quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Discurso e sentido

“Eu gosto quando mentem! A mentira é o único privilégio humano perante todos os organismos. Nunca se chegou a nenhuma verdade sem antes haver mentido de antemão quatorze, e talvez até cento e quatorze vezes, e isso é uma espécie de honra; mas nós não somos capazes nem de mentir com inteligência! Mente para mim, mas mente a teu modo, e então eu te dou um beijo. Mentir a seu modo é quase melhor do que falar a verdade à moda alheia; no primeiro caso és um ser humano, no segundo, não passas de um pássaro!”
DOSTOIÉVSKI - Crime e Castigo
A cada dia que passa, convenço-me mais e mais de que apenas “papagueamos” boa parte dos discursos que pronunciamos. Não porque sejam discursos já ditos e repetidos, mas porque no fundo, não fazem sentido verdadeiramente para nós. E eu digo “nós”, pois enxergo isso o tempo todo ao meu redor. Explicarei o que entendo deste recorte de idéias e de onde o retirei.
Sentido englobaria os conceitos  e apreensões discursivas que inerentemente se ligariam à nossa vida e às nossas experiências, a capacidade em entender algo e/ou se colocar na  situação dita entendida, ou ainda, no papel – social - dito entendido. Estaria então no âmbito dos enunciados e da sua consequente (ou seria inerente?) classificação de mundo. Seria assim, o que vai além das relações sêmanticas e pragmáticas: contemplaria o ideológico, o sentido em sua condição de sentimento, a literalidade de sentirmos os discursos que nos tocam.
Em minhas aulas de Metodologia de Lingüística, o professor Valdir Barzotto nos colocou a reflexão sobre a tão discutida e batida questão das variantes linguísticas. O que ele nos apontou foi o fato de que os sociolinguístas em boa parte de seus textos empenham discursos de “abaixo ao preconceito língüístico” ,  promovem a idéia de que todas as variantes são importantes, mesmo as mais desvalorizadas socialmente. Contudo,  ao mesmo tempo em que “papagueiam” esses discursos, fazem-no na mais rebuscada e complexa NORMA CULTA DA LINGUA. Alguns diriam que o fazem assim em razão das regras sociais que infligem ao gênero científico a utilização da norma culta como pressuposto de legitimidade. Okay. Mas que outra maneira de legitimar uma norma línguística senão pelo uso? 
Sexta-feira passada, em minha aula de Didática, a professora nos trouxe o documentário “Heliopólis, bairro educador”, do diretor André Ferezini, sobre a EMEF Presidente Campos Salles, na favela de Heliopolis. Nele, é retratado como a própria comunidade  ajudou e participa ativamente no desenvolvimento e realização do projeto pedagógico da escola.  A iniciativa começou com a mudança de postura e visão pedagogica em relação à cultuta escolar tradicional, do diretor Braz (ver dados do documentário no link). Para obter o sucesso que hoje tem o projeto e que é que me importa aqui, foi a necessidade de deslocamento de pressuposto das pessoas daquela escola e, como pude constatar àquele momento, nunca havia feito SENTIDO para mim realmente: a voz e contribuição daquela comunidade como conteúdo de caráter valorativo. O diretor junto com as lideranças locais e os pais das crianças construiram um projeto pedagógico JUNTOS. A postura que realmente me chamou atenção foi a de que o objetivo do ensino àquelas crianças não é que saiam da favela para “algo melhor”: e sim, que lá fiquem e modifiquem o seu local de origem, politicamente. Um movimento exatamente contrário ao que eu fiz: assim que passei a fazer parte do ambiente social privilegiado financeiramente ao de minha origem, construi um projeto de vida de mudança e negação da cultura e mesmo do local de onde eu vim. Para tanto, desenvolvi e, não serei hipócrita, desenvolvo os mais diferentes argumentos. Mas ao assistir o documentário, não pude calar uma pergunta incômoda que ainda agora me gera certo mal-estar: qual é a  cultura do local de onde vim?
Alguns mais sarcásticos poderiam responder: a cultura do churrasco de final de semana e da adolescente com cabelo molhado pingando a creme de tratamento capilar e calça jeans de lycra apertada. Talvez. Mas por algum motivo, também não consigo engolir o discurso polido e envernizado do “pessoalzinho do Espaço Unibanco”. Não que eu não frequente o lugar. Mas realmente não é essa a cultura que me apetece. É como se eu fosse uma “aculturada”, desajustada pela cultura que acolhi artificialmente e pela que também nego tão simuladamente quanto a tento recuperar.
A partir daí, desde livre associação até a rememoração dos acontecimentos que ando a verificar no lugar onde vivo, a USP, não pude deixar de associar essa minha posição demagoga à toda demagogia que desde que entrei à Academia presencio, tanto no discurso dos alunos, quanto dos docentes, e, inclusive, de maneira grosseira, embora, não sejam as aparições grosseiras o que anda a me incomodar.
De alguma maneira, supeito que tal demagogia é sustentada pela modalidade “sarcasmo desnecessário”, ou ainda “sarcasmo em cima do muro” que coloca fogo em tudo e, deste modo, esconde o que realmente veicula. Creio que posturas duramente críticas em nível de sarcasmo sejam necessárias. Por outro lado, o exagero com que muitas vezes é utilizado incomoda-me muito. Uma acidez desnessária que, sagasmente tenta dissimular o quê traz consigo:  uma posição confortável e hipócrita de "sei o que acontece, mas não tenho nada a ver com isso". Como se sob este patamar, pudessem manter-se em amoralidade. Porém, nunca revelar o que se pensa não é, no fundo, de um moralismo medonho? Direi o porque desse mote, inspiração deste texto.
Freqüentemente ando pela Faculdade de História da USP e o que eu vejo não é bonito. Eu vejo fascismo, eu vejo posturas legalistas alienadas, eu vejo machismo, eu vejo moralismo sexual, eu vejo os mais diversos totalitarismos ideológicos. Eu ando pela Faculdade de Letras da USP e vejo preconceito lingüístco, eu vejo despotismo, eu vejo deslumbramento barato, eu vejo fetichismos demagogos. Eu convivo com gente da filosofia e as descrições feitas por eles são de um ambiente de irresponsabilidade pedogógica por parte dos docentes, narcisismo e elitísmo que não faz o menor sentido em um país de terceiro mundo - para não dizer ridículo. Aliás, elitismo, eis o que eu vejo em toda a USP, sob as mais variadas nuances. Conforme o contexto, um tipo de discurso. Se o ambiente é a aula, o discurso do politicamente correto (seja lá o que isso for). Se o ambiente é o bar, o individuo saca seu melhor sarcasmo, o do politicamente incorreto (que não há como errar). Já nas relações familiares, o  discurso utilizado é o do senso comum ou, simplesmente, o SILÊNCIO. Aliás, “sentido” , definido nos moldes como descrevi  na abertura deste texto, para os enunciadores do “sarcasmo em cima do muro”, realmente, mora em seu silêncio.  O silêncio dos formadores de opinião, da “nata intelectual da sociedade”.
O engraçado é que há qualidade de silêncios. O silêncio da classe média geralmente é classificado com o rótulo da tolerância.Muito diferente do silêncio dos alienados e alienadas do suburbio. Aqueles cuja cultura é fazer churrasco e andar de calça jeans de lycra dita vulgar . De onde virão os futuros professores de humanas (curso fácil de passar no vestibular, ou ainda o mais barato de pagar) ressentidos.  Os futuros classe média resignados. Ou, “como sempre”, os “futuros bandidos”, serventes de pedreiro, atendentes, prostitutas... Os futuros “sem futuro” do país.  Muito diverso do “silêncio puro” de simulação da tolerancia, da ideologia do amoralismo,  da rigidez do politicamente correto e do politicamente incorreto: a ideologia do acolhimento axiologico. 
Por estes dias, eu discutia com uma amiga sobre a questão das minorias. Ela argumentava que não concordava com linhas teóricas multiculturalistas em que se exalta o “poder” político de movimentos de resistencia de minorias sociais. O que ela colocou, resumidamente, é que esses movimentos estão dentro do sistema capitalista e como tais, servem apenas para “alivio de consciencia” do discurso capitalista, atenuantes com o único propósito de calar esses agentes. Diante dos argumentos, questionei o que essas “minorias” farão “enquanto Seu Lobo não vem”? Mas ao final da discussão tive de admitir que do que ela colocava, havia algo realmente em que não apenas tinha razão, mas também preocupava a mim: nós não vivemos em uma época de acolhimento axiologico, mas de conceção axiologica. Um exemplo disso foi o que minha professora de Análise do Discurso descreveu de sua participação em uma banca sobre uma dissertação que tratava dos discursos de mães de homossexuais. A dissertação defendia que os discursos dessas mães era de acolhimento axiologico ao que Norma rebateu que não. Nos relatos análisados pela dissertação, as mães dizem que amam o filho APESAR de ele ser homossexual e não que o ama PORQUE ele é homossexual. Foi a utilização continua de concessivos a que Norma se apagou para rebater o argumento de acolhimento defendido pela dissertação.  O que se via nos relatos dessas mães eram relatos de conceção axiologica, nunca de acolhimento. Em meu caso as pessoas me amam APESAR de ter deficiencia física e APESAR ser mãe solteira. Poucas são as que me amam sem despadaçar a minha vida em compartimentos.   Poucas são as pessoas que me amam enquanto sujeito de minha própria existencia e não como a frustração resignada de suas idealizações. Cada um deve passar por situações semelhantes em maior ou menor grau, então, atualizem a questão suas vidas como quiserem. O resumo da ópera é um “papagueamento” de tolerância, de cultura, de senso crítico...
Não é de hoje que as questões “o que é sentido?” e “porque pessoas com tantas e tão boas leituras seriam tão demagogas? ” parecem estar intimamente ligadas. E nas últimas semanas para minha tranquilidade, vi que essa é uma discussão que já vem de muito nas discussões teóricas e é uma das principais pautas das discussões dos pedagogos e sociólogos que lidam com Educação. No texto de Adorno, Educação e Emancipação, texto pós-nazismo, a preocupação com uma educação essencialmente entrelaçada a um sentido, em caráter subjetivo é a direção central da reflexão.  Deleuze em o Anti-Édipo, também sob a sombra dos acontecimentos que ocorreram durante o nazismo,  ressalta a importância em estudármos os mecanismos e discursos que levaram um povo de cultura tida como predominante letrada e de apreciação da reflexão filosófica, como era a Alemã, a concepção de uma ideologia que desencadeou as práticas realizadas durante o Nazismo.  Bernard Charlot, filosofo da área de Educação, tem sua pesquisa exatamente sob a reflexão que iniciei aqui: a relação com o saber. O que ele coloca em sua pesquisa é a necessidade em se interpretar o saber como a manifestação, como modus operanti, de um sujeito desejante e não o objeto do desejo desse sujeito. Antonio Candido ao discutir o que seria “Compreensão” sob o ponto de vista da teoria hermenêutica nos traz que compreender algo é entender o que o discurso diz e ligar tal conhecimento à sua experiência de vida.  Nesta perspectiva, a abertura deste texto poderia ser apenas uma repetição vazia de algo já colocado por Antonio Candido. Mas a minha posição caminha ainda para o radicalismo da relação compreensão/história de vida do enunciatário. Com relação a Charlot, conheci o seu trabalho por força do destino quando já havia escrito mais da metade deste texto.Um outro autor o qual impregna as idéias desta minha materialização de “minhocações”  é Backtin, com as leituras que fiz de Marxismo e Filosofia da Linguagem, e, Dialogismo e Polifonia. Neles o autor me trouxe que temos como caráter inerente da linguagem as relações dialogicas que estabelece com outros textos e a ideologia como condição sine que non do signo lingüístico enquanto conceito que se refere ao que é constituído de SENTIDO.  Com base no que Backhtin e Antonio Candido dizem é que olho esses “ruidos de linguagem” e me convenço de que talvez,  sentido e senso crítico, como almejamos através da erudição de nossas leituras e aulas, estariam em relação de indissociação e o último só teria razão de ser enquanto apreensão profunda, completa, enquanto o que a hermeneutica classifica como “compreensão”,   e não apenas como prática técnica de reprodução do arquétipo discurso acadêmico.  Claudemir Belintane (2005), linguísta e professor da Faculdade de Educação,  tratou em seu texto, Matrizes e matizes do oral, na Revista Doxa, rapidamente em um dos trechos de seu artigo sobre o que de alguma forma eu tento apalpar nesta minha especulação:
Falar é falar-se, como diz Kristeva (1988 p.19) mas “falar-se” não apenas por que se domina um código e uma interlocução objetiva, da qual se pode deduzir um suposto conteúdo habitual e ali entrever um sujeito lógico especularizado. O “fala-se” que faz diferença suficiente é o que se enlaça às ambiguidades de uma herança primaria, desejante, que demanda do outro amor e sentidos – sentidos para além da compreensão objetiva, que ultrapassam a dimensão consensual da correlação significado/ significante. (BELINTANE, 2005)
O processo inverso do fetiche cientificista que passamos na Acadêmia.
E não é preciso ir longe para falar sobre fetiche cientificista. O  departamento de Linguística, por exemplo, se tornou o departamento de Gerativa. O que está fora disso é inclusive ironizado como “não-linguística”. “Análise do Discurso não é Linguística!” é o que sempre ouço  entre risos dos colegas da Gerativa. E isso porque não é considerado “cientifico”. Estamos no alge do tecnicismo. O que fugir a ideologia da argumentação dita lógica, cartesiana, legalista não terá legitimidade ou adquirirá qualidades pejorativas.
Dentro desse quadro, como falar em sentido como uma atualização dos discursos que temos contato, “do outro que nos atravessa” pela atualização subjetiva por deslocamentos e pulverizações de nossos arquedestinadores e arquedestinatários (imagens sociais de nós e de nossos interlocutores e que moram dentro de nós)? E se a história só fizesse sentido se for atualizada em nossa vida e,  para o resto, fossemos apenas uma espécie complexa de analfabetos funcionais?