sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O Amor não importa



O Amor, ai o Amor... O Amor, esse sorteado entre os sentimentos como o melhor de todos. O Amor cantando pelos poetas, romanceado mil vezes nas fábulas e nas trovas. O Amor que move montanhas, o amor rebelde, o amor das mães pelos filhos, o amor do homem pela sua amada, o amor do professor pelo saber. O amor, lado belo de todos nós. O amor no seio da família, o amor pela Pátria, por seu povo, o amor...
O AMOR NÃO IMPORTA.
O Amor é tudo o que não importa se queremos um mundo melhor. É isso mesmo.
O AMOR NÃO IMPORTA.
Não é por amor que mães cuidam de seus filhos. Nem que se estende a mão a quem cai de dores no meio da rua. Nem o que move um médico à zona de guerra para tratar feridos. Nem serão os poemas de amor a fazer com que maridos deixem de espancar suas esposas.
O AMOR NÃO IMPORTA.
Em nome do amor, mulheres ouviram caladas que deveriam ganhar menos, afinal, eram tão afetuosamente tratadas que nada teriam mais direito, pois o Amor cobriria o pagamento faltante...a ausência... O amor do letrado pela palavra “universal” que define o cânone a voz daqueles que falam pelo que não sentem. Em nome do amor à Patria se fazem as guerras. Enquanto mulheres e alguns outros homens cuidam pela sobrevivência dos feridos, o narrador, fala de amor à bandeira. Em nome do amor, os amantes feridos em seu nobre sentimento, torturam e matam suas amadas, traidoras da gratidão que nascem predestinadas aos eleitos na posse de seus corpos e destino. Em nome do amor à terra,  nasce a propriedade. Em nome do amor à si, mantém-se o consumo desenfreado e o egoísmo. E nome do amor à família, os clãs. Em nome do amor ao ídolo, ao herói,a o escolhido, ao que sempre está a bravamente atravessar mares e terras desconhecidas, sua esposa e amantes limpam bosta de criança – essa parte nunca aparece na história, é feio – cuidam da casa, da terra, dos feridos, com suas medíocres vidinhas, cuidam...
- Meus heróis não são mais os guerreiros e os reis, mas as coisas de paz, tão boas uma como as outras. As cebolas secando tão boas quan­to o tronco de árvore cruzando o pântano. Mas até hoje nin­guém conseguiu cantar uma epopéia de paz. O que acontece com a paz, que sua inspiração não dura e que quase não se deixa narrar (wenders, 1987).          

A paz não inspira ninguém por que mora nas pequenas e insignificantes coisas. Enquanto a Arte que todos consideram como a que inspira  fala sobre o Grande, de tudo o que é belo pela grandiosidade e sobre os grandes sentimentos, os que realmente construíam a Paz estavam fazendo o pequeno, o repetitivo, o anônimo, o repulsivo, o que não muda, o que não tem a ver com escolhas, o que não diferencia racional de irracional, o que descarta qualquer lógica cartesiana. Suas vozes, por vezes, aparecem coadjuvantes em alguma narrativa, enquanto massa amorfa ou em estatísticas. Ou na boca dos lideres revolucionários que nunca lavam as próprias cuecas. Na letra dos poetas que cantam o amor e leem grande Filosofia, mas rapidamente se entendiam em limpar catarro do nariz do pirralho. Eca!
Cuidar é subversivo. Amar não é subversivo porra nenhuma. O Amor, amar é só mais um sentimento e sua manifestação. Alguém tem afinidade por outra pessoa, passa o tempo, passam a se amar. Fim. Pode ter o mesmo grau de importância da raiva. Pode-se ser violento quanto ela, inclusive. Para se defender a condição humana de alguém, o que pode nos mover é a raiva e não o amor. O amor é uma construção de afeto que demanda tempo e convivência. Como amar a um estranho? Como defendê-lo sem amá-lo? Assim como é possível perfeitamente empenhar um discurso amoroso e ser profundamente desumano em seu uso. Eu posso falar em amor só para que não reajas à profunda violência que eu tento te impor, por exemplo. E pode ser que seja mais uma estratégia discursiva do que amorosa. Contudo, ao menos digo por mim e gosto de dizer as coisas por mim e em primeira pessoa, posso ser muito violenta usando um discurso aparentemente amoroso e a quem eu realmente amo. Isso por que o amor não tem nada a ver com o que realmente importa enquanto ética profundamente humana. O que realmente faz com que eu tenha cautela com a minha violência é o cuidado.  O cuidado em não usá-la em quem não tem como reagir a ela. Em quem essa violência não faz sentido. O que importa é o Cuidado.
O Cuidado é o que eu nomearia de Paz. O cuidado exige tempo e pessoas que estejam em relação de solidariedade, descanso, afeto, sinceridade e responsabilidade. Em ambientes que não falte comida, água, espaços adequados. Ou seja, o cuidado é anti-Capitalista. Em nome do cuidado, deveríamos não trabalhar todas as horas que o sistema exige. Nem manter os luxos que esse sistema impõe. Nem faria sentido nada fora do coletivo. Nem o cuidado dos dependentes, velhos e crianças, seria destinado a quem “tem menos valor social”, no caso, às mulheres, às negras, às pobres. O cuidado não exige amor, embora em um plano ideal o contrário seja verdadeiro. Quem ama, cuida e quem não ama tem o direito de deixa o outro à mingua?! Quem cuida pode ser que ame o que ocupa os seus cuidados. Mas não necessariamente precisaria haver amor para haver cuidado. Por que se queremos falar em solidariedade, devemos ignorar o Amor. E devemos começar a pensar no cuidador e nos que dele dependem. Pensar nos cuidadores que enlouquecem em cuidar sozinhos. Que reproduzem a violência que são expostos. Quem cuida em uma sociedade cuja falta de cuidado é o cerne da hierarquia social é o corpo que será mais subjugado, isolado, enjaulado, silenciado. E cuidado não exige amor, mas exige humanidade. Há a classe dos médicos, que fugiria um pouco a regra já que são razoavelmente bem pagos perto de uma babá, por exemplo. Os médicos cuidam, mas fragmentadamente, só o suficiente para manter os corpos vivos e não para mantê-los cuidados. Os professores, idem. Se quiserem realmente cuidar, no sentido extenso do termo, vão enlouquecer. Vão sofrer. Passar mal. Serem xingados. Ganhar mal... Por que cuidar é subversivo.
Cuidar exige relações sinceras. O não exercício de poder. O Cuidado em se responsabilizar inclusive pelos sentimentos nossos e alheios. Não há uma única fala nos fóruns de discussões acerca do Amor livre, amor e Feminismo, amor e poliamorismo, amor e gêneros cujas reclamações de gênero e classe social não gire em torno da falta de cuidado. Lindos discursos dos menininhos de esquerda que vestem saia e prometem mundos e fundos as suas parceiras e sem o menor CUIDADO as largam  no mais profundo desemparo, está lá, a ausência de cuidado. E quando alguém reclama, o revide está na ponta da língua: “possessiva!”. Não tão diferente das mulheres evangélicas cujos maridos ignoram o cansaço das esposas no cuidado dos filhos e da casa. A destruição emocional é a mesma.  
NÃO HÁ LIBERDADE SEM CUIDADO.
Por isso, a Paz não inspira...
E por isso também, quando falar comigo, eu aviso: não espere que eu lhe exija amor. Não espere de mim, amor. E nem mesmo ache que sempre serei amorosa cuidadora de ti, de meu filho ou de quem quer seja, por defender o cuidado. Eu estou tentando ser amorosa ao mesmo tempo que cuidadora. Nem sempre isso convergirá.  Quem lida com o que é realmente humano, sabe que ser integro é ser contraditório e lacunar e que cansaço é uma violência. Eu estou cuidando apesar de cansada. Com ou sem amor, eu tenho de cuidar. O discurso da racionalidade e da completude não cola comigo. Há anos que cuido quase sozinha de outro ser humano, de mim, e tento cuidar de meus amigos, ainda aguentando um sistema inteiro que me mói. Então, não venha tentar me convencer de que o amor é o que salvará. Ou que a Arte salvará. E que os heróis salvarão. Ou ainda, que aceitar certos discursos de amor ou opiniões desumanas só que ditas de maneira amorosa é um compromisso com a Paz. Eu serei profundamente e humanamente violenta em resposta a esse tipo de posição. Eu me gosto no que sou violenta tanto quanto no que sou amorosa. Só não me gosto no que sou desumana. Não prezo pelas pontes, mas pelas pessoas que as atravessam. Não faço ligação com discursos heroicos e parasitários. Acho mais importante cuidar de quem precisa do que lhes roubar a voz.                      

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Velha



Todas as vezes que vêm a mim sobre planos de futuro fora de meu tempo, respondo que é por que estou velha. E já me disseram que tenho uma aparência absolutamente jovial. O que as pessoas não entendem é que isso, a aparência, não é o que digo em minha resposta. A quem tem a aparência obtusa dos monstros ou dos vampiros, tanto faz. Falar sobre sua imagem é indiferente. A minha velhice está dentro de mim. E talvez consiga enxerga-la quem profundamente olhar-me nos olhos. Coisa que evito ao máximo. Não pela velhice, mas pelas memórias que neles boiam.  Eu tinha 14 anos quando envelheci pela primeira vez. No dia 16 de maio de 1998 eu não sabia, mas teria de envelhecer. Meu pai ia embora e o reflexo de seus olhos moraria nos meus. Quando o reflexo dos olhos de alguém vai morar em nós, o filtro das imagens muda. Daí, enxergamos de outra maneira. O tempo dá pequenas acelerações. Imperceptíveis em curto prazo.  Mas significativas em longo. A alguns, a secura é uma consequência e foi o meu caso. Os olhos ressequidos  envelheceram as imagens. E as fibras das horas romperam-se. Envelheci uns sete anos, pelos cálculos. Tipo de conta besta, já que esse tipo de intervalo de tempo é imensurável. Alguns anos mais tarde, novamente eu envelheceria. Aos 21 anos, o corpo que comportava a secura se vingaria em umidade. E o que parecia infértil seria o terreno de um novo reflexo. De novos olhos. Em sentido contrário, reflexo de olhos que iria morar fora de mim. E o que era seco fez-se molhado. Todavia, ainda sim envelheceria. Apesar de úmidas, as imagens daqui por diante para sempre seriam salgadas. Pois o mundo assim determinava: o salgar da vida a quem de reflexos é parida. Daí para frente, as imagens todas feridas de sal... Como no dia que em que um amor me disse que ter rebentos era chaga perdida. Ou dos tantos  doutores que me receitavam recolhimento ao carma que doía. Cansada de tanto sal, agora eu mesma abria o bucho do tempo, ainda que também de vez em quando salgando a vista. Hoje em dia, perdi as contas de meus anos. Talvez uns noventa e tantos anos... Ou seja, velha. E é por isso que afirmo minha velhice. Como se diz por aí, a essa altura do campeonato, não faz mais sentido mentir a idade.