quarta-feira, 10 de outubro de 2007

A Arte enquanto construção de cadáveres: Boris Groys: uma introdução

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Reference
Author:Por Alcir Pécora
Não sei se concordo totalmente (na verdade, creio que não!), mas as questões propostas são excelentes!

Boris Groys: uma introdução

Boris Groys (1947) é um dos mais fecundos pensadores contemporâneos de arte, um dos menos afetados pelo ar do tempo, o qual, como um resfriado que se propaga inadvertidamente entre as pessoas, impregna de banalidade qualquer assunto. Não por acaso foi escolhido para contribuir com suas reflexões para o catálogo da exposição The Air is on Fire, composta de desenhos, fotografias, pinturas e animações de David Lynch, um dos artistas mais incomuns do presente, exibida na Fondation Cartier pour l'art contemporain, em Paris, de março a maio de 2007.

Na União Soviética, onde viveu boa parte de sua vida, Groys estudou filosofia e matemática na Universidade de Leningrado e deu aulas no Instituto de Lingüística Estrutural e Aplicada da Universidade Estadual de Moscou. Desde 1994, lecionou filosofia e teoria da mídia, na Academia de Design (Hochschule für Gestaltung), dirigida por Peter Sloterdijk, em Karlsruhe, na Alemanha.

De sua já volumosa bibliografia, destacaria Gesamtkunstwerk Stalin [Stálin, obra de arte total], Munique, 1988; Über das Neue. Versuch einer Kulturökonomie [Do novo - Ensaio de economia cultural], idem, 1992; Unter Verdacht. Eine Phänomenologie der Medien [Sob suspeita - Uma fenomenologia da mídia], idem, 2000; e, enfim, Politik der Unsterblichkeit [Política da imortalidade], idem, 2002 - livro que reúne quatro grandes entrevistas conduzidas pelo filósofo e editor Thomas Knöfel, a respeito do conjunto das idéias de Groys. Esta obra, que li na versão francesa da editora Maren Sell, de 2005, ajudou-me a compor o quadro resumido das matérias que passo a expor, traindo evidente gosto em reproduzi-las
com fidedignidade.

Na perspectiva desenvolvida pelos trabalhos de Boris Groys, arte e filosofia raramente têm tratamentos distintos. Uma e outra, para ele, tratam fundamentalmente de questões que não admitem solução e que, por isso mesmo, são imortais. De fato, em vez de solicitar resposta, como as questões das disciplinas científicas, que são efêmeras e cujas contribuições, passado o seu tempo de vigência, apenas permanecem como objeto de história das ciências, as questões artísticas e filosóficas existem sobretudo como delimitação fundacional de um espaço duradouro da linguagem onde vão se inscrevendo discursos individuais.

Com base em tal delineamento geral do campo das artes e da filosofia, um dos aspectos mais provocadores e bem-humorados da reflexão de Groys diz respeito à caracterização desse campo como uma espécie de competição radical. O primeiro ponto a considerar, nessa competição peculiar, é que não se pode obter na vida as vitórias que se deseja conquistar na arte. Ou seja, em contraste com os tantos nietzschianismos ou deleuzianismos vitalistas, que gostam de brandir a categoria desbundada da vida como justificativa para a arte, Groys pensa que a vida jamais se constitui como um atalho para a grandeza literária. É este atalho que julga ter tentado Joseph Goebbels ( quando ouço a palavra cultura, saco meu revólver) ou Adolf Hitler, entre tantos outros, inutilmente. Tornaram-se criminosos excepcionais, mas não artistas de nível.

Segundo Groys, portanto, simplesmente não se pode escapar da competição artística, literária ou filosófica travada no interior de seu próprio campo. As exigências da cultura não podem ser satisfeitas na vida, assim como não são refutáveis por ela. Ou, de outra forma ainda, não há como fazer economia das exigências culturais a partir desses desvios para a vida. Um traço comum às ideologias autoritárias seria justamente o de, partindo corretamente do princípio de que os problemas, atitudes e exigências têm sempre um vetor material, concluir equivocadamente que, se esse vetor for eliminado, os problemas também o seriam. O equívoco é tão primário quanto supor - o exemplo é de Groys - que, se alguém matasse todos os árbitros e suprimisse todas as regras do futebol, tornar-se-ia o melhor jogador de futebol de sua época.

Quer dizer, as exigências culturais são incontornáveis, e a mais fundamental delas é a de o artista adquirir forma própria, considerando-se o campo da herança cultural em que se inscreve. Este é o ponto chave: a cultura exige posicionamento individual - uma exigência que Groys considera especialmente escandalosa para a crítica sociológica, que a supõe própria de certas instituições, classes ou raças. Isso significa também que toda instância cultural se encontra submetida à exigência de se justificar do ponto de vista cultural: nada fora daí justifica a sua existência.

Groys admite que tal exigência escandalosa da cultura seja ficcional, imaginária, mas, para ele, justamente aí reside a sua força. Se não se tem interesse pessoal ou compromisso com esse tipo de ficção, não há nada a fazer: a exigência simplesmente perde sua força. Levar a exigência cultural a sério significa entrar pessoalmente na competição da cultura, ou, de outra maneira, como diz Groys, tomar a si próprio como vetor material de cultura.

Um fenômeno curioso observado por ele é que, quando o encontro de alguém com a arte e a cultura, ocorre mais tardiamente, por conta, por exemplo, de um meio familiar inculto, a tendência é confundir-se a exigência da cultura com uma força institucional real, isto é, como se tratasse de uma imposição produzida por uma classe, uma raça estrangeira, ou alguma forma de ditadura burocrática, que exige saberes para recusar postos. Essa experiência traumática de encontro com a cultura pode gerar atitudes tanto de veneração quanto de horror pela cultura, tanto uma subjugação extrema a ela quanto uma revolta violenta contra ela. Isso porque, nos dois casos, o encontro com a cultura não é percebido como um jogo com regras próprias, do qual ninguém está obrigado a participar.

A adesão ao jogo decorre, como ficou dito, de uma convicção ficcional apenas. É a perfeita compreensão dessa exigência apenas imaginária que faz com que, na outra ponta do exemplo, os filhos de meios cultivados sejam, por sua vez, menos produtivos culturalmente: eles sabem que podem se dispensar sem punição desse tipo de jogo.

As exigências culturais não apenas são fictícias, como especialmente dizem respeito a um jogo espectral. O objetivo dos artistas e pensadores é superar os melhores, já mortos, em seu campo; posicionar-se no campo da cultura tão bem quanto eles o souberam fazer, a ponto de se tornarem mortos imortais. Quer dizer, as exigências imaginárias dizem respeito a uma imortalidade artificial,
que é efeito de uma política consciente.

O que Groys propõe, portanto, é que o espaço simbólico da arte inclua necessariamente os mortos, representados por suas obras, imagens, teorias, atitudes, linguagens. Assim, a verdadeira pressão cultural não vem das instâncias de poder, mas dos mortos. São um caso muito mais sério que os vivos, pois continuam a perturbar o presente como criadores. É, pois, com os mortos que os artistas estão em competição; como eles, querem, por exemplo, chegar a ter edições integrais suas nas estantes das bibliotecas. Desse ponto de vista, também os verdadeiros leitores dos artistas realmente comprometidos com o campo da arte são os mortos, com os quais competem. O que lhes interessa é o que Dante, Camões ou Shakespeare pensam deles - dessa vez, os exemplos são meus - e em que medida os imortais podem ser atingidos ou deslocados pela sua própria corrida rumo ao pódio. Nesse ponto também reside uma dicotomia insuperável do artista: o desejo de matar os mortos ainda uma vez, vencendo-os na grandeza do nome, e o desejo de que esses mesmos mortos o reconheçam, sendo os seus primeiros leitores.

Na competição cultural, existe a obrigação incontornável de o artista ou pensador representar a si mesmo, o imperativo de inscrever seus signos, de criar uma imagem própria. No vocabulário final um pouco bizarro de Groys - que não deixa dúvida sobre as razões de seu interesse por Lynch - essa obrigação pode ser traduzida pela de desenhar a própria tumba, de fabricar o próprio cadáver.

Daí, para ele, a gritante insuficiência das teorias sociológicas que só argumentam em nome da sociedade dos vivos. Enquanto personagens da herança cultural, os mortos simplesmente não estão mortos. Para Groys, esse fenômeno é intuído até pela indústria cultural cujas únicas personagens sistematicamente cultivadas - observa agudamente - são os vampiros: os mortos que não estão mortos, e escravizam os vivos.

Ou seja, escrever livros, ao contrário do que se tem pensado, se é uma atividade irredutível à economia dos bens perecíveis, tampouco se inscreve numa economia do desejo, entendida habitualmente nos termos da sublimação erótica. Longe disso, trata-se, aqui, de construir um túmulo (mise au tombeau) para si mesmo. Dito de outra forma: do ponto de vista cultural, só se começa a ser realmente criativo quando se começa a fabricar uma imagem duradoura de si - o que, no vocabulário fúnebre ajustado ao caso, só se obtém quando o artista ou pensador começa a embalsamar a si próprio, a se transformar em múmia, a construir para si um perfil de cadáver, ou enfim, trata de representar o próprio enterro em seus livros, imagens etc.

Assim, quando Groys alerta que arte e filosofia não podem ser deduzidas da vida, ele pretende dizer que essa impossibilidade é completa: não pode ser extraída nem do que a vida de alguém tenha de excessiva, nem do que tenha de fracassada. Desgraçados de todo o mundo, portanto, desenganem-se: miséria e sofrimento não são condição relevante da arte. Isso também significa que arte ou filosofia não nascem - como também equivocadamente é costume pensar - de uma preocupação ditada pela vaidade. Nascem, sim, de uma preocupação com o cadáver, e não com o corpo vivo. E mais, o cadáver que interessa ao artista construir não se situa ao termo da vida, ou como fuga dela, mas em seu início. A mitologia vulgar sobre o artista sensível ou frágil diante da vida simplesmente não cabe aqui. O modo de vida artístico tem como condição primeira a adesão à corrida com os mortos. Ou, como diz Groys, à sua maneira: no princípio, era a múmia.

Isso posto, o conceito de uma política da imortalidade deve ser entendido como a maneira pela qual um artista ou pensador encontra de se tornar uma múmia indestrutível, um cadáver vivo. Ou, para dizê-lo de outro modo, como a maneira que o artista busca de transcender a sociedade efêmera dos seus contemporâneos por meio de uma metaposição, isto é, da construção de uma imagem de si que vai além do mundo dos que vivem e vão morrer. Isso implica, então, fundamentalmente, na construção de uma forma de se comunicar com os mortos célebres e adquirir a imortalidade que já é deles. Entretanto, é preciso ter bem claro que essa comunicação fúnebre, para Groys, é questão intrinsecamente política, prática, embora muito longe de ser matéria de teorias científicas, sociológicas ou midialógicas.

Adotar uma metaposição - ter uma visão de si mesmo no campo artístico - assemelha-se, pois, a entrar em contato com os mortos e esperar daí alguma espécie de imortalidade. Isso significa que o grande problema do artista é entrar na tradição, encontrar a porta de entrada para a sala da herança cultural, e não a de saída, como se costuma pensar, quando se fala de ruptura, inovação ou vanguarda. Os artistas que realmente importam tratam de, submetendo-se ao campo da herança cultural, buscar lá um bom enterro, ou, como diz belamente Groys, um lugar sob o céu do além.

Mas, atenção novamente aqui, pois busca de imortalidade, no conjunto das idéias do pensador russo-alemão, nada tem a ver com busca de entidades eternas, como Deus, o espírito, o inconsciente, ou qualquer outra maneira de fuga do mundo real. O artista busca imortalidade para obras de arte ou de pensamento. Quer dizer, artistas e pensadores não se preocupam com a sua alma, como os santos, mas apenas com seu cadáver: preocupam-se com que o legado de seu corpo artístico continue a viver depois da morte. Os livros, as obras são os verdadeiros túmulos do artista ou do filósofo, ou, ainda nesse campo semântico macabro, as suas múmias.

Esse tipo de preocupação, estranha aos ocidentais não artistas, era, entretanto, segundo Groys, bastante familiar aos egípcios. Para eles, a alma deve partir para que o corpo fique. Nessa mesma chave de leitura, Groys entende heterodoxamente que, quando Ludwig Wittgenstein diz que o filósofo é como a mosca que não consegue sair do vidro, é como se dissesse que a alma do pensador ou artista continua para sempre no corpo, prisioneira da linguagem. Essa, para o crítico russo-alemão, seria a melhor imagem da imortalidade no campo da cultura.

Alcir Pécora é professor livre-docente de teoria e crítica literária e diretor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp

Fonte: Revista Cult - http://revistacult.uol.com.br/website/news.asp?edtCode=8FE51465-5268-40F5-8990-0D4D00C2B0A4&nwsCode=774FD319-8B60-4D43-B3A7-40346B47CC56

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