sábado, 3 de dezembro de 2016

Semente vermelha

O horário
O salário
O atraso
O filho
O cansaço
A esposa
As regras
O cigarro
A nicotina
A secura
do peito
O rio retesado
Um pouco acima do pulmão

O prédio não era tão alto
O salto
A rigidez que encenava
em vermelho desfeita
escrita em silêncio
no chão

Era água
80% água
Água e sal
As regras lhe proibiam o que era doce
A cidade tão grande
A São Paulo tão grande
Tanta água…
para o Nordeste não
Parecia tão seco
Parecia o patrão do filho
Eu nem ia muito com a cara dele
Quantos de nós
Encobrimos as rachaduras
Da represa que contemos
Sedentos
Por fora secos
Quanto erro!

E o que era seco?
Parecia seco
Agora água e vermelho
Tantas regras
Homem duro
Agora água
Voo do prédio
O nado
para fora da secura
Homem duro?
água ao chão
(não era com a terra o seu encontro
a queda da semente
agora água o rosto finalmente
e molha
o concreto
quase impermeável
da cidade)

sábado, 23 de abril de 2016

“você não está só”

Escrever como quem 
compartilha um segredo

E até
pode parecer que escrevo como quem 
pede socorro
que escrevo como quem 
se entrega
que escrevo  
para me vitimizar

mas escrever 
“você não está só”
e colocar em uma garrafa e jogá-la ao mar
à espera de que chegue
não a um salvador
não a àquele bom homem que olha o mar e talvez se sinta só
não a um grande amor 
não a um filho
não a um grande chefe de Estado
e nem a um antigo chefe de trabalho
não a uma heroína ou a um herói
e nem ao Nobel da Paz de algum momento da história
não a um poeta ou poetiza
e nem às musas e  deuses de suas inspirações

mas
àquele ou àquela 
que também 
naufraga
que como eu não sabe o que esperar
mas se importaria muito em saber
que ainda não enlouqueceu

nesta solidão.  

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Sobre divisões e saber ouvir


O texto abaixo, que era pra só um pequeno relato de uma situação e virou um textão é uma primeira tentativa de falar sobre o que não gosto.... Tem erro de escrita, tem sono, tem comparações absurdas, mas tem diálogo.
Hoje, na saída da Prainha Branca, de volta à São Paulo, um dos hospedes do local chegou às minhas amigas e disse: “ah, eu sou fisioterapeuta, seria muito bom ela fazer uns exercícios para fortalecer os braços…”. Ao que uma delas disse: “pode falar diretamente com ela. Ela inclusive fala muito, fala pra caralho” (risos). Então eu me liguei na conversa e respondi: “sim, eu comecei a fazer pilates há uns três anos, estou fazendo capoeira e///////
CORTE
O senhor continuou conversando com as minhas amigas como se eu não tivesse ali.
A intenção dele com certeza era boa. Mas/
CORTE
(novamente)
Esse peculiaridade de não ser ouvida não é “privilégio” só meu.
Muitas pessoas, ao lidar com mulheres, negras e negros, lésbicas, sem teto, indígenas, etc, na melhor das intenções em salvar-los, melhorá-los, apontar como poderíam ser melhores - como fez o tal do fisioterapeuta - reproduzem o mesmo comportamento dele: silencia quem deveria “ajudar”. Orgulhosos de nos “salvar” de nossa condição, de mostrar inclusive nossas contradições (“mas mulher também é machista!”), acabam simplesmente não nos ouvindo.
As divisões sociais - capitalismo, patriarcado: racismo, machismo, elitismo, capacitismo, adultismo - existem a muito tempo e desde muito antes de os que me leem aqui nascerem. O que eu quero dizer com isso? Que fomos socializados a reproduzir essas divisões e não a enxergá-las. É tão natural ser tratado com humanidade que não enxergamos quando o outro está sendo desumanizado.
E não só. Além de não enxergar, somos socializados a encobrir.
Como pessoa com deficiência física, por exemplo. eu passei e passo a maior parte da minha vida tentando justificar as situações de desumanização que acontecem comigo:
“- Ah, mas o tipo de deficiência que eu tenho…. há casos em que o cognitivo é afetado”
“- ah, ele ficou com tanta vergonha que não conseguiu continuar a conversa com a interlocutora correta.”
“Ah, mas…”
Não basta a gente, como minoria, sofrer a desumanização. O que já é em sim bem pesado. Tem que ser cordial também. Mas a gente não quer lembrar 24 horas por dia que é um corpo fora de lugar.
***
Sim, por que eu estava fora de lugar ali, num camping que só se chega por trilha, com todos aqueles jovens-corpos-padrão. Nada ali era adaptado a receber pessoas como eu. No caminho mesmo, eu já senti que quando pessoas com deficiência saem do circulo paulista, a situação muda totalmente. Esqueça a pessoa com deficiência física bem vestida da Berrine, com empregos em grandes empresas, pois são as únicas obrigadas a ter cotas. Apaga isso, já! No ônibus, ao subir, havia catraca antes dos bancos e que atrapalhava a minha locomoção. Mesmo a entrada de traz sendo adaptada, o motorista deixou eu me virar pela frente. O ônibus começou a andar e eu sem ter muito onde me segurar, falei alto, para que todos me ouvissem: “alguém poderia ceder lugar a uma pessoa com deficiência?” Um rapaz, lá no fundo do ônibus cedeu. Eu não conseguia chegar, o ônibus havia começado a andar. Pedi a ajuda a ele mesmo para conseguir.
Todos ali me olharam como se eu fosse um ET. Ninguém se moveu. Ao mesmo tempo, era como seu eu me comportasse de maneira inabitual. Ter deficiência e viajar sozinha, ter deficiência e saber pedir os meus direitos de maneira segura. Eu não ocupava o papel de coitadinha. E ainda falava de maneira segura? Com certeza todos ali entenderam como rude.
***
Uma boa parte da minha vida, eu consigo levar sem lembrar que sou um corpo. O que eu quero dizer? A gente só lembra de uma parte de nosso corpo quando machucamos aquela parte. E ninguém quer esse tipo de lembrança.
Quando nós, que fazemos parte de alguma minoria relatamos nosso sofrimento, as peculiaridades desse sofrimento, o que estamos fazendo é abrir diálogo. Parece o contrário? Sabe por que parece o contrário? Por que, para algumas pessoas, apontar divisões é muito parecido com fazer divisões. Logo, com ataque pessoal. Estrutura social e ataque pessoal tem uma diferença gritante.
Se o fisioterapeuta que eu relatei fosse meu amigo de facebook, com certeza ele iria se sentir ofendido. Ainda mais por que eu trouxe a situação a publico. Por não tê-lo “repreendido” em privado. Mas toda vez que acontece algum tipo de situação assim, eu tenho que jogar a situação para o público. E politizar. Para retira-la da exceção, do privado, da idiossincrasia. E faço isso exatamente para ABRIR DIALOGO.
ABRIR DIÁLOGO
Como minoria, abertura de diálogo não pode ser passar por cima de nossos próprios sentimentos. Não é errado eu me sentir mal com a situação descrita acima. Não podemos achar que devemos entender o outro antes mesmo de nos sentirmos humanos. Para eu me sentir humana, eu tenho que achar que é normal eu me sentir mal em não ser ouvida. Que a situação não é normal. Não foi a primeira vez que aconteceu uma situação assim. É recorrente. No almoço da empresa em que trabalhei, o garçom perguntou ao meu chefe o que eu ia beber. Ele só respondeu sem entender: “pergunta para ela, ué?”. E o garçom perguntou para mim, mas sem NENHUM constrangimento. Quando eu preciso pedir ajuda para subir em ônibus - quando são muito altos - já aconteceu da pessoa me machucar. Eu pedi para a pessoa me dar uma mão e o “grande herói” foi me pegar no colo.
Além de passar pela situação em si, as pessoas esperam das minorias que elas sejam MELHORES. Que passemos por cima de nossos sentimentos. Que não sejamos humanos…ops!
SETIMEN
/CORTE/
T
/CORTE/ CORTE/CORTE
Que acordemos todos os dias felizes e dispostos a dar nossa aulinha grátis sobre nossas diferenças, mas só com situações fáceis de degustar e propiciar a maravilhosa sensação de
sou uma pessoa misericiordiosa-com-essa-alejada-mas-ia-ser-tão-bonitinha-com-essa-carinha- tadinha?
Ou então
tá mal humorada por que é mal resolvida?
Pessoas com deficiência física e mulher têm de ser fortes, inteligentes, arrumadas, tudo o quê conseguirmos ser para REPOR
REPOR
REPOR
REPOR
nossa FALTA
E em qual linguagem nós minorias fomos educadas? Em qual espaço dessa linguagem poderíamos nomear quem somos se tudo o que somos não está nomeado?
Se nomeamos, ofendemos, se não nomeamos, não é possível dialogar!
Diálogo não é ausência de conflito. E quem está machucado, com certeza está mais arredio. Com toda a razão. RAZÃO, não DESCONTROLE. Razão em de alguma forma retirar do silêncio o que lhe dói. Dói mais por que é SOCIAL. Não é PESSOAL. Jogar para o pessoal é só mais uma forma de afirmar que a situação é uma exceção, um exagero, NÃO EXISTE. Além de pedir para ignorar os próprios sentimentos, isso cria em quem sofre situações de opressão a ideia de que os seus sentimentos são LOUCURA. Gaslighting.
As perguntas que poderiam e vir depois da negação de situação de opressão por parte de quem sofre, de quem vê e de quem faz é:
“Não seria exagero se sentir mal com isso?” - diminuição da importância dos sentimentos de quem sofre a situação.
“Você não é alto confiante o suficiente para lidar com isso” - pressuposição de que todo dia uma pessoa que passa por situações difíceis deva acordar bem e achar normal ser tratada como um vaso de plantas.
“Pra que expor isso?”- retirar a situação da esfera política e jogar para o âmbito da exceção, ignorando toda a conjuntura social que leva as pessoas a agirem como agem.
Ao escrever e falar sobre capacitismo, machismo, racismo, heteronormatividade, quem está na situação que envolve a opressão está apontando são as divisões sociais já existentes. É exatamente a tentativa de que deixem de existir. É ABERTURA DE DIÁLOGO.
- Olha, quando você tenta me ajudar subestimando minha capacidade - intelectual e física - eu me sinto mal, pois sempre vi pessoas em situações como eu com alguém falando por elas ou em espaços relacionados a hospitais e comportamentos repulsivos em relação ao corpo delas. Eu posso e vou falar/escrever e quero ter a liberdade tanto de que os espaços sejam adaptados a pessoas como eu, como que eu possa testar estar nos espaços fora da sua concepção de mobilidade.
Seria simples, não? Mas não é.
Aliás, formular um possível dialogo ai em cima já em si algo bem difícil de fazer. Eu raramente consigo, sendo sincera.
Para não magoar a pessoa, para não constranger, por a pessoa não vai entender… Enfim, silêncio.
As pessoas estão tão acostumadas a não ver mulheres, periféricas, negras, indigenas, pessoas com deficiência, trans, mães, lésbicas, se posicionando, que transformam esse estranhamento, esse MEDO DO OUTRO, em defesa. Esquecem talvez que o nosso mundo não gira em torno de suas histórias, mas, de vez em quando em torno de nossas histórias: por isso é um debate político e não pessoal Também perdem a oportunidade de saber quem são elas mesmas nesse diálogo.
Quando eu me volto a pensar na minha situação, tenho a oportunidade de olhar esse outro, pessoa sem deficiência, como o meu espelho invertido. E não meu opressor.
As pessoas, na melhor das intenções, falaram tanto sobre o que deveria ser para repor o que sou, que o que sou nunca foi olhado como algo inovador. Eu sempre me colei a imagem de alguém que tem de superar algo - aflição, aflição, aflição! -, assexuada, mente maravilhosa, corpo joga fora.
Eu não tenho como fugir do meu corpo.
E eu não deveria sentir desejo de fugir dele.
Fui recentemente assistir um espetáculo de dança, Proibido Elefantes, com a maior parte dos dançarinos pessoas com deficiência física. O mais impressionante é que as coreografias não eram “pessoas com deficiência se superando”. Eram os movimentos deles mesmos, só que coreografados. Quem assistiu, teve a certeza de que eram dançarinos ali. E não “cotas especiais” (chamo de cotas especiais quando colocam pessoas com deficiência para fazer qualquer coisa só por fazer, designando tarefas abaixo da capacidade dela) . Pessoas sem aqueles corpos específicos não conseguiriam reproduzir aqueles movimentos. Foi o que eu achei mais impressionante. Tanto que eu não consegui descrever a uma amiga o que eu vi. Não dava. Seria como tentar traduzir algo que só tem naquela língua. Lingua essa que eu tinha acabado de conhecer.
Com certeza esse espetáculo só foi possível a partir da abertura de dialogo e de olhar entre pessoas com e sem deficiência. De políticas de adaptação de espaço para que pessoas com deficiência pudessem circular em espaços para além de hospitais. Para que pudessem ser vistos ou imaginados para além de hospitais…
Agora, troquem pessoa com deficiência por ser mulher, negra, lésbica…
E nos perguntemos se realmente queremos divisões ou queremos acabar com elas.
Essa é a escolha que proporcionará que linguagens totalmente novas possam ser criadas.

segunda-feira, 21 de março de 2016

Direito de resposta

Em uma das aulas de faculdade, na matéria de Análise do Discurso, minha professora, Norma Discini, falava sobre a ideia de concessão. Muitas pessoas dizem ser muito flexíveis e não ter preconceitos (todos temos), mas a verdade é que o que governa seus afetos é a lógica da concessão. O que isso quer dizer? Que elas “aceitam” maneiras de viver diferentes da sua só que só sob ressalva: “apesar de”. Assim, por exemplo, dentro dessa lógica, a aceitação do Outro é sempre parcial 
“apesar de fulano ser gay, eu o tenho como amigo”
“apesar de ser morador da favela, é trabalhador”
“apesar de ter deficiência física, é…” (eu não vou preencher aqui pq dói demais!) 
Nesse tipo de discurso, o da Concessão, o outro é aceito não pelo que o caracteriza prioritariamente, mas por ser a exceção dessa mesma categoria. Assim, é exatamente pelo que saio da ideia de pessoa com deficiência física, é no que sou aceita. O pré-conceito continua lá. A ideia que essa pessoa tem a respeito dessa categoria - pessoas com deficiência física - continua lá. 
Essa semana com os acontecimentos políticos e o afloramento dos ânimos a respeito da posse de Lula e da possibilidade de impeachment da Dilma - a lógica da Concessão veio à tona sem véus. Fotografias nas manifestações em que moradores de ruas, negros, mulheres, pessoas com deficiência física são ridicularizados vieram a público sem o menor pudor. Memes em que o desconhecimento a respeito do nome de um filosofo em um pais de educação precária e analfabetismo funcional também (não apenas na direita a Concessão vigora, ein?!). 
Na realidade, as pessoas NUNCA aceitaram CORDIALMENTE esse Outro que tanto exaltam tolerância. Elas aceitavam a presença desse outro - o diferente - naquilo em excediam em exceção. 
Entre os maravilhosos memes que circularam - e aliás, faz algum tempo já circulam - mensagens de apologia ao estupro da presidenta e piadinhas com a mutilação do dedo de Lula, dizeres em que a pessoa resume pessoas que votaram em Dilma a iletrados e, logo, como eleitores ilegítimos - fizeram parte do circo de horrores.
De todos essas pérolas, claro, atingiram a mim diretamente os memes de apologia ao estupro e ridicularização de pessoas com deficiência - memes citando a mutilação do dedo de Lula. 
A mim ficou claro que sempre essas pessoas odiaram mulheres e pessoas com deficiência. Eu sou apenas a Concessão de seus discursos. 
Eu sou o meu corpo. Ninguém merece ser estuprado e o estupro é uma violência que só tem lógica no corpo das mulheres. A “falta” que gera o riso no caso da mutilação de Lula - pior ainda, pois foi resultado de um acidente que envolve dor física - é a mesma que instauram sob mim. 
Claudio Botelho, diretor de uma peça de teatro em São Paulo, gritou ao público abertamente: "O ator que está em cena não pode ser peitado por um negro, por um filho da puta que está na plateia.”. Para ele, sempre foi e sempre será inadmissível que um negro esteja na mesma categoria que ele. Aos que fazem parte de seus afetos, regerá sempre a lógica da Concessão: “negros que se comportem como brancos”. 
A quem acompanha o que escrevo ou convive comigo sabe que falo muito pouco a respeito das questões que me atingem com relação a deficiência física e às consequências da agressão que discursos capacitistas têm e terão em minha vida. Da instauração dessas faltas socialmente criadas.
Quando pessoas saem as ruas e sem vergonha nenhuma xingam negros por serem negros, mulheres por serem mulheres, gays por serem gays, pobres por serem pobres, iletrados por serem iletrados, o que elas estão fazendo não é um mero insulto individual politicamente incorreto. Ao afirmarem de maneira aberta discursos do senso comum, manifestam terem como pressupostos esses discursos. Para eu rir de alguém por essa pessoa ter olhos pretos, é pressuposto que acho inferior a pessoa ter olhos pretos. 
A lógica da concessão todavia parece funcionar apenas quando os que foram “aceitos” se mantém em seus lugares sem fala afirmativa: na marginalidade. A partir do momento que passam a reincidirem voz ou a obterem, os ânimos se exaltam e a lógica da Concessão vem abaixo, independente de fatos políticos de FlaXFlu. 
Para uma grande parte das pessoas, não é o “fora PT” o que move sua indignação. O “fora PT” é apenas o último estágio de desejos não declarados em dizer: “fora analfabetos, vadias, imprestáveis - leia-se pessoas com deficiência física e/ou moradores de rua -, pretos, traidores de classe (classe média branca letrada de esquerda)”. Por isso o horror em se desnudar o que sempre esteve presente só que sob o manto da cordialidade. 
Em resposta ao meme com a mão de Lula sem o dedo mutilado, em resposta às imagens de Dilma com as pernas abertas, em resposta aos memes satirizando a musa do impeachment (ou vocês acham que eu não iria citar os “coleguinhas de esquerda”?), por aquilo que os caracterizam em seus corpos e classe de minorias - mulher, pessoa com deficiência, saio do meu lugar de concessão e marginalidade para afirmar:
eu tenho maos com três dedos que escrevem
uma boceta que cria pessoas e mundos inteiros
e a bosta que sai pelo meu anus não vira meme de internet, nem texto escrito, ou abortos de mundo. Pois, para criar memes e textos e mundos eu tenho:
maos com três dedos que escrevem
uma boceta que cria pessoas e mundos inteiros
Não há falta nenhuma em mim. A única falta que há é o vazio desses discursos que não se manteriam sem instaurar faltas onde não há.

quarta-feira, 2 de março de 2016

O tempo da história e o tempo da nossa história



Ontem eu assisti um vídeo feito por meu filho em um dos ensaios do grupo de dança que participo. Antes de abrir o vídeo, não sabia, tinha duas expectativas: que não gostaria de ver o modo como eu danço, mas que não estranharia ver minha imagem no vídeo. Digo que não sabia dessas expectativas, pois foi a inversão delas o que me causou estranhamento e então eu soube que era o que eu esperava encontrar. É muito aflitivo a gente perceber que as mudanças históricas demoram séculos a acontecer e o tempo da nossa vida é muito curto em relação a esse tempo. Vai demorar muito tempo até alguém como eu olhar o próprio corpo fora de um álbum  de compêndio médico. E eu sei que esse tempo vai além da minha vida. É nesse momento que eu me pergunto: por que querer voar se já estou suspensa? Sinto-me paralisada diante da questão. O tempo é implacável e nem todos têm a opção de fugir do próprio corpo - e entendo quem o faça, como entendo…

Começo a sonhar a queda, já que a suspensão é angustiante demais para me manter e o voo está longe demais para alçar. É bom esclarecer que não é um desejo de superação de nada. Não há nada a ser superado. Quando as luzes se apagam e eu fico a sós com a solidão dessa condição, projeto uma sombra turva sobre os olhos e parece que consigo enxergar um aceleramento no tempo, como se senhora Chronos um pouco eu me tornasse. Ansiedade. Queda. Alguma liberdade. Um corpo em um álbum em branco. Incompleto, vazio, incógnito. Mas, pelo menos, que não fosse mais um compendio médico.  Tempo, tempo, tempo… como eu gostaria que deixasse pelo menos eu escrever a primeira letra de uma história de vanguarda.  A queda como parte de uma dança. O voo deixando de ser a norma da coreografia.  

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Lilith


Eu gosto da vulgaridade, sabe? Esse rótulo que é sempre um outro quem coloca na gente ou em outro ouTRA. De quando marcamos no corpo um ingênuo pedido de atenção aquele desejo que deveríamos segundo esse fino Outro tentar esconder: uma sexualidade fora de lugar. A vulgaridade, termo só feminino e só das mulheres sem berço. Das periféricas, das velhas sem vergonha, das gordas. Das que não aprenderam a se adequar a mostrarem-se na medida. Na justa-medida! Por que se mostrar é sempre uma norma. Porém, se mostrar fora da medida é um indicativo: olha quem  ELA é e ainda assim quer querer?! Quando uma mulher tem acesso a esse conhecimento e acredita nele, como não ser vulgar, ela rapidamente o usa: o não se “mostrar demais” ou o “só se mostrar na medida” (ou curto ou transparente!). Por isso, todas as vezes que eu posso, gosto de ser vulgar. De, apesar de ter tido acesso a todos esses “círculos de elegância”, ainda sim ser vulgar. E melhor ainda: uma mulher com deficiência física vulgar! Como eu me divirto! Vocês precisam um dia ver a cara de desconforto das pessoas! Parece que dá uma pane no cérebro delas! Há inclusive as que me interpelam ou comentam - “Deus te fez tão bonita, parece que queria repor toda a sua…(…)” Por que há uma beleza na vulgaridade, uma beleza estranha, desconfortável. Existe aqueles que gostam muito de mim ou têm alguma empatia com a minha nenhum um pouco elegante pessoa e poderiam dizer: não é vulgar, é sexy. Mas eu gosto tanto de lembrar de onde eu vim… Eu gosto tanto de desfilar por aí, junto ao povo do capital cultural, sendo… vulgar. De marcar fisicamente em meu corpo essa contradição de expectativas…  Gerar uma atração que as pessoas não conseguem lidar… Uma monstruosidade tão escandalosamente deliciosa…  Confesso que ser o centro das atenções sempre me incomodou. Mas, se o meu corpo é uma armadilha, então que não o seja só para mim.    

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016


Tú, língua molengada em miados sem espreita de virada, chupa-bolas de carrasco, glicose enjoativa de pudores, falsa simetria de fervores, negociador-a do inegociável. Entregou sua dignidade por qualquer promessa barata de alteridade. A.L.T.E.R.I.D.A.D.E. Palavra rebuscada em verborragia escalpelada. Salvador -a - humanista - vou vomitar! - dos que te enxergam como frágil ou como servo - a. Sabe o que você quer? Sabe? Essa merdinha de estrelinha na testa por ter perdoado seu enrabador?! Vingança do que recebeu em cima a quem está embaixo? Por baixo dos panos, sinceridade desonesta a quem a tutela se elegeu condecorado? A violência é que mais valioso e humano te entrego. Para aprender que não se aniquila a ferocidade do que é irretratável. E se me der o outro lado da face, eu te devolvo um chute na guela da sua ideia. Só me respeita no que me trata como forte em minha força. E enganada em minha fraqueza. Frágil ou parva? Tome esse murro nos olhos da cara!    

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Solidão, um convite

Entra solidão
que eu não aguento mais
esse bater porta infernal
entra solidão
se ajeita logo
fica em silêncio
vê se dorme logo
vê se dorme logo
vê se dorme logo
vê se dorme logo


Entra solidão
que você não é mais
uma esquecida em portões
entra solidão
tira esses sapatos
e a roupa do meu corpo
benze meu silencio 
e vê se me ama logo
e vê se me ama logo
e vê se me ama logo!
de-me esse momento ao menos
de-me esse respeito inteiro 
de-me um vazio terno
que é para eu me acostumar
que é para eu me acalmar 
que é pra eu te aceitar
dentro do meu tempo 
dormindo em meu chão

Entra solidão
que a mesa está posta 
e esta espera é em vão 
Entra solidão
e vem comer direito
sem restos de desejos
o suficiente 
só para nós duas
mãos que escorrem entre as pernas
numa fome de um só pão
entra solidão
entra solidão

e dê sentindo em meu silencio ao menos
um gozo sincero ao menos
que é para eu me acostumar
que é para eu me aconchegar de uma vez
que é para pra eu me ouvir também
história repetida
carne rasurada
portas que se batem 
antes de abrirem
antes deu conseguir dormir

Entra solidão
que eu não aguento mais
todos os seus nãos de antemão
 entra solidão
e vê se me ouve logo
e vê se me olha logo
e vê se cala boca logo

que é para acostumar também
que é para eu  aceitar talvez
que é para eu dormir enfim
que é para eu me sentir

entra solidão
entra solidão 
que eu não aguento mais

esse bater porta infernal

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Cinismo

De algum momento em diante o cinismo não mais me protegeria. Abriram um corte, fino corte, entre as células sinceras do core. Ouvir “Ace Of Spades” na última altura não apagaria os intervalos na escola ouvindo Axé Music e Back Street Boys. Cantarolar Caetano na Universidade em meio aos casaizinhos puro amor-gratidão rasta corpos-padrão vida hipster eu desafortunada sem aborto relações livres presa em um corpo armadilha tão pouco. Nem tão boa quando todos esperam. Nem tão má quanto gostaria de poder bancar. A peleguice é sempre muito sedutora e  a hipocrisia é um vestido de perfeito corte. Compadecer-se de mim… Falar infantilmente. O olhar servil que não enfrenta nem afronta os olhos de quem a especulação revelaria a dificuldade em observar quem tem no rosto uma máscara. Ainda sim, ver a máscara. Não acreditar no que vê. E ver máscaras em todos. Relativizar a dor alheia em nome da Verdade e da Ciência não mais me colocava  a parte de minha própria dor. Ninguém é obrigado… sempre me argumentam. E eu de braços abertos sou piegas demais para bancar  a Lana Del Rey. Não vou morrer amanhã. Com a importância de uma bactéria, não importa. Eu gosto das bactérias. E de muita criatura. Não de todas, como muitos esperam. E busco mesmo em mim, como tudo o que reteve em internos espelhos, pois do outro pouco sei para além de tipos que desfilam e deliram em movimentos discretos, as cacas retém muito do movimento. 

Por isso dançar. Por isso a experiência de uma força e de uma sexualidade bilateral, bivalente, biestra, ancestralidade apropriada para uma cabeça sem face. Alguém que, cansada, quer-se força sem raiva. A raiva todavia não nego, ainda que enclausurada em discursos pelegos. Autoritarismo aprendi, autoritarismo reproduzo.  Mas, se é para ter algum tipo de cinismo, escolhi, abusada, aquele de quem vadia por puro deleite e afrontamento silencioso.     

A língua

E finalmente  a língua procura
daquilo que não deve encontrar
corte 
nem cegos esfolamentos
(a lâmina suga o cabo e ainda que sempre afiada)
Se não se quer mais manter-se
de tocaia na guarita de um silêncio 
é por que na saída é que soa
o sussurro de
uma promessa instaurada

Segue sinuosa então
em cilíndricos cantos súditos
delicada serpente
E remonta Eras inteiras
na caça do que lhe conte uma história humana sem teorias
: só a fala à língua suga 
enquanto lava

respira fundo fotografias
de suas rosas encravadas
vomita espinhos e a flor
no entreabrir de pernas 
e a água finalmente rasga
em rompante
a mortalha invisível que a imobilizava

é correnteza nascida enfim
na língua
um fim:
a flor finalmente 

encarnada