sábado, 27 de dezembro de 2014

Tarot

No fim de 2013, entediada, confusa, e após clicar numa página de Tarot on-line que veio por e-mail, a previsão foi: um ano de grandes mudanças sociais e pessoais. Mudança, mudança, mudança.  Foi o que em todas as vezes apresentaram as cartas. As mudanças sociais talvez eu não precise descrever. As pessoas estão cada dia mais familiarizadas com a rua como espaço delas e não apenas dos carros. A rua foi espaço meu também este ano. A rua como suspensão da ordem estabelecida. A rua como suspensão. E suspensa fiquei em muitos momentos deste ano. No entre, nas fissuras tempo-espaciais da cidade de São Paulo. Duas vezes sem casa. Infinitamente sem certezas.  Todas as vezes com meus amigos e parentes. Nenhuma vez com um amor  (o Tarot também previu a minha pausa solo).  Estar sem chão e não voar.  
Uma prima minha diz que quando tem medo canta. Eu escolhi dançar. Se era para cair, que eu aprendesse a cair com alguma beleza. Com alguma leveza.
Eu espero para 2015 quedas cada vez mais graciosas. Que eu consiga ser a protagonista de meus alçares. Suspensa apenas por meus pulos. O entre que não seja o intervalo de vazios. Mas o fio que liga afetos.

A armadura infelizmente continua posta.  Mas prometo retirá-la se for um convite a dançar comigo.  

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O Amor não importa



O Amor, ai o Amor... O Amor, esse sorteado entre os sentimentos como o melhor de todos. O Amor cantando pelos poetas, romanceado mil vezes nas fábulas e nas trovas. O Amor que move montanhas, o amor rebelde, o amor das mães pelos filhos, o amor do homem pela sua amada, o amor do professor pelo saber. O amor, lado belo de todos nós. O amor no seio da família, o amor pela Pátria, por seu povo, o amor...
O AMOR NÃO IMPORTA.
O Amor é tudo o que não importa se queremos um mundo melhor. É isso mesmo.
O AMOR NÃO IMPORTA.
Não é por amor que mães cuidam de seus filhos. Nem que se estende a mão a quem cai de dores no meio da rua. Nem o que move um médico à zona de guerra para tratar feridos. Nem serão os poemas de amor a fazer com que maridos deixem de espancar suas esposas.
O AMOR NÃO IMPORTA.
Em nome do amor, mulheres ouviram caladas que deveriam ganhar menos, afinal, eram tão afetuosamente tratadas que nada teriam mais direito, pois o Amor cobriria o pagamento faltante...a ausência... O amor do letrado pela palavra “universal” que define o cânone a voz daqueles que falam pelo que não sentem. Em nome do amor à Patria se fazem as guerras. Enquanto mulheres e alguns outros homens cuidam pela sobrevivência dos feridos, o narrador, fala de amor à bandeira. Em nome do amor, os amantes feridos em seu nobre sentimento, torturam e matam suas amadas, traidoras da gratidão que nascem predestinadas aos eleitos na posse de seus corpos e destino. Em nome do amor à terra,  nasce a propriedade. Em nome do amor à si, mantém-se o consumo desenfreado e o egoísmo. E nome do amor à família, os clãs. Em nome do amor ao ídolo, ao herói,a o escolhido, ao que sempre está a bravamente atravessar mares e terras desconhecidas, sua esposa e amantes limpam bosta de criança – essa parte nunca aparece na história, é feio – cuidam da casa, da terra, dos feridos, com suas medíocres vidinhas, cuidam...
- Meus heróis não são mais os guerreiros e os reis, mas as coisas de paz, tão boas uma como as outras. As cebolas secando tão boas quan­to o tronco de árvore cruzando o pântano. Mas até hoje nin­guém conseguiu cantar uma epopéia de paz. O que acontece com a paz, que sua inspiração não dura e que quase não se deixa narrar (wenders, 1987).          

A paz não inspira ninguém por que mora nas pequenas e insignificantes coisas. Enquanto a Arte que todos consideram como a que inspira  fala sobre o Grande, de tudo o que é belo pela grandiosidade e sobre os grandes sentimentos, os que realmente construíam a Paz estavam fazendo o pequeno, o repetitivo, o anônimo, o repulsivo, o que não muda, o que não tem a ver com escolhas, o que não diferencia racional de irracional, o que descarta qualquer lógica cartesiana. Suas vozes, por vezes, aparecem coadjuvantes em alguma narrativa, enquanto massa amorfa ou em estatísticas. Ou na boca dos lideres revolucionários que nunca lavam as próprias cuecas. Na letra dos poetas que cantam o amor e leem grande Filosofia, mas rapidamente se entendiam em limpar catarro do nariz do pirralho. Eca!
Cuidar é subversivo. Amar não é subversivo porra nenhuma. O Amor, amar é só mais um sentimento e sua manifestação. Alguém tem afinidade por outra pessoa, passa o tempo, passam a se amar. Fim. Pode ter o mesmo grau de importância da raiva. Pode-se ser violento quanto ela, inclusive. Para se defender a condição humana de alguém, o que pode nos mover é a raiva e não o amor. O amor é uma construção de afeto que demanda tempo e convivência. Como amar a um estranho? Como defendê-lo sem amá-lo? Assim como é possível perfeitamente empenhar um discurso amoroso e ser profundamente desumano em seu uso. Eu posso falar em amor só para que não reajas à profunda violência que eu tento te impor, por exemplo. E pode ser que seja mais uma estratégia discursiva do que amorosa. Contudo, ao menos digo por mim e gosto de dizer as coisas por mim e em primeira pessoa, posso ser muito violenta usando um discurso aparentemente amoroso e a quem eu realmente amo. Isso por que o amor não tem nada a ver com o que realmente importa enquanto ética profundamente humana. O que realmente faz com que eu tenha cautela com a minha violência é o cuidado.  O cuidado em não usá-la em quem não tem como reagir a ela. Em quem essa violência não faz sentido. O que importa é o Cuidado.
O Cuidado é o que eu nomearia de Paz. O cuidado exige tempo e pessoas que estejam em relação de solidariedade, descanso, afeto, sinceridade e responsabilidade. Em ambientes que não falte comida, água, espaços adequados. Ou seja, o cuidado é anti-Capitalista. Em nome do cuidado, deveríamos não trabalhar todas as horas que o sistema exige. Nem manter os luxos que esse sistema impõe. Nem faria sentido nada fora do coletivo. Nem o cuidado dos dependentes, velhos e crianças, seria destinado a quem “tem menos valor social”, no caso, às mulheres, às negras, às pobres. O cuidado não exige amor, embora em um plano ideal o contrário seja verdadeiro. Quem ama, cuida e quem não ama tem o direito de deixa o outro à mingua?! Quem cuida pode ser que ame o que ocupa os seus cuidados. Mas não necessariamente precisaria haver amor para haver cuidado. Por que se queremos falar em solidariedade, devemos ignorar o Amor. E devemos começar a pensar no cuidador e nos que dele dependem. Pensar nos cuidadores que enlouquecem em cuidar sozinhos. Que reproduzem a violência que são expostos. Quem cuida em uma sociedade cuja falta de cuidado é o cerne da hierarquia social é o corpo que será mais subjugado, isolado, enjaulado, silenciado. E cuidado não exige amor, mas exige humanidade. Há a classe dos médicos, que fugiria um pouco a regra já que são razoavelmente bem pagos perto de uma babá, por exemplo. Os médicos cuidam, mas fragmentadamente, só o suficiente para manter os corpos vivos e não para mantê-los cuidados. Os professores, idem. Se quiserem realmente cuidar, no sentido extenso do termo, vão enlouquecer. Vão sofrer. Passar mal. Serem xingados. Ganhar mal... Por que cuidar é subversivo.
Cuidar exige relações sinceras. O não exercício de poder. O Cuidado em se responsabilizar inclusive pelos sentimentos nossos e alheios. Não há uma única fala nos fóruns de discussões acerca do Amor livre, amor e Feminismo, amor e poliamorismo, amor e gêneros cujas reclamações de gênero e classe social não gire em torno da falta de cuidado. Lindos discursos dos menininhos de esquerda que vestem saia e prometem mundos e fundos as suas parceiras e sem o menor CUIDADO as largam  no mais profundo desemparo, está lá, a ausência de cuidado. E quando alguém reclama, o revide está na ponta da língua: “possessiva!”. Não tão diferente das mulheres evangélicas cujos maridos ignoram o cansaço das esposas no cuidado dos filhos e da casa. A destruição emocional é a mesma.  
NÃO HÁ LIBERDADE SEM CUIDADO.
Por isso, a Paz não inspira...
E por isso também, quando falar comigo, eu aviso: não espere que eu lhe exija amor. Não espere de mim, amor. E nem mesmo ache que sempre serei amorosa cuidadora de ti, de meu filho ou de quem quer seja, por defender o cuidado. Eu estou tentando ser amorosa ao mesmo tempo que cuidadora. Nem sempre isso convergirá.  Quem lida com o que é realmente humano, sabe que ser integro é ser contraditório e lacunar e que cansaço é uma violência. Eu estou cuidando apesar de cansada. Com ou sem amor, eu tenho de cuidar. O discurso da racionalidade e da completude não cola comigo. Há anos que cuido quase sozinha de outro ser humano, de mim, e tento cuidar de meus amigos, ainda aguentando um sistema inteiro que me mói. Então, não venha tentar me convencer de que o amor é o que salvará. Ou que a Arte salvará. E que os heróis salvarão. Ou ainda, que aceitar certos discursos de amor ou opiniões desumanas só que ditas de maneira amorosa é um compromisso com a Paz. Eu serei profundamente e humanamente violenta em resposta a esse tipo de posição. Eu me gosto no que sou violenta tanto quanto no que sou amorosa. Só não me gosto no que sou desumana. Não prezo pelas pontes, mas pelas pessoas que as atravessam. Não faço ligação com discursos heroicos e parasitários. Acho mais importante cuidar de quem precisa do que lhes roubar a voz.                      

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Velha



Todas as vezes que vêm a mim sobre planos de futuro fora de meu tempo, respondo que é por que estou velha. E já me disseram que tenho uma aparência absolutamente jovial. O que as pessoas não entendem é que isso, a aparência, não é o que digo em minha resposta. A quem tem a aparência obtusa dos monstros ou dos vampiros, tanto faz. Falar sobre sua imagem é indiferente. A minha velhice está dentro de mim. E talvez consiga enxerga-la quem profundamente olhar-me nos olhos. Coisa que evito ao máximo. Não pela velhice, mas pelas memórias que neles boiam.  Eu tinha 14 anos quando envelheci pela primeira vez. No dia 16 de maio de 1998 eu não sabia, mas teria de envelhecer. Meu pai ia embora e o reflexo de seus olhos moraria nos meus. Quando o reflexo dos olhos de alguém vai morar em nós, o filtro das imagens muda. Daí, enxergamos de outra maneira. O tempo dá pequenas acelerações. Imperceptíveis em curto prazo.  Mas significativas em longo. A alguns, a secura é uma consequência e foi o meu caso. Os olhos ressequidos  envelheceram as imagens. E as fibras das horas romperam-se. Envelheci uns sete anos, pelos cálculos. Tipo de conta besta, já que esse tipo de intervalo de tempo é imensurável. Alguns anos mais tarde, novamente eu envelheceria. Aos 21 anos, o corpo que comportava a secura se vingaria em umidade. E o que parecia infértil seria o terreno de um novo reflexo. De novos olhos. Em sentido contrário, reflexo de olhos que iria morar fora de mim. E o que era seco fez-se molhado. Todavia, ainda sim envelheceria. Apesar de úmidas, as imagens daqui por diante para sempre seriam salgadas. Pois o mundo assim determinava: o salgar da vida a quem de reflexos é parida. Daí para frente, as imagens todas feridas de sal... Como no dia que em que um amor me disse que ter rebentos era chaga perdida. Ou dos tantos  doutores que me receitavam recolhimento ao carma que doía. Cansada de tanto sal, agora eu mesma abria o bucho do tempo, ainda que também de vez em quando salgando a vista. Hoje em dia, perdi as contas de meus anos. Talvez uns noventa e tantos anos... Ou seja, velha. E é por isso que afirmo minha velhice. Como se diz por aí, a essa altura do campeonato, não faz mais sentido mentir a idade.      

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Ancestralidade



O meu corpo tem a ancestralidade dos monstros
Que se cobrem diante do sol
E encobrem de terra a nudez

Dos que  desnudam  a terra a quem nela se posta nu
e lavam de vermelho
Pois só em branco querem o mundo
Escalpelando a vista
De toda a pele não lhes for espelho
O meu corpo tem a ancestralidade dos monstros
Que em fogueiras arderam
E nomeadas sempre
A aberração de um avesso
Por criar dentro do corpo
O que na Bíblia só a um Deus sem útero
elegeram
Por serem as únicas a conseguir devolver
Não apenas a costela
Mas corpos inteiros
O meu corpo tem a ancestralidade dos monstros
Que em torres flertam as ciganas
Ainda que ciganas também sejam
E com suas corcundas fortes
desafiaram distraídos
até mesmo o desenho de seu corte
e retorcidos na carne
trazem ainda o dom
de deformar a quem lhes toca
e todo o desejo
pois deles já sempre nascerá
inominado paradoxo
destino insolúvel
trazer em si
ser ao mesmo tempo anjo e demônio
os únicos a anunciar pelo corpo
 a inteireza que aos demais
enterram em seus peitos
só se é se aos dois foram
a integridade só existe no defeito
a maldição e dádiva são
em serem a atração e o seu reverso
quem goza com um monstro
esconde a todos
o lobo que mora em si
em pele de cordeiro
A minha ancestralidade tem fina pele
Última película
Mas é  a dos monstros
E que eu termino de arrancar
Para não haver dúvidas:
uma vez monstro
Monstro me quero
Sem eufemismos
Flor despetalada
Poeta que escreve sem dedos.  

domingo, 7 de setembro de 2014

Letra arrendada



Comprou minha vida e eu não sabia
Pois meu nome não registrei
No chão que sonhava minha vida
Minhas pegadas
E minha sombra
Em troca de arrendamento
Subtraídas
Comprou minha vida e eu não sabia
E a fiança do que eu mesma financiei
Era letra periférica
Sem rubrica de ser minha
Tinta marginal
Sem cabimento
Nas escolhas
Da não-escolha do dia
Desmemória de quem não se queria errante
E por delicadeza não gritou
As raízes que fazia
Comprou minha vida e eu não sabia
Encaixotada a humilhação
Do que sem nome
Ressentia
Culpada de todas as incertezas que perfurei
Nas paredes alheias sem nome
Do que sem nome eu sentia
E não dizia
Comprou minha vida e eu não sabia
Emprestou seu nome à minha paz
e a renomeou conforme lhe convinha
na garganta o amor se misturava
ao desamparo
letra muda em afasia
Comprou minha vida e eu não sabia
Meu tempo em contrato palavra
Palavra que fiei
Na solidão de minha agonia
Perante a indiferença que a olho nu
Eu via
Dava por desentendida
E quanto menos queria incomodar
Mais meu chão eu sedia
E iludida comemorava
A terra que eu nutria
Ainda que a todo tempo sem nome
Classificada e recortada
Sempre e sempre
“ a hóspede”
E nestas terras
Haveria alguma alforria
Mas estadia é só letra vigente
A quem compra o próprio nome
O meu eu arrendei
Lendo analfabeta
As páginas do que não lia
Achando que essas coisas de nascença
De nós é inseparável
Ao espólio de outros impossível
Que não a quem de si acredita ser a própria vida
E logo veio a cobrança
A penhora da dignidade recolhida
descobri
Que sem nome
a escolha feita
estava nas entrelinhas
era vender a minha ida
Pois comprou minha vida
E eu não sabia.
Problema meu que não sabia.