segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Velha



Todas as vezes que vêm a mim sobre planos de futuro fora de meu tempo, respondo que é por que estou velha. E já me disseram que tenho uma aparência absolutamente jovial. O que as pessoas não entendem é que isso, a aparência, não é o que digo em minha resposta. A quem tem a aparência obtusa dos monstros ou dos vampiros, tanto faz. Falar sobre sua imagem é indiferente. A minha velhice está dentro de mim. E talvez consiga enxerga-la quem profundamente olhar-me nos olhos. Coisa que evito ao máximo. Não pela velhice, mas pelas memórias que neles boiam.  Eu tinha 14 anos quando envelheci pela primeira vez. No dia 16 de maio de 1998 eu não sabia, mas teria de envelhecer. Meu pai ia embora e o reflexo de seus olhos moraria nos meus. Quando o reflexo dos olhos de alguém vai morar em nós, o filtro das imagens muda. Daí, enxergamos de outra maneira. O tempo dá pequenas acelerações. Imperceptíveis em curto prazo.  Mas significativas em longo. A alguns, a secura é uma consequência e foi o meu caso. Os olhos ressequidos  envelheceram as imagens. E as fibras das horas romperam-se. Envelheci uns sete anos, pelos cálculos. Tipo de conta besta, já que esse tipo de intervalo de tempo é imensurável. Alguns anos mais tarde, novamente eu envelheceria. Aos 21 anos, o corpo que comportava a secura se vingaria em umidade. E o que parecia infértil seria o terreno de um novo reflexo. De novos olhos. Em sentido contrário, reflexo de olhos que iria morar fora de mim. E o que era seco fez-se molhado. Todavia, ainda sim envelheceria. Apesar de úmidas, as imagens daqui por diante para sempre seriam salgadas. Pois o mundo assim determinava: o salgar da vida a quem de reflexos é parida. Daí para frente, as imagens todas feridas de sal... Como no dia que em que um amor me disse que ter rebentos era chaga perdida. Ou dos tantos  doutores que me receitavam recolhimento ao carma que doía. Cansada de tanto sal, agora eu mesma abria o bucho do tempo, ainda que também de vez em quando salgando a vista. Hoje em dia, perdi as contas de meus anos. Talvez uns noventa e tantos anos... Ou seja, velha. E é por isso que afirmo minha velhice. Como se diz por aí, a essa altura do campeonato, não faz mais sentido mentir a idade.      

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