sábado, 5 de fevereiro de 2022

Pés e Asas

 Já faz tempo que devo esse texto a vocês. Hoje em dia, olho para vocês, que é dois, como eu e lembro que por muito tempo eu fiz de tudo para esconder vocês. Eu tive tanta vergonha de vocês, eu transava de meias para esconder vocês. 

Eu olho neste exato momento para vocês e não consigo mais ver o que aquela Outra via de feio. No máximo, a cicatriz do tornozelo direito, que me gerou muita dor física. 

Eu quero dizer agora: nunca houve nada de errado com vocês. Não é que eu aprendi a amar vocês, meus pés, como são. É que eu consegui me livrar daquela máscara terrível que tampava meus olhos e inventava um mundo onde sereias devem ser devoradas pois são monstros. 

Sereias só são pessoas com calda. 


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Oi,

Espero que a carta tenha feito você se sentir bem. A mim, chegou tarde demais. 

Você sabe o quanto eu aguentei para que pudesse realizar seu maravilhoso sonho de fazer faculdade? E depois, de dançar?

Eu doía mesmo. Era o mínimo que você tinha de compartilhar do que eu sentia. 

Você me escondendo enquanto eu te carregava para lá e para cá nas costas! 

Folgada!

E nada nunca estava bom. Incrível. Eu cheguei a lavar o chão de sangue em nome do seu capricho por dançar perfeitamente. Porque, né? Dançar só por dançar não parece bom para a dona obcecada pela aparente perfeição! Aff!

Se eu fosse até a lua e dos fios de sua luz lhe fizesse asas para voar, ainda assim era bem capaz de você ensacar tudo em uma meia esburacada e só voar escondido.

Será que podemos somente curtir a partir de agora?  

 É o mínimo que nós merecemos. 


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Pensei em ficar em silêncio depois do que me contou. Meus pés, mas que é um também, pois é o equilíbrio na dubiedade. 

Eu talvez realmente ensacaria em meias furadas as minhas asas caso vocês as me dessem. Eu jamais as rejeitaria entretanto. Eu nunca as rejeitei. Amar escondido é um modo de ser livre. Covarde pode chamar. Às vezes, porém, o único modo possível. 


Ser livre pode ser uma afronta em certos ambientes. Se eu fui tão obcecada na perfeição, é que isso parecia ser o único modo de caminhar sozinha. E, trouxe sim novos modos de pisar. Eu alonguei vocês, meus pés. Eu os tornei mais fortes. Mais ágeis.  Não nego o sofrimento de vocês. 

Se fui cúmplice na dor que passaram, também fui a espiã que libertou a nós três.

Voar a luz do dia é curtir o voo. É também saber da guerrilha que será ter de voar contra os estilingues. E também saber que será preciso se posicionar contra as gaiolas de quem tanto nos ama e nos quer nelas.


Poderia perguntar a vocês: estamos preparados? Mas isso não existe. Nunca estaremos preparados, no máximo com boa estratégia. 

É assim que as histórias reais começam.