segunda-feira, 21 de março de 2016

Direito de resposta

Em uma das aulas de faculdade, na matéria de Análise do Discurso, minha professora, Norma Discini, falava sobre a ideia de concessão. Muitas pessoas dizem ser muito flexíveis e não ter preconceitos (todos temos), mas a verdade é que o que governa seus afetos é a lógica da concessão. O que isso quer dizer? Que elas “aceitam” maneiras de viver diferentes da sua só que só sob ressalva: “apesar de”. Assim, por exemplo, dentro dessa lógica, a aceitação do Outro é sempre parcial 
“apesar de fulano ser gay, eu o tenho como amigo”
“apesar de ser morador da favela, é trabalhador”
“apesar de ter deficiência física, é…” (eu não vou preencher aqui pq dói demais!) 
Nesse tipo de discurso, o da Concessão, o outro é aceito não pelo que o caracteriza prioritariamente, mas por ser a exceção dessa mesma categoria. Assim, é exatamente pelo que saio da ideia de pessoa com deficiência física, é no que sou aceita. O pré-conceito continua lá. A ideia que essa pessoa tem a respeito dessa categoria - pessoas com deficiência física - continua lá. 
Essa semana com os acontecimentos políticos e o afloramento dos ânimos a respeito da posse de Lula e da possibilidade de impeachment da Dilma - a lógica da Concessão veio à tona sem véus. Fotografias nas manifestações em que moradores de ruas, negros, mulheres, pessoas com deficiência física são ridicularizados vieram a público sem o menor pudor. Memes em que o desconhecimento a respeito do nome de um filosofo em um pais de educação precária e analfabetismo funcional também (não apenas na direita a Concessão vigora, ein?!). 
Na realidade, as pessoas NUNCA aceitaram CORDIALMENTE esse Outro que tanto exaltam tolerância. Elas aceitavam a presença desse outro - o diferente - naquilo em excediam em exceção. 
Entre os maravilhosos memes que circularam - e aliás, faz algum tempo já circulam - mensagens de apologia ao estupro da presidenta e piadinhas com a mutilação do dedo de Lula, dizeres em que a pessoa resume pessoas que votaram em Dilma a iletrados e, logo, como eleitores ilegítimos - fizeram parte do circo de horrores.
De todos essas pérolas, claro, atingiram a mim diretamente os memes de apologia ao estupro e ridicularização de pessoas com deficiência - memes citando a mutilação do dedo de Lula. 
A mim ficou claro que sempre essas pessoas odiaram mulheres e pessoas com deficiência. Eu sou apenas a Concessão de seus discursos. 
Eu sou o meu corpo. Ninguém merece ser estuprado e o estupro é uma violência que só tem lógica no corpo das mulheres. A “falta” que gera o riso no caso da mutilação de Lula - pior ainda, pois foi resultado de um acidente que envolve dor física - é a mesma que instauram sob mim. 
Claudio Botelho, diretor de uma peça de teatro em São Paulo, gritou ao público abertamente: "O ator que está em cena não pode ser peitado por um negro, por um filho da puta que está na plateia.”. Para ele, sempre foi e sempre será inadmissível que um negro esteja na mesma categoria que ele. Aos que fazem parte de seus afetos, regerá sempre a lógica da Concessão: “negros que se comportem como brancos”. 
A quem acompanha o que escrevo ou convive comigo sabe que falo muito pouco a respeito das questões que me atingem com relação a deficiência física e às consequências da agressão que discursos capacitistas têm e terão em minha vida. Da instauração dessas faltas socialmente criadas.
Quando pessoas saem as ruas e sem vergonha nenhuma xingam negros por serem negros, mulheres por serem mulheres, gays por serem gays, pobres por serem pobres, iletrados por serem iletrados, o que elas estão fazendo não é um mero insulto individual politicamente incorreto. Ao afirmarem de maneira aberta discursos do senso comum, manifestam terem como pressupostos esses discursos. Para eu rir de alguém por essa pessoa ter olhos pretos, é pressuposto que acho inferior a pessoa ter olhos pretos. 
A lógica da concessão todavia parece funcionar apenas quando os que foram “aceitos” se mantém em seus lugares sem fala afirmativa: na marginalidade. A partir do momento que passam a reincidirem voz ou a obterem, os ânimos se exaltam e a lógica da Concessão vem abaixo, independente de fatos políticos de FlaXFlu. 
Para uma grande parte das pessoas, não é o “fora PT” o que move sua indignação. O “fora PT” é apenas o último estágio de desejos não declarados em dizer: “fora analfabetos, vadias, imprestáveis - leia-se pessoas com deficiência física e/ou moradores de rua -, pretos, traidores de classe (classe média branca letrada de esquerda)”. Por isso o horror em se desnudar o que sempre esteve presente só que sob o manto da cordialidade. 
Em resposta ao meme com a mão de Lula sem o dedo mutilado, em resposta às imagens de Dilma com as pernas abertas, em resposta aos memes satirizando a musa do impeachment (ou vocês acham que eu não iria citar os “coleguinhas de esquerda”?), por aquilo que os caracterizam em seus corpos e classe de minorias - mulher, pessoa com deficiência, saio do meu lugar de concessão e marginalidade para afirmar:
eu tenho maos com três dedos que escrevem
uma boceta que cria pessoas e mundos inteiros
e a bosta que sai pelo meu anus não vira meme de internet, nem texto escrito, ou abortos de mundo. Pois, para criar memes e textos e mundos eu tenho:
maos com três dedos que escrevem
uma boceta que cria pessoas e mundos inteiros
Não há falta nenhuma em mim. A única falta que há é o vazio desses discursos que não se manteriam sem instaurar faltas onde não há.

quarta-feira, 2 de março de 2016

O tempo da história e o tempo da nossa história



Ontem eu assisti um vídeo feito por meu filho em um dos ensaios do grupo de dança que participo. Antes de abrir o vídeo, não sabia, tinha duas expectativas: que não gostaria de ver o modo como eu danço, mas que não estranharia ver minha imagem no vídeo. Digo que não sabia dessas expectativas, pois foi a inversão delas o que me causou estranhamento e então eu soube que era o que eu esperava encontrar. É muito aflitivo a gente perceber que as mudanças históricas demoram séculos a acontecer e o tempo da nossa vida é muito curto em relação a esse tempo. Vai demorar muito tempo até alguém como eu olhar o próprio corpo fora de um álbum  de compêndio médico. E eu sei que esse tempo vai além da minha vida. É nesse momento que eu me pergunto: por que querer voar se já estou suspensa? Sinto-me paralisada diante da questão. O tempo é implacável e nem todos têm a opção de fugir do próprio corpo - e entendo quem o faça, como entendo…

Começo a sonhar a queda, já que a suspensão é angustiante demais para me manter e o voo está longe demais para alçar. É bom esclarecer que não é um desejo de superação de nada. Não há nada a ser superado. Quando as luzes se apagam e eu fico a sós com a solidão dessa condição, projeto uma sombra turva sobre os olhos e parece que consigo enxergar um aceleramento no tempo, como se senhora Chronos um pouco eu me tornasse. Ansiedade. Queda. Alguma liberdade. Um corpo em um álbum em branco. Incompleto, vazio, incógnito. Mas, pelo menos, que não fosse mais um compendio médico.  Tempo, tempo, tempo… como eu gostaria que deixasse pelo menos eu escrever a primeira letra de uma história de vanguarda.  A queda como parte de uma dança. O voo deixando de ser a norma da coreografia.