quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Vó...

mãe

Minha mãe entrou pela porta, apressada como desde que a conheci, contando detalhes de sua ida ao supermercado. Antes de entrar, sempre tocava a campainha repetidas vezes. Era inútil tentar abrir a porta. Quando procurávamos virar a chave, ela já havia achado a sua e, do lado oposto, bloqueava a fechadura. Ao primeiro passo na sala, já nos chamava, afobada, às vezes rindo, às vezes com ódio de alguma cotidiana desventura comercial. Aumentaram o preço do alho, uma velha malcriada roubou o último pedaço de filé que já estava em meu carrinho. Não importava de que tarefa nos ocupássemos, nós que ficamos. Sua entrada era um evento que exigia atenção e um eventual pedido de silêncio era tratado com total descaso. Que tudo parasse, pois ela tinha algo para contar, uma informação a partilhar e tudo podia ser agora. Sua pressa era indefinida pelo relógio. A correria do café da manhã. Depois do almoço. E do jantar. A hora de levar as crianças na escola. A hora de buscar.Era um contínuo de desventuras a que se devotou, pois tudo tinha para ela um pesar quase religioso.
Entrou e era uma entrada sonora. Com barulho de moedas, roçar de sacos plásticos, e um ou outro palavrão quando algo caía. Nesse caso, dependendo do humor, quem mais estivesse perto da porta seria o culpado por não tê-la ajudado. Na sala, tudo ia caindo ao chão, desenhando um rastro até a cozinha. De lá, resoluções ditas em voz alta para si e para os outros. O almoço precisava sair rápido, estava tudo atrasado.E isso se repetia. Todos os dias saía, voltava, mesma hora.
Cotidiano marcado. Sugestões de mudança eram afastadas com protestos. Como poderia se adiantar, se precisava esperar que acordássemos para nos dar o café? Ela estava de pé desde as sete e meia, desde as SETE E MEIA. Inútil explicar que podíamos tomar o café sozinhos, ou ajudar no almoço. Ela estava com pressa ela estava cansada ela estava sozinha. Reclamava enquanto mexia os ovos, fritava a cebola. Depois recontava o mesmo evento que já tinha contado. Ela desconhecia o silêncio ou não queria voltar a encontrá-lo.
Anos de repetição talvez tenham criado ecos. Minha mãe entrou na sala como sempre, ainda que estivesse longe daqui. Olhei para a porta fechada. É estranho não querer quem amamos.




Andréa Catrópa é mestre em Teoria Literária e uma das editoras do jornal de literatura contemporânea O Casulo. Integra a coletânea 8 femmes e seu primeiro livro de poemas Linha d’água está no prelo.

Fonte: Blog da Revista O Casulo 

 

Quem me conhece, sabe o porquê que esse texto está aqui e não na sessão de artigos!

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