desejo de ser vista no que se recria. De repente, ao meu lado, sentou-se outra moça. Espontaneamente, como se tivesse muita intimidade comigo, puxou assunto. Queria dizer algo a qualquer custo e queria parecer amável. Talvez fazer um elogio. De modo direto e não requisitado me fez ouvir “você seria muito bonita, uma pena ter nascido desse jeito”.
Desse jeito...
Nenhuma resposta.
Apenas os olhos escancarados diante de uma janela fechada, diante uma alma encerrada em si.
Quando eu era criança, achava que as pessoas tinham dificuldade de desenhar bem porque tinham dedos demais e isso era um peso, um empecilho sob o papel. Até um tempo atrás, quando eu queria ser pirracenta com alguém inconveniente em relação à minha deficiência física, eu apenas me perguntava mentalmente de que adiantava tantos dedos se não sabiam nem se masturbarem direito. Hoje em dia não tenho mais idade para pirraças e nem para pensar a vida intima ou o excesso de dedos das pessoas.
Demorou um segundo para eu conseguir voltar a mim depois da afirmação daquela pessoa cheia de dedos. A palavra “seria” retumbava em minha cabeça e eu só conseguia pensar: pretérito imperfeito. Uma beleza em pretérito imperfeito. Interessante. Como é possível uma pessoa enxergar algo como belo, algo que não foi mas seria?
Desci na estação seguinte e, por alguns segundos, com curiosidade me observei enquanto o metrô mantinha suas janelas diante de mim. Minha alma ali misturada às pessoas. E então me vi. Por alguns segundos. Que erro daquela mulher! A maquiagem estava impecável.