terça-feira, 23 de outubro de 2007

InCrise

http://incrise.blogspot.com/
Poesia e prosa

Para uma matança da matança de tempo. Blog InCrise

Rating:★★★★★
Category:Other
Quarto. Consegue ver nos espaços ocupados, as ausências. No canto esquerdo, onde as paredes se encontram, a luz incide de forma diversa em cada uma delas, seu corpo é divido por uma sombra, a janela próxima, fuma um cigarro. Os olhos, lentos, e a noção do todo palpável.Bate o pé como se ouvisse música. Olha a fumaça saindo.
Abre a porta, sente o cheiro das suas coisas, está em casa. No sofá o corpo reclinado olha os próprios pés, cansaço, o mundo ainda corre por seus olhos, seu corpo ainda corre por seu corpo, mas está ali no canto do sofá. É preciso frear.
O corpo caído na faixa de pedestres. Atravessando com o acumulo de ausências e teorias de sobrevivência, com coragem, não se pensa, encerra-se. Acredita ainda, não sabe o porque. Esgueirar-se, teoria primeira. Uma borboleta pousa no canto do banco onde descansa, quanto tempo não via uma dessas. Correndo tenta pegar, pede ajuda, suas pernas dão curtos passos, seus braços esticados são metade. Asas fechadas. Era amarela, gosta do amarelo das borboletas, principalmente gosta de quando vê borboletas. Relógio, e ela já não estava mais ali.
Com as mãos na cabeça com medo de que ela caia, um fio de sangue entre os cabelos, e mareado abre a porta. Lento, o corpo se movia lento, sentado nas próprias pernas, a mão dançava pela cabeça procurando reconhece-la como um todo ainda. O sinal estava amarelo.Susto.A Luz incidiu forte e radioativa. O quarto era branco.

A autora (?) deste texto escreve no blog InCrise - http://incrise.blogspot.com/ .
Ótima! Já li quase todas as suas publicações e já está adicionada aos meus favoritos.

Minhas pequenas promiscuidades diárias II

Todo dia entro, dou uma olhada,  vejo como está o clima das discussões e saio a caçar assunto para contribuir com a roda do Gironda Jacobina. Cinco rapazes eu que, do útil ao fútil, mas nunca inútil, tentamos arduamente ser o mais politicamente incorretos possível. Ninguém escapa; nem nós mesmos. O de todo mundo vai pra reta, docemente para a reta. Mas entre os acontecimentos da semana, está a minha saída da autoria dos posts. Não sei ainda se é definitivo.

Bom, publico abaixo o texto de deserção. Estou um pouco cansada, por isso, apenas copy/colas em minhas últimas publicações. (Zzzzzzzzzzzzzzzz...)

Fica apenas a confissão de mais uma de minhas matanças da matança de tempo. A porosidade que me preenche as lacunas das idéias.

 

E era uma vez uma greve...

e todos os seus sentimentos [...]
E no meio de toda a confusão alguns rapazes que tirando sarro de tudo e de todos me ensinou muito das únicas coisas sérias que aprendi nestes últimos tempos. Como nunca fui dona de nada, resolvi com alguma ponta de coragem ingressar no mundo dos adultos e tomar posse do que me deveria possuir no latifúndio da malandragem. Mais corajoso quem me deu as chaves “sem olhar a quem” mesmo sendo o Visconde. E passei a ler Marx porque vergonha de ignorância deixa a gente vermelha pra sempre, mesmo quando o rosto ainda parece amarelo e de pau. E tinha de ler jornal, charge, literatura, blogs, pessoas e pragmatismos para dar conta dessa Odisséia. E haja cervejarias para tanta andança. Às vezes dava curto e a adolescência danava a querer tomar o palco e a querer destruir tudo. Mas ninguém deixava, Graças a Deus (hehehe)! Às vezes, nem dava tempo de trabalhar. As idéias não deixavam. E elas eram enfiadas por gente de carne e osso: Marquês de São Vicente, Viscond de la Sabugeouise, Luther Mainardi Jabor, Dom Enrico della Brogna (foragido), Tibiriçá e o falecido Manu Brau (que Deus o tenha!)...Ufa! Haja refreshs!
Mas sabe àquelas horas em que de puro ócio (?) a gente resolve mudar o rumo das coisas, mochilar pelo mundo para ver como as coisas são, cometer alguma burrada, de propósito? Pois é...eis o momento. A luz, o túnel, O TREM! Cri! Cri! Cri!
Depois de uma doze extra forte de café de escritório, Domna Amélia não agüentou e em decúbito dorsal veio a óbito, num bloguicídio sem fim, hermenêutico. Sem choro nem vela, não agüentou a curiosidade de morrer e morreu. Só para ver como é que é. Suas unhas do pé eram encravadas e os dedos tortos. O cabelo, confessou em carta de despedida, era alisado e preto. As roupas, emprestadas de uma companhia de teatro de atores famintos despedidos após a última filmagem da obra de Godá (escrevi certo?) e que agora tentavam a vida num circo circulado pelo círculo caucasiano de Bretch. Havia também a óbvia confissão sobre a compra de seu título de nobreza. Lógico! Mensalão já é de outras histórias...
A brincadeira tem de virar de meninos, pra ver se assim os carrinhos e os pontapés bem mal intencionados aparecem. A esteatopigia (escrevi certo?) não deixa algumas meninas jogar futebol.
Estará por aí! Em algum céu ou inferno como cocha de retalho humano, com os pedaços de cada uma das malandragens aprendidas, a rir enquanto come brioches e escreve algumas cartinhas de amor (muito bem intencionadas em suas más intenções)!
(Esperem eu dar o refresh para comemorar! Please! Merci)

 

Fonte: http://girondajacobina.blogspot.com 

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Modern Love

Rating:★★★★★
Category:Other
It is summer, and we are in a house
That is not ours, sitting at the table
Enjoying minutes of a rented silence,
The upstairs people gone. The pigeons lull
To sleep the under-tens and invalids,
The tree shakes out its shadows on the grass,
The roses rove through the wilds of my neglect.
Our lives flap, and we have no hope of better
Happiness than this, not much to show for love
But how we are, or how this evening is,
Unpeopled, silent, and where we are alive
In a domestic love, seemingly alone,
All other lives worn down to trees and sunlight,
Looking forward to a visit from the cat.

Douglas Dunn nasceu em 1942 em Inchinnan, Renfrewshire. Trabalhou como bibliotecário, estudou inglês na Universidade de Hull, e desde 1991 é professor do departamento de literatura escocesa na Universidade de St Andrews. Recebeu diversos prêmios literários. Contribui regularmente como ensaista em diversas revistas e jornais, tais como Glasgow Herald, the New Yorker e o the Times Literary Supplement. Além de poeta e prosador, tem editado várias antologias e estudos de crítica literária.

Fonte: Blog da Revista O Casulo - http://o-casulo.blogspot.com/

Vó...

mãe

Minha mãe entrou pela porta, apressada como desde que a conheci, contando detalhes de sua ida ao supermercado. Antes de entrar, sempre tocava a campainha repetidas vezes. Era inútil tentar abrir a porta. Quando procurávamos virar a chave, ela já havia achado a sua e, do lado oposto, bloqueava a fechadura. Ao primeiro passo na sala, já nos chamava, afobada, às vezes rindo, às vezes com ódio de alguma cotidiana desventura comercial. Aumentaram o preço do alho, uma velha malcriada roubou o último pedaço de filé que já estava em meu carrinho. Não importava de que tarefa nos ocupássemos, nós que ficamos. Sua entrada era um evento que exigia atenção e um eventual pedido de silêncio era tratado com total descaso. Que tudo parasse, pois ela tinha algo para contar, uma informação a partilhar e tudo podia ser agora. Sua pressa era indefinida pelo relógio. A correria do café da manhã. Depois do almoço. E do jantar. A hora de levar as crianças na escola. A hora de buscar.Era um contínuo de desventuras a que se devotou, pois tudo tinha para ela um pesar quase religioso.
Entrou e era uma entrada sonora. Com barulho de moedas, roçar de sacos plásticos, e um ou outro palavrão quando algo caía. Nesse caso, dependendo do humor, quem mais estivesse perto da porta seria o culpado por não tê-la ajudado. Na sala, tudo ia caindo ao chão, desenhando um rastro até a cozinha. De lá, resoluções ditas em voz alta para si e para os outros. O almoço precisava sair rápido, estava tudo atrasado.E isso se repetia. Todos os dias saía, voltava, mesma hora.
Cotidiano marcado. Sugestões de mudança eram afastadas com protestos. Como poderia se adiantar, se precisava esperar que acordássemos para nos dar o café? Ela estava de pé desde as sete e meia, desde as SETE E MEIA. Inútil explicar que podíamos tomar o café sozinhos, ou ajudar no almoço. Ela estava com pressa ela estava cansada ela estava sozinha. Reclamava enquanto mexia os ovos, fritava a cebola. Depois recontava o mesmo evento que já tinha contado. Ela desconhecia o silêncio ou não queria voltar a encontrá-lo.
Anos de repetição talvez tenham criado ecos. Minha mãe entrou na sala como sempre, ainda que estivesse longe daqui. Olhei para a porta fechada. É estranho não querer quem amamos.




Andréa Catrópa é mestre em Teoria Literária e uma das editoras do jornal de literatura contemporânea O Casulo. Integra a coletânea 8 femmes e seu primeiro livro de poemas Linha d’água está no prelo.

Fonte: Blog da Revista O Casulo 

 

Quem me conhece, sabe o porquê que esse texto está aqui e não na sessão de artigos!

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

A Arte enquanto construção de cadáveres: Boris Groys: uma introdução

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Reference
Author:Por Alcir Pécora
Não sei se concordo totalmente (na verdade, creio que não!), mas as questões propostas são excelentes!

Boris Groys: uma introdução

Boris Groys (1947) é um dos mais fecundos pensadores contemporâneos de arte, um dos menos afetados pelo ar do tempo, o qual, como um resfriado que se propaga inadvertidamente entre as pessoas, impregna de banalidade qualquer assunto. Não por acaso foi escolhido para contribuir com suas reflexões para o catálogo da exposição The Air is on Fire, composta de desenhos, fotografias, pinturas e animações de David Lynch, um dos artistas mais incomuns do presente, exibida na Fondation Cartier pour l'art contemporain, em Paris, de março a maio de 2007.

Na União Soviética, onde viveu boa parte de sua vida, Groys estudou filosofia e matemática na Universidade de Leningrado e deu aulas no Instituto de Lingüística Estrutural e Aplicada da Universidade Estadual de Moscou. Desde 1994, lecionou filosofia e teoria da mídia, na Academia de Design (Hochschule für Gestaltung), dirigida por Peter Sloterdijk, em Karlsruhe, na Alemanha.

De sua já volumosa bibliografia, destacaria Gesamtkunstwerk Stalin [Stálin, obra de arte total], Munique, 1988; Über das Neue. Versuch einer Kulturökonomie [Do novo - Ensaio de economia cultural], idem, 1992; Unter Verdacht. Eine Phänomenologie der Medien [Sob suspeita - Uma fenomenologia da mídia], idem, 2000; e, enfim, Politik der Unsterblichkeit [Política da imortalidade], idem, 2002 - livro que reúne quatro grandes entrevistas conduzidas pelo filósofo e editor Thomas Knöfel, a respeito do conjunto das idéias de Groys. Esta obra, que li na versão francesa da editora Maren Sell, de 2005, ajudou-me a compor o quadro resumido das matérias que passo a expor, traindo evidente gosto em reproduzi-las
com fidedignidade.

Na perspectiva desenvolvida pelos trabalhos de Boris Groys, arte e filosofia raramente têm tratamentos distintos. Uma e outra, para ele, tratam fundamentalmente de questões que não admitem solução e que, por isso mesmo, são imortais. De fato, em vez de solicitar resposta, como as questões das disciplinas científicas, que são efêmeras e cujas contribuições, passado o seu tempo de vigência, apenas permanecem como objeto de história das ciências, as questões artísticas e filosóficas existem sobretudo como delimitação fundacional de um espaço duradouro da linguagem onde vão se inscrevendo discursos individuais.

Com base em tal delineamento geral do campo das artes e da filosofia, um dos aspectos mais provocadores e bem-humorados da reflexão de Groys diz respeito à caracterização desse campo como uma espécie de competição radical. O primeiro ponto a considerar, nessa competição peculiar, é que não se pode obter na vida as vitórias que se deseja conquistar na arte. Ou seja, em contraste com os tantos nietzschianismos ou deleuzianismos vitalistas, que gostam de brandir a categoria desbundada da vida como justificativa para a arte, Groys pensa que a vida jamais se constitui como um atalho para a grandeza literária. É este atalho que julga ter tentado Joseph Goebbels ( quando ouço a palavra cultura, saco meu revólver) ou Adolf Hitler, entre tantos outros, inutilmente. Tornaram-se criminosos excepcionais, mas não artistas de nível.

Segundo Groys, portanto, simplesmente não se pode escapar da competição artística, literária ou filosófica travada no interior de seu próprio campo. As exigências da cultura não podem ser satisfeitas na vida, assim como não são refutáveis por ela. Ou, de outra forma ainda, não há como fazer economia das exigências culturais a partir desses desvios para a vida. Um traço comum às ideologias autoritárias seria justamente o de, partindo corretamente do princípio de que os problemas, atitudes e exigências têm sempre um vetor material, concluir equivocadamente que, se esse vetor for eliminado, os problemas também o seriam. O equívoco é tão primário quanto supor - o exemplo é de Groys - que, se alguém matasse todos os árbitros e suprimisse todas as regras do futebol, tornar-se-ia o melhor jogador de futebol de sua época.

Quer dizer, as exigências culturais são incontornáveis, e a mais fundamental delas é a de o artista adquirir forma própria, considerando-se o campo da herança cultural em que se inscreve. Este é o ponto chave: a cultura exige posicionamento individual - uma exigência que Groys considera especialmente escandalosa para a crítica sociológica, que a supõe própria de certas instituições, classes ou raças. Isso significa também que toda instância cultural se encontra submetida à exigência de se justificar do ponto de vista cultural: nada fora daí justifica a sua existência.

Groys admite que tal exigência escandalosa da cultura seja ficcional, imaginária, mas, para ele, justamente aí reside a sua força. Se não se tem interesse pessoal ou compromisso com esse tipo de ficção, não há nada a fazer: a exigência simplesmente perde sua força. Levar a exigência cultural a sério significa entrar pessoalmente na competição da cultura, ou, de outra maneira, como diz Groys, tomar a si próprio como vetor material de cultura.

Um fenômeno curioso observado por ele é que, quando o encontro de alguém com a arte e a cultura, ocorre mais tardiamente, por conta, por exemplo, de um meio familiar inculto, a tendência é confundir-se a exigência da cultura com uma força institucional real, isto é, como se tratasse de uma imposição produzida por uma classe, uma raça estrangeira, ou alguma forma de ditadura burocrática, que exige saberes para recusar postos. Essa experiência traumática de encontro com a cultura pode gerar atitudes tanto de veneração quanto de horror pela cultura, tanto uma subjugação extrema a ela quanto uma revolta violenta contra ela. Isso porque, nos dois casos, o encontro com a cultura não é percebido como um jogo com regras próprias, do qual ninguém está obrigado a participar.

A adesão ao jogo decorre, como ficou dito, de uma convicção ficcional apenas. É a perfeita compreensão dessa exigência apenas imaginária que faz com que, na outra ponta do exemplo, os filhos de meios cultivados sejam, por sua vez, menos produtivos culturalmente: eles sabem que podem se dispensar sem punição desse tipo de jogo.

As exigências culturais não apenas são fictícias, como especialmente dizem respeito a um jogo espectral. O objetivo dos artistas e pensadores é superar os melhores, já mortos, em seu campo; posicionar-se no campo da cultura tão bem quanto eles o souberam fazer, a ponto de se tornarem mortos imortais. Quer dizer, as exigências imaginárias dizem respeito a uma imortalidade artificial,
que é efeito de uma política consciente.

O que Groys propõe, portanto, é que o espaço simbólico da arte inclua necessariamente os mortos, representados por suas obras, imagens, teorias, atitudes, linguagens. Assim, a verdadeira pressão cultural não vem das instâncias de poder, mas dos mortos. São um caso muito mais sério que os vivos, pois continuam a perturbar o presente como criadores. É, pois, com os mortos que os artistas estão em competição; como eles, querem, por exemplo, chegar a ter edições integrais suas nas estantes das bibliotecas. Desse ponto de vista, também os verdadeiros leitores dos artistas realmente comprometidos com o campo da arte são os mortos, com os quais competem. O que lhes interessa é o que Dante, Camões ou Shakespeare pensam deles - dessa vez, os exemplos são meus - e em que medida os imortais podem ser atingidos ou deslocados pela sua própria corrida rumo ao pódio. Nesse ponto também reside uma dicotomia insuperável do artista: o desejo de matar os mortos ainda uma vez, vencendo-os na grandeza do nome, e o desejo de que esses mesmos mortos o reconheçam, sendo os seus primeiros leitores.

Na competição cultural, existe a obrigação incontornável de o artista ou pensador representar a si mesmo, o imperativo de inscrever seus signos, de criar uma imagem própria. No vocabulário final um pouco bizarro de Groys - que não deixa dúvida sobre as razões de seu interesse por Lynch - essa obrigação pode ser traduzida pela de desenhar a própria tumba, de fabricar o próprio cadáver.

Daí, para ele, a gritante insuficiência das teorias sociológicas que só argumentam em nome da sociedade dos vivos. Enquanto personagens da herança cultural, os mortos simplesmente não estão mortos. Para Groys, esse fenômeno é intuído até pela indústria cultural cujas únicas personagens sistematicamente cultivadas - observa agudamente - são os vampiros: os mortos que não estão mortos, e escravizam os vivos.

Ou seja, escrever livros, ao contrário do que se tem pensado, se é uma atividade irredutível à economia dos bens perecíveis, tampouco se inscreve numa economia do desejo, entendida habitualmente nos termos da sublimação erótica. Longe disso, trata-se, aqui, de construir um túmulo (mise au tombeau) para si mesmo. Dito de outra forma: do ponto de vista cultural, só se começa a ser realmente criativo quando se começa a fabricar uma imagem duradoura de si - o que, no vocabulário fúnebre ajustado ao caso, só se obtém quando o artista ou pensador começa a embalsamar a si próprio, a se transformar em múmia, a construir para si um perfil de cadáver, ou enfim, trata de representar o próprio enterro em seus livros, imagens etc.

Assim, quando Groys alerta que arte e filosofia não podem ser deduzidas da vida, ele pretende dizer que essa impossibilidade é completa: não pode ser extraída nem do que a vida de alguém tenha de excessiva, nem do que tenha de fracassada. Desgraçados de todo o mundo, portanto, desenganem-se: miséria e sofrimento não são condição relevante da arte. Isso também significa que arte ou filosofia não nascem - como também equivocadamente é costume pensar - de uma preocupação ditada pela vaidade. Nascem, sim, de uma preocupação com o cadáver, e não com o corpo vivo. E mais, o cadáver que interessa ao artista construir não se situa ao termo da vida, ou como fuga dela, mas em seu início. A mitologia vulgar sobre o artista sensível ou frágil diante da vida simplesmente não cabe aqui. O modo de vida artístico tem como condição primeira a adesão à corrida com os mortos. Ou, como diz Groys, à sua maneira: no princípio, era a múmia.

Isso posto, o conceito de uma política da imortalidade deve ser entendido como a maneira pela qual um artista ou pensador encontra de se tornar uma múmia indestrutível, um cadáver vivo. Ou, para dizê-lo de outro modo, como a maneira que o artista busca de transcender a sociedade efêmera dos seus contemporâneos por meio de uma metaposição, isto é, da construção de uma imagem de si que vai além do mundo dos que vivem e vão morrer. Isso implica, então, fundamentalmente, na construção de uma forma de se comunicar com os mortos célebres e adquirir a imortalidade que já é deles. Entretanto, é preciso ter bem claro que essa comunicação fúnebre, para Groys, é questão intrinsecamente política, prática, embora muito longe de ser matéria de teorias científicas, sociológicas ou midialógicas.

Adotar uma metaposição - ter uma visão de si mesmo no campo artístico - assemelha-se, pois, a entrar em contato com os mortos e esperar daí alguma espécie de imortalidade. Isso significa que o grande problema do artista é entrar na tradição, encontrar a porta de entrada para a sala da herança cultural, e não a de saída, como se costuma pensar, quando se fala de ruptura, inovação ou vanguarda. Os artistas que realmente importam tratam de, submetendo-se ao campo da herança cultural, buscar lá um bom enterro, ou, como diz belamente Groys, um lugar sob o céu do além.

Mas, atenção novamente aqui, pois busca de imortalidade, no conjunto das idéias do pensador russo-alemão, nada tem a ver com busca de entidades eternas, como Deus, o espírito, o inconsciente, ou qualquer outra maneira de fuga do mundo real. O artista busca imortalidade para obras de arte ou de pensamento. Quer dizer, artistas e pensadores não se preocupam com a sua alma, como os santos, mas apenas com seu cadáver: preocupam-se com que o legado de seu corpo artístico continue a viver depois da morte. Os livros, as obras são os verdadeiros túmulos do artista ou do filósofo, ou, ainda nesse campo semântico macabro, as suas múmias.

Esse tipo de preocupação, estranha aos ocidentais não artistas, era, entretanto, segundo Groys, bastante familiar aos egípcios. Para eles, a alma deve partir para que o corpo fique. Nessa mesma chave de leitura, Groys entende heterodoxamente que, quando Ludwig Wittgenstein diz que o filósofo é como a mosca que não consegue sair do vidro, é como se dissesse que a alma do pensador ou artista continua para sempre no corpo, prisioneira da linguagem. Essa, para o crítico russo-alemão, seria a melhor imagem da imortalidade no campo da cultura.

Alcir Pécora é professor livre-docente de teoria e crítica literária e diretor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp

Fonte: Revista Cult - http://revistacult.uol.com.br/website/news.asp?edtCode=8FE51465-5268-40F5-8990-0D4D00C2B0A4&nwsCode=774FD319-8B60-4D43-B3A7-40346B47CC56

Fragmentos de "Fragmentos de um discurso amoroso"

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Roland Barthes
Página 50

Que é que penso do amor? – Em suma, não penso nada. Bem que eu gostaria de saber o que é, mas estando do lado de dentro, eu vejo em existência, não em essência. O que quero conhecer (o amor) é exatamente a matéria que uso para falar (o discurso amoroso). A reflexão me é certamente permitida, mas como essa reflexão é logo incluída na sucessão das imagens, ela não se torna exteriores umas às outras), não posso pretender pensar bem. Do mesmo modo, mesmo que discorresse sobre o amor durante um ano, só poderia esperar pegar o conceito “pelo rabo”: por flashes, fórmulas, surpresas, de expressão, dispersos pelo grande escoamento do Imaginário; estou no mau lugar do amor, que é seu lugar iluminado: “O lugar mais sombrio, diz um provérbio chinês, é sempre embaixo da lâmpada.”

Página 57


Charles pega o queixo do narrador e deixa subir seus dedos magnetizados até as orelhas, “como os dedos de um cabeleireiro”.
Esse gesto insignificante, que começo, é continuado por uma outra parte de mim; sem que nada, fisicamente, o interrompa, ele bifurca, passa da simples função ao sentido resplandecente, aquele do pedido de amor. O sentido (o destino) eletriza minha mão; vou rasgar o corpo opaco do outro, obrigá-lo (quer ele responda, quer se retire ou deixe cair) a entrar no jogo do sentido: eu vou fazê-lo falar. No terreno amoroso não há acting-out: nenhuma pulsão, talvez mesmo nenhum prazer, nada a não ser signos, uma atividade tumultuada de fala: instalar, a cada ocasião furtiva, o sistema (o paradigma) da pergunta e da resposta.

Fonte da Imagem: http://www.visionsfineart.com/benfield/images/duo.jpg

Ontologia e política

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: History
Author:Vladimir Safatle
Alain Badiou é um nome que, aos poucos, firmou-se como referência importante nos debates sobre a renovação do pensamento de esquerda. Juntamente com Jacques Rancière e Etienne Balibar, Badiou representa atualmente o desdobramento intelectual mais visível das experiências de maio de 1968. Mas, no seu caso, tal desdobramento não levou à constituição das políticas multiculturais da diferença ou da crítica pós-moderna dos universais. Marcado profundamente por uma certa articulação entre psicanálise e marxismo, ou seja, por um certo althussero-lacanismo conjugado a partir de longa militância maoísta, Badiou foi capaz de conservar temáticas clássicas do pensamento de esquerda em um tempo que parecia negar-lhes o direito de cidadania. Afinal, quem hoje estaria disposto a insistir no papel dos universais, na relação intrincada e necessária entre violência e política, na crítica à democracia parlamentar, no formalismo da concepção liberal de liberdade, na política como campo de realização da verdade de uma situação, na função central da igualdade como ordenador das lutas políticas e na armadilha que consiste em suspender a política através da ética?

De fato, Badiou não teme em defender tais posições através de produção extensa que ultrapassa o quadro do que entendemos por filosofia política, já que se trata, no fundo, de reflexão sobre os impactos, no interior do campo do político, de uma ontologia renovada.

Desde o inicio dos anos 1970, Badiou tenta articular dois projetos. Por um lado, trata-se de recuperar a ontologia e, com isso, desenvolver uma teoria complexa capaz de dar atualidade a conceitos como acontecimento, ser, sujeito e verdade. Por outro, trata-se de impedir que a ação política perca seu solo de orientação e o fundamento de uma crítica radical da contemporaneidade. Livros como O ser e o evento (Jorge Zahar/UFRJ, 1996), Ética; um ensaio sobre a consciência do mal (Relume Dumará, 1995), Compêndio de metapolítica (Instituto Piaget, 1998), O século (Idéias e Letras, 2007) e os não traduzidos Saint Paul: la fondation de l'universalisme (PUF) e Logique des mondes (Seuil: 2006) devem ser lidos como momentos convergentes desse duplo projeto.

ONTOLOGIA E POLÍTICA
Grosso modo, podemos dizer que Badiou compreende muito bem que a política não pode ser guiada por exigência de realização de ideais normativos de justiça e consenso que já estariam presentes em alguma dimensão da vida social. Pois isso nos impede de desenvolver uma crítica mais profunda que nos permita questionar a gênese de nossos próprios ideais de justiça e consenso. Ou seja, a crítica não pode ser apenas a comparação entre situações concretas determinadas e normas socialmente partilhadas. Essa é, no fundo, uma crítica de juizado de pequenas causas que se contenta em comparar normas e caso. Antes, a verdade crítica tem a força de se voltar contra nossos próprios critérios de justiça e consenso democrático, já que ela se pergunta se nossa forma de vida não é mutilada a ponto de se orientar por valores resultantes de distorções patológicas.

Daí porque Badiou não teme sequer fazer a crítica da democracia parlamentar como forma mutilada de vida social que tenta esvaziar a possibilidade de todo acontecimento radical, assim como não teme fazer a crítica da colonização da política pela ética. Pois se trata de mostrar como a experiência contemporânea da ética é assombrada pela temática da finitude do indivíduo, desse indivíduo exposto ao sofrimento, à morte, às catástrofes históricas das múltiplas formas de campos de concentração. Em suma, indivíduo que deve ser primeiramente reconhecido na sua condição de vítima em potencial. Como se a "humanidade" do homem só aparecesse quando o interrogamos na sua condição de vítima.

Mas essa redução do sujeito à condição privilegiada de vítima é uma maneira astuta de reduzir o campo do político, pois se trata de levá-lo a transformar suas demandas políticas em exigências de reparação subjetiva, transformar expectativas de reconfiguração do campo social em demanda de cuidado e reconhecimento. Assim, Badiou pode lembrar que algo une refugiados vítimas do "mal radical", pacientes com depressão, vítimas de seus próprios corpos, neuróticos vítimas de constelações familiares, trabalhadores vítimas do desmantelamento do estado de proteção social (e que não procuram superá-lo de maneira revolucionária, mas simplesmente continuar protegidos). A lista é heteróclita e extensa. No entanto, ela demonstra como uma lógica convergente atua em campos autônomos da vida social. Trata-se de uma lógica que, ao mesmo tempo em que reconhece a correção das demandas sociais, desloca-as para um campo fora do político com sua dinâmica de modificações estruturais, ou seja, para um campo de demandas de reparação direcionadas a um poder que deve ser reconhecido como tal para poder satisfazer tais demandas.

Essa maneira de criticar a política é uma temática presente no pensamento francês dos últimos 30 anos vista, muitas vezes, como fruto de uma certa crítica totalizante que, ao se voltar contra a extensão dos nossos valores, acaba por perder o solo que poderia fundamentá-la. Pois em nome de qual valor criticamos os valores socialmente partilhados? Em nome do que estaríamos dispostos a colocar em risco nossas estruturas jurídico-institucionais? Por outro lado, essa crítica, ao se transformar em crítica da ética, parece ser animada por um certo anti-humanismo militante. E em nome de que podemos dizer que nossa "humanidade" é uma construção que visa a nos rebaixar à condição política de vítimas?

É nesse ponto que Badiou propõe uma operação filosófica de grande envergadura que consiste em fundamentar a crítica social em uma ontologia capaz de refletir sobre os modos de manifestação do ser e de constituição de sujeitos. Mas, com isso, parece que encontramos mais problemas que soluções. Pois uma forma de vida fundamentada em uma ontologia do ser não seria uma verdadeira porta aberta para um certo totalitarismo que procura medir nossas potencialidades a partir de um discurso que visa a falar em nome do próprio ser? E por que afinal a esquerda precisaria dessa "tentação ontológica" para fundamentar sua crítica social? Não bastaria simplesmente apelar à existência do sofrimento social resultante da opressão de classe, da pauperização persistente e das práticas disciplinares presente em múltiplas instituições sociais?

Não para Badiou. Pois como a crítica quer ser totalizante, como ela quer invalidar valores e não apenas casos, o sofrimento social não pode ser compreendido como advindo da impossibilidade de realizar expectativas de justiça devido à realidade da opressão e da miséria, expectativas de realização de si devido à realidade das práticas disciplinares. Esse sofrimento social deve ter uma raiz ontológica, pois está vinculado à impossibilidade de manifestação de algo de fundamental para a determinação dos sujeitos. Pois sujeitos não são apenas individualidades resultantes de processos de socialização e de formação do Eu que se desenrolam na família, nas instituições, nas comunidades, no Estado. Sujeitos são operações que colocam indivíduos para além do que família, instituições, comunidades, Estado podem produzir e legitimar. Sujeitos são operações que resultam em algum tipo de ancoragem em um ser que se manifesta como ruptura. O que o permite afirmar: "Como ele o é de uma verdade, um sujeito se substrai a toda comunidade e destrói toda individuação."

Podemos compreender o caráter radical dessa ontologia através de uma querela que procurou arrastar Badiou para a arena do anti-semitismo (ver artigo publicado na Folha de S. Paulo de 01/07/2007). Há alguns anos, o autor tem publicado pequenos livros de intervenção intitulados Circunstâncias. Guerra do Iraque, revolta nas periferias francesas, o problema da imigração: esses são alguns temas de tais intervenções. O último desses livros tem como título "Alcances da palavra 'judeu'". Nele, Badiou coloca em circulação uma idéia fundamental para a esquerda: não é aceitável estabelecer relações entre nação, Estado e povo. Nem a nação enquanto construção do imaginário, nem o Estado enquanto aparato jurídico-institucional podem estar relacionados ao povo como identidade. Pois isso significa colonizar a política com uma lógica que bloqueia o que há de determinação universal em todo e qualquer sujeito. Nação e Estado devem ser assim absolutamente indiferentes às diferenças, isso no sentido de aceitá-las todas e esvaziar a afirmação da diferença de qualquer conteúdo político. Pois o espaço do político não deve ser marcado pela afirmação da diferença, mas pela indiferença absoluta em relação a qualquer exigência identitária. No limite, isso nos leva a criticar a existência de uma nação e um Estado judeu, da mesma forma que devemos criticar a existência de uma nação e um Estado francês (com seu Ministério da imigração e da Identidade nacional), de uma nação e de um Estado brasileiro etc. Badiou aproveitava tal raciocínio para insistir na necessidade da criação de um Estado binacional entre Israel e Palestina (como já fizeram Edward Saïd e vários outros).

Essa sempre foi uma perspectiva defendida por uma esquerda marcada pelo internacionalismo e pelo universalismo. Que hoje em dia, tal perspectiva seja vista como crime (já que acusar alguém de antisemitismo é vê-lo como um criminoso racista da pior espécie), isso só demonstra como se tenta restringir a todo custo o espectro do debate político através da criminalização da esquerda. Mas há uma linha reta que vai da criminalização da esquerda ao mais desenfreado totalitarismo.

PAIXÃO PELO REAL
Se voltarmos à articulação entre ontologia e política em Badiou, devemos admitir que essa "tentação ontológica" corre o risco de ser uma mera construção peculiar de engenharia intelectual francesa se não fizer prova de alto potencial explicativo. É nesse ponto que vale a pena voltarmos os olhos para um pequeno livro no qual Badiou articula ontologia e uma versão muito própria de filosofia da história. Recém lançado no Brasil, O século se apresenta como uma reflexão filosófica sobre os sentidos das experiências históricas do século 20. Podemos dizer, seguindo Badiou, que o sentido do curto século 20 com suas rupturas, catástrofes e inventividade foi a realização de uma "paixão pelo real" e da procura pelo "homem novo".

O termo "paixão pelo real" é uma construção que visa a dar uma resposta determinada a questões como: qual é a origem do sofrimento social que sustentou, no século 20, a crítica às nossas formas de vida naquilo que elas têm de mais fundamentais? A resposta de Badiou é: nosso sofrimento vem de uma paixão, um afeto produzido pelas exigências de manifestação de um real "horrível e entusiasmante, mortífero e criador" que deve, no limite, livrar-nos de uma subjetividade esgotada a fim de instaurar um homem novo. Afeto que fornece a inteligibilidade do movimento do século em sua dinâmica fundamental.

Esse real do qual fala Badiou vem de Jacques Lacan. O psicanalista francês havia desenvolvido a teoria de que o comportamento humano era orientado a partir de três instâncias distintas: o Imaginário (dimensão de imagens ideais que guiam a conduta), o Simbólico (dimensão das estruturas sociais) e o Real. Aqui, o Real não deve ser entendido como um horizonte de experiências concretas acessíveis à consciência imediata. O Real não está ligado a um problema de descrição objetiva de estados de coisas. Ele diz respeito a um campo de experiências subjetivas que não podem ser adequadamente simbolizadas ou colonizadas por imagens. Isso nos explica porque o Real é sempre descrito de maneira negativa, como se fosse questão de mostrar que há experiências que só se oferecem ao sujeito sob a forma de processos disruptivos.

Nesse sentido, Lacan insiste que a lógica do comportamento humano não pode ser totalmente explicada a partir do cálculo utilitarista de maximização do prazer e de afastamento do desprazer. Há atos cuja inteligibilidade exige a introdução de um outro campo conceitual com sua lógica própria, um campo que desarticula distinções estritas entre prazer e desprazer por colocar o Eu sempre diante de uma certa dissolução de si que produz, ao mesmo tempo, satisfação pulsional e terror. Indistinção entre satisfação e terror que Lacan chama de "gozo".

A sagacidade de Badiou consistiu em mostrar como essa experiência disruptiva inscrita na essência da conduta do sujeito foi o motor da nossa história recente. História revolucionária na qual se imbricam violência, criação, destruição e procura. Recalcar essa história, como se fosse questão de uma sucessão de catástrofes (o comunismo, o nazismo, o horror, as ilusões do modernismo etc.), como se o tempo devesse ser avaliado a partir da contagem de mortos ou, para falar com Habermas, como se esse impulso não passasse de uma estetização da violência e do excesso com conseqüências políticas é, no fundo, uma maneira de pregar o evangelho de uma vida mutilada, que prefere se atrelar à finitude, à colonização pulsional, a assumir uma temporalidade que se manifesta como ruptura e negação. Ou seja, a filosofia da história que Badiou propõe não é cumulativa ou teleológica, mas ela visa a fornecer as condições nas quais uma verdade aparece como "interrupção", como "exceção radical". Ela visa a fornecer condições para pensar uma história, atrelada á exigências de reconhecimento do que se manifesta na estrutura pulsional dos sujeitos, na qual acontecimentos sejam possíveis.

É claro que há várias questões no interior da experiência intelectual de Alain Badiou que são passíveis de problematização. De qualquer forma, a importância de uma experiência intelectual nunca foi mensurada pelas respostas que ela é capaz de dar, mas pelos problemas que ela é capaz de produzir, condição para a impulsão do pensamento. E, nessa perspectiva, o pensamento de Badiou é de grande importância para a contemporaneidade.

Sobre algumas problematizações possíveis, fiquemos ao menos com uma. Badiou partilha com várias outras correntes de esquerda, a defesa de que "a decisão política não é constrangida pela economia". Maneira de defender o espaço do político contra a lógica administrativa que visa a impor modos de gestão da vida. Isso o leva a retomar esta frase famosa de Robespierre pronunciada por à ocasião da condenação de Lavoisier: "A república não necessita de cientistas." Badiou chega a afirmar que ela apresenta a essência do político na medida em que: "A república não tem necessidades", ou seja, "A política, quando existe, funda seu próprio princípio quanto ao real e não tem necessidade de nada a não ser dela própria."

No entanto, podemos dizer que afirmações dessa natureza só são possíveis porque a política é compreendida a partir de uma teoria do poder que visa a definir em que condições a política aparece como campo investido de um poder instaurador e instituinte. No entanto, ela deve ser também compreendida a partir de uma teoria do governo que visa a definir os modos de governar e de administrar o que foi instituído enquanto campo. Ter uma teoria do poder não nos fornece uma teoria do governo. Talvez um dos maiores problemas da esquerda esteja em não ter uma teoria das técnicas de governo. Pensar uma teoria do governo implica, por exemplo, em ter de submeter a decisão política a certos constrangimentos vindos da economia (o que implica resgatar a economia política) e das necessidades. Até porque, por mais crasso que isso possa parecer, o homem é este que, ao mesmo tempo, é sujeito de uma paixão pelo real e precisa de geladeiras. Anular as geladeiras, ou seja, instaurar a política no solo de uma cruzada contra o "serviço dos bens", dizer que a república não tem necessidades, só vai nos fazer perder as condições de realizar nossa paixão pelo real. Talvez esse seja o verdadeiro sentido de uma afirmação capital de Lênin: "Comunismo é o poder soviético mais a eletrificação de todo o país." Realizar as duas coisas ao mesmo tempo é o maior desafio. Um desafio que a experiência intelectual de Alain Badiou certamente nos ajuda a transpor.

Vladimir Safatle é professor do departamento de filosofia da Universidade de São Paulo
Fonte: Revista Cult - http://revistacult.uol.com.br/website/news.asp?edtCode=8FE51465-5268-40F5-8990-0D4D00C2B0A4&nwsCode=B51F5557-E77A-4CE4-A1F3-551B7E2FE2EC
Fonte da Imagem: http://um-buraco-na-sombra.netsigma.pt/fotos/31/espelho.jpg

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Poesia, Sexo e Amor, assim, bem juntinhos

Rating:★★★★★
Category:Other
Resolvi que quero finalmente falar de Amor; e de sua deliciosa relação com o Sexo. Digo finalmente porque, como creio ser absurdamente complexo falar sobre isso, demorei muitissímo para tomar coragem para essa "atitude". Mas devo desapontar meus leitores em um ponto: terão de ler sobre isso na voz de outros que não na minha. Paciência! A gente tem de começar de algum lugar. Pretendo com isso não começar de baixo, como poderia-se supor a uma iniciante; mas ao contrário, começar dos céus! E nunca chegar até em baixo; e nem ficar no meio. Que se estabeleça o paradoxo!
Acredito também que o "empacamento" para os primeiros passos dessa reflexão residiu em um desconfiar que carrego nessa minha cabeça caraminholante: Falar de uma relaçao entre Sexo e Amor é absolutamente Trangressor nos dias de hoje! É pecar para os conservadores, mas principalmente, é pecar para os auto-intitulados liberais que de tanto avesso do avesso do avesso, esqueceram o Amor pelas frestas de alguma destas distorções. Façamos sem Amor (e com afeto)!. Mas façamos com ele também! Pequemos pois! Com açucar, com afeto e com amor!

"Sejamos Pornograficos
(delicadamente pornográficos)"

Sex contains all, bodies, delicacies, results, promulgations,
Meanings, proofs, purities, the maternal mystery, the seminal milk,
All hopes, benefactions, bestowals, all the passions, loves, beauties, delights of the earth,

All the governments, judges, gods, follow´d persons of the earth,
These arecontain´d in sex as parts of itself and justifications of itself.

Walt Whitman, A Woman Waits For Me
---------------------------------------------------------------------------------------------------
Amor – pois que é palavra essencial comece
esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma a expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, Platão viu contemplado:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar esta gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais.
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor, morre de amor divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas.
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre

Carlos Drummond de Andrade
(do livro “Amor Natural”)

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Isto é um cachimbo

Rating:★★★★
Category:Books
Genre: Arts & Photography
Author:Manuel da Costa Pinto
O ensaísta João Alexandre Barbosa, que morreu em São Paulo no dia 3 de agosto, deixou uma obra em que se destacam estudos sobre José Veríssimo, João Cabral de Melo Neto e Paul Valéry. K publica um depoimento do autor de Entre livros e textos sobre sua atuação como crítico, presidente da Edusp e criador do conceito de leitura do intervalo.
MANUEL DA COSTA PINTO

"Antes de mais nada, preciso avisar ao leitor que este artigo (por razões que serão dadas no final) será um artigo comovido e, por isso mesmo, dele não se espere uma objetividade que, em outras circunstâncias, seria o que há de mais natural numa coluna que se pretende crítica." Com essas palavras, João Alexandre Barbosa iniciou o texto "Réquiem para Jorge Wanderley", em sua coluna na revista Cult de fevereiro de 2000, no qual homenageava o amigo de juventude, morto em dezembro do ano anterior.

Cito tal passagem porque tampouco aqui haverá objetividade crítica, mas um esboço de figura no qual se misturam o intelectual, o amigo e as lembranças de uma convivência de 15 anos, que começou quando me tornei seu editor-assistente na Edusp.

Isto posto, é preciso dizer que, ao contrário do que se poderia esperar da amizade entre um crítico literário e um jornalista da área de cultura, ela não nasceu nem em torno de Valéry e João Cabral (as obsessões de João Alexandre) nem de Pascal e Camus (as minhas) – mas de uma palavra de origem turca, latakia, que designa um tipo de tabaco que, combinado com outras famílias de folhas, dá origem à english mixture, um saborosíssimo blend para cachimbos.

Pois bem, para um fumante de cachimbo, o mundo não se divide entre nominalistas e realistas, capitalismo e comunismo, PC e Macintosh (as dicotomias mais amplas da história da humanidade), mas entre quem fuma latakia e quem fuma outros blends (sobretudo as odiosas misturas aromáticas, que mais parecem um panetone em combustão).

Foi como aluno de João Alexandre na USP, em 1991, que descobri que também ele era fumante das english mixtures. A partir daí, a literatura tornou-se assunto quase secundário em nossas conversas – e desconfio que ele me convidou para trabalhar na Edusp mais em função dessa identificação tabagística do que por outros predicados que eu pudesse ter.

Faço essa digressão porque havia curiosas analogias entre o fumante de cachimbo e o grande leitor que João Alexandre foi. Sua incrível coleção de cachimbos italianos, verdadeiras obras-primas do design, rivaliza com uma biblioteca na qual, a despeito da importância dos títulos e dos autores, ele sempre apontava preciosos detalhes de edição.

A relação tátil com seus objetos de eleição (o cachimbo e o livro) e a atenção para a perfeição das formas (em contraste com a disformidade do mundo à volta) eram um traço de temperamento que refletia, no convívio cotidiano, uma disposição intelectual presente em sua obra crítica e em sua intervenção pública mais importante – o trabalho na Edusp.

João Alexandre foi presidente da Edusp entre 1988 e 1993. Na prática, criou a editora, que antes dele apenas participava de projetos de empresas privadas (dando-lhes apoio financeiro), e a transformou em modelo para outras editoras universitárias. Mas o que importa notar é que, logo de saída, ele investiu na criação de uma identidade visual que se estendia por todo o catálogo da editora – revelando uma atenção para as analogias entre as palavras e seu suporte físico que não era estranho a sua atuação como professor e crítico literário.

A obsessão de João Alexandre por Paul Valéry e João Cabral se concentrava no caráter de constructo de suas obras, que funcionam como um espelho que disciplina as imagens refletidas. Em ambos, temos aquilo que, numa análise de Sevilha andando, de Cabral, ele descreveu como uma "aprendizagem com as formas" – cuja realização plena seriam os Cahiers que o escritor francês redigiu ao longo de 50 anos e nos quais João Alexandre gostava de celebrar uma "comédia intelectual", realizada na esteira da comédia cosmológica de Dante e da epopéia burguesa contida na Comédia humana de Balzac.

A atenção para os elementos compositivos e para o isomorfismo entre realidade e representação, presentes tanto em Valéry quanto em João Cabral, estão na raiz da empatia intelectual que fez de João Alexandre um interlocutor dos concretos – mas esse é um capítulo muito mais amplo da avaliação de seu legado crítico

Antes das formulações teóricas e das análises exaustivas, existe sempre aquela atração, irredutível a racionalizações, por certas maneiras de apreender as coisas. E, no caso de João Alexandre, o fascínio que deflagrava sua própria escrita eram as verdades parciais, as iluminações pontuais que ele enxergava no modo como o autor de Uma faca só lâmina dispunha os poemas num livro, ou no gesto com que Valéry criava pequenas ilhas de inteligibilidade nos Cahiers – que ele conhecia com uma erudição que assombrou Judith Robinson-Valéry (nora e responsável pela edição das obras do poeta francês).

No prefácio de Mistérios do dicionário, seu último livro publicado em vida, João Alexandre definiu seus textos como "escritos de um leitor que, cada vez mais, gosta menos das ‘grandes teorias’ e mais se compraz em exercer, com liberdade e alegria, o jogo de relações, as descobertas de pequenas e inesperadas relações que a literatura tem para oferecer". Na verdade, a propensão ao fragmentário e a aversão ao espírito de sistema sempre estiveram presentes em sua obra crítica. O ensaio era o seu elemento: um espaço limitado, preciso como um tabuleiro de xadrez, no qual podia exercer seu "jogo de relações" – relações rigorosas, porém sempre provisórias, anti-dogmáticas, sujeitas a revisões.

Seus estudos sobre José Veríssimo ensinaram a ler as contradições internas dos grandes projetos de historiografia literária; e, ao final de "A volúpia lasciva do nada" (ensaio de 1989 publicado em A biblioteca imaginária), lançou a idéia de que Memórias póstumas inauguravam uma "tradição de rigor" que ele pretendia analisar num livro de maior abrangência – mas que abandonou, talvez por esta mesma desconfiança em relação aos enredos totalizantes.

Convidado a entrar para a União Brasileira de Escritores (UBE), João Alexandre respondeu ironicamente que não se via como um escritor, e sim como leitor: seu ego scriptor se satisfazia em viver entre livros – e cachimbos.


--------------------------------------------------------------------------------
Manuel da Costa Pinto é jornalista, autor de Albert Camus – Um elogio do ensaio (Ateliê).

Fonte: Site Web Livros - http://www.weblivros.com.br/k-jornal-de-cr-tica/k-jornal-de-cr-tica-4-set-06-2.html