quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Mulher com deficiência

Eu sou
“aquela”
aquela
mulher com deficiência
em ser troféu
de igreja ou provedor
Eu sou
“aquela”
aquela
que “apesar de”
sorri
e chora
e goza
e também luta
útero prenhe
de luz
como qualquer outra
Aquela
que é
frágil
no que lhe destinaram heroína
e forte
no que lhe queriam
silêncio
e “mal resolvida”
Aquela
feita
de instante e fotossíntese
realizada
apesar de.
Flor
de pétalas
deformadas
e néctar de formato
perplexo
e orvalhado
das gotas que escorrem
por toda a sua pele
Aquela
que se serve
do próprio dito defeito:
Ter nascido
corpo-constrangimento
encarnação do "erro" de Deus
pecado meu
aos olhos dos homens
(como sempre!)
E mais pecadora ainda
em ter aprendido
por eu mesma
a ser perfeita
não por obra de um milagre
ou reza
perfeita
para todo aquele e aquela
que espera mais do que
o tédio
de um Deus
que só projeta beleza
na simetria do previsível
paraíso que só existe
na cura de um amanhã
Eu sou
“aquela”
“aquela”
filha do erro divino
em não seguir
a lógica dos homens
encarnação do pecado de Deus
em me fazer
"assim"
por puro capricho
Aquela
que não é sua imagem e semelhança
e está sempre e apenas sendo
ela
aquela
que pari e renasce
todo dia
do próprio útero
e com meus poucos dedos
de minhas próprias escrituras.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Encontro

 quanto mais as pessoas negam meu corpo
mais o procuro
é por meio dessa matéria - corpo - que eu sinto o mundo
e por meio desse sentir que construo o quê penso
alguém dizer para mim que eu venci meu corpo
e querer que eu transcenda meu corpo
é destruir minha inteireza
é me jogar numa busca ainda mais incessante desse corpo
dessa minha máquina de sentir e pensar
Esperar que eu supere meu corpo
que eu dê algo em troca da falta que transferem ao meu corpo
inventar poderes mágicos para ele
em volta de uma falta que não existe
só para disfarçar o incômodo com uma suposta falta
minha,
só me devassa mais
como todo mundo eu também quero saber
o que as pessoas acham que eu sou
e quem sou eu em meio a tantos espelhos
distorcidos
O quê posso querer ser...
Mas
eu não poderia ser mais bonita se
(não tivesse deficiência física)
eu não sou feia por causa da
(deficiência física)
eu não sou mais inteligente para compensar
(minha deficiência física)
nem mais psiquicamente forte
As fibras que compõem meu cérebro têm
igual ou maior limitação que boa parte das pessoas
e eu não estou me expondo mais
eu estou me impondo com mais ferocidade apenas
se eu não posso ser "normal"
então serei a minha detalhada invenção
de anormalidade
eu não estarei mais somente nas
descrições e fotos de livros médicos
nem somente na categoria de pornografia bizarra
Eu não serei a esposa de um homem
misericordioso e muito preocupado
E sim
A antipatologia de um corpo
A antipornografia de um tesão
A minha grafia ontológica
A minha detalhada invenção em naturalidade
eu existirei deliciosamente
para fora de mim
como uma invenção minha
pelo menos em alguma medida
e os livros médicos não serão a única referência possível
da existência de pessoas como eu
E
não sinta dó de mim
seu amor me assedia quando você vira as costas
e eu penso em ceder
mas lembro que
não preciso disso
que você não é mais feliz porque tem mais dedos
e nem eu lembro disso quando os boletos chegam
mas eu lembro bem que
as mulheres não são mais felizes porque têm um homem
e nem eu serei se tiver um
eu só ando querendo me ter
que foi a minha primeira subtração pelo mundo
então
eu invento
com muita naturalidade
não me incomodar com o quê inventam sobre mim
sobre meu corpo
Jogo fora alguns santinhos não requisitados
Assim que viram as costas
E escrevo um poema
com mais uma parte de meu retrato-falado e novas invenções


quinta-feira, 30 de maio de 2019

A carne do olho


Seria de pura carne nossa o quê fica dentro dos olhos? Ou os olhos são eles sim depósito da carne do outro? E eu li em algum lugar que é atrás dos olhos que mora o amor. Ao mesmo tempo, acredito, é por meio deles que tantas vezes o amor vem mesmo sim é a morrer.
Édipo cegou a si mesmo ao descobrir que por engano havia se deitado com a própria mãe. Dorian Gray só teria a juventude eterna garantida se jamais se olhasse em seu próprio retrato. Quando ficou diante de si, esfarinhou-se por seus próprios olhos.
Todos os dias, quem tem visão vê. Teoricamente, né? Porque nem sempre quem olha, enxerga. Já experimentou caçar um objeto que o tempo todo estava ali, na frente da sua cara, mas nada de achar? Pois é. Todos os dias eu era obrigada a usar os olhos de modo atento e proposital. Os olhos não traduzem o que capturam sozinhos, precisam do Outro como espelho. E o que eu sentia por essa janela de jaula chamada corpo nem sempre era o amor atrás dos olhos.
Eu sentia também muito sangue no olho. Raiva.
Será que os vidros das minhas janelas estariam embaçados?
No conto “O Espelho”, de Guimarães Rosa, o personagem um belo dia ao se olhar no espelho, não se reconhece. Logo em seguida, esse mesmo personagem se olha e sente repulsa. E a imagem ao espelho vai mudando ao longo do conto. O que para tantos era ficção, para mim era um fato cotidiano.
Explico. Um dia enquanto eu me olhava ao espelho, percebi algo diferente. As mãos, os cabelos, as pernas... Eu não conseguia ver nada disso no espelho. Essas partes do meu corpo apareciam somente de maneira embaçada. E não, não havia nenhum problema de visão. Então eu tenho esse silencio da visão, uma casa de janelas embaçadas.
Embaçada porque fechada, fechada porque nem todo outro é bom espelho. Esse semana mesmo. Estavam ali, janelas postas sobre janelas, ou seja, a alma nos olhos e as outras janelas, aquelas, somente semi-serradas atrás de vidros transparentes e anônimos. Pressa e confusão, estilhaço de pessoas no entra e sai do metrô. Almas de janelas abertas e grossas cortinas fechadas passando como cacos que se dispersam quando vidraças são quebradas.
Ali eu apenas uma moça de traços redesenhados pela maquiagem, batom vinho, reflexo do desejo de ser vista no que se recria. De repente, ao meu lado, sentou-se outra moça. Espontaneamente, como se tivesse muita intimidade comigo, puxou assunto. Queria dizer algo a qualquer custo e queria parecer amável. Talvez fazer um elogio. De modo direto e não requisitado me fez ouvir “você seria muito bonita, uma pena ter nascido desse jeito”.
Desse jeito...
Nenhuma resposta.
Apenas os olhos escancarados diante de uma janela fechada, diante uma alma encerrada em si.
Quando eu era criança, achava que as pessoas tinham dificuldade de desenhar bem porque tinham dedos demais e isso era um peso, um empecilho sob o papel. Até um tempo atrás, quando eu queria ser pirracenta com alguém inconveniente em relação à minha deficiência física, eu apenas me perguntava mentalmente de que adiantava tantos dedos se não sabiam nem se masturbarem direito. Hoje em dia não tenho mais idade para pirraças e nem para pensar a vida intima ou o excesso de dedos das pessoas.
Demorou um segundo para eu conseguir voltar a mim depois da afirmação daquela pessoa cheia de dedos. A palavra “seria” retumbava em minha cabeça e eu só conseguia pensar: pretérito imperfeito. Uma beleza em pretérito imperfeito. Interessante. Como é possível uma pessoa enxergar algo como belo, algo que não foi mas seria?
Desci na estação seguinte e, por alguns segundos, com curiosidade me observei enquanto o metrô mantinha suas janelas diante de mim. Minha alma ali misturada às pessoas. E então me vi. Por alguns segundos. Que erro daquela mulher! A maquiagem estava impecável.