Eu sou também o meu silêncio. Cinquenta por cento de. Mas o
trabalho, a TV, as lojas, os formulários e a ansiedade dos afetos, todos os
dias, tentam cooptar essa parte de mim. Tentam me impor, tentam me seduzir,
tentam me coagir. E criam buracos movediços para que eu preencha com os cadáveres
de meus anseios. Enfiam comerciais nos intervalos. Instigam meu ego a falar
repetições vazias. A escrever verborragia. A xingar pelo silêncio
que me tomaram, capturando assim duas vezes aquilo que só obteriam uma: o
silencio roubado e o silêncio do luto desse silêncio . Para tudo, rapidamente,
a obrigação de um exato posicionamento. Sem contemplação e freios. E eu caio na
armadilha. E depois tento preencher o que nunca caberia preenchimento. Com
lindos vestidos, gritos esganados, afazeres atulhados, noites mal dormidas. Frágeis
ilusões, placebos, unguentos, invenções anoréxicas apesar de destemidas. Porém, uma hora a noite chega. E quando se
está só em um quarto escuro com o corpo em repouso e os olhos estalados, não há
como fugir: eu sou também o silêncio barulhento que na noite me devora. Síndrome do pânico,
ansiedade, fadiga, cansaço... muitos nomes difamatórios para apontar inocentes e
pontuais cobradores que em um horário seguro de minha presença aparecem para somente
retirar o que lhes é direito: nem mais nem menos, os cinquenta por cento do que
não estou sendo. Somente aquilo que me
devo. Nem mais. Só menos.
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