sábado, 23 de abril de 2016

“você não está só”

Escrever como quem 
compartilha um segredo

E até
pode parecer que escrevo como quem 
pede socorro
que escrevo como quem 
se entrega
que escrevo  
para me vitimizar

mas escrever 
“você não está só”
e colocar em uma garrafa e jogá-la ao mar
à espera de que chegue
não a um salvador
não a àquele bom homem que olha o mar e talvez se sinta só
não a um grande amor 
não a um filho
não a um grande chefe de Estado
e nem a um antigo chefe de trabalho
não a uma heroína ou a um herói
e nem ao Nobel da Paz de algum momento da história
não a um poeta ou poetiza
e nem às musas e  deuses de suas inspirações

mas
àquele ou àquela 
que também 
naufraga
que como eu não sabe o que esperar
mas se importaria muito em saber
que ainda não enlouqueceu

nesta solidão.  

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Sobre divisões e saber ouvir


O texto abaixo, que era pra só um pequeno relato de uma situação e virou um textão é uma primeira tentativa de falar sobre o que não gosto.... Tem erro de escrita, tem sono, tem comparações absurdas, mas tem diálogo.
Hoje, na saída da Prainha Branca, de volta à São Paulo, um dos hospedes do local chegou às minhas amigas e disse: “ah, eu sou fisioterapeuta, seria muito bom ela fazer uns exercícios para fortalecer os braços…”. Ao que uma delas disse: “pode falar diretamente com ela. Ela inclusive fala muito, fala pra caralho” (risos). Então eu me liguei na conversa e respondi: “sim, eu comecei a fazer pilates há uns três anos, estou fazendo capoeira e///////
CORTE
O senhor continuou conversando com as minhas amigas como se eu não tivesse ali.
A intenção dele com certeza era boa. Mas/
CORTE
(novamente)
Esse peculiaridade de não ser ouvida não é “privilégio” só meu.
Muitas pessoas, ao lidar com mulheres, negras e negros, lésbicas, sem teto, indígenas, etc, na melhor das intenções em salvar-los, melhorá-los, apontar como poderíam ser melhores - como fez o tal do fisioterapeuta - reproduzem o mesmo comportamento dele: silencia quem deveria “ajudar”. Orgulhosos de nos “salvar” de nossa condição, de mostrar inclusive nossas contradições (“mas mulher também é machista!”), acabam simplesmente não nos ouvindo.
As divisões sociais - capitalismo, patriarcado: racismo, machismo, elitismo, capacitismo, adultismo - existem a muito tempo e desde muito antes de os que me leem aqui nascerem. O que eu quero dizer com isso? Que fomos socializados a reproduzir essas divisões e não a enxergá-las. É tão natural ser tratado com humanidade que não enxergamos quando o outro está sendo desumanizado.
E não só. Além de não enxergar, somos socializados a encobrir.
Como pessoa com deficiência física, por exemplo. eu passei e passo a maior parte da minha vida tentando justificar as situações de desumanização que acontecem comigo:
“- Ah, mas o tipo de deficiência que eu tenho…. há casos em que o cognitivo é afetado”
“- ah, ele ficou com tanta vergonha que não conseguiu continuar a conversa com a interlocutora correta.”
“Ah, mas…”
Não basta a gente, como minoria, sofrer a desumanização. O que já é em sim bem pesado. Tem que ser cordial também. Mas a gente não quer lembrar 24 horas por dia que é um corpo fora de lugar.
***
Sim, por que eu estava fora de lugar ali, num camping que só se chega por trilha, com todos aqueles jovens-corpos-padrão. Nada ali era adaptado a receber pessoas como eu. No caminho mesmo, eu já senti que quando pessoas com deficiência saem do circulo paulista, a situação muda totalmente. Esqueça a pessoa com deficiência física bem vestida da Berrine, com empregos em grandes empresas, pois são as únicas obrigadas a ter cotas. Apaga isso, já! No ônibus, ao subir, havia catraca antes dos bancos e que atrapalhava a minha locomoção. Mesmo a entrada de traz sendo adaptada, o motorista deixou eu me virar pela frente. O ônibus começou a andar e eu sem ter muito onde me segurar, falei alto, para que todos me ouvissem: “alguém poderia ceder lugar a uma pessoa com deficiência?” Um rapaz, lá no fundo do ônibus cedeu. Eu não conseguia chegar, o ônibus havia começado a andar. Pedi a ajuda a ele mesmo para conseguir.
Todos ali me olharam como se eu fosse um ET. Ninguém se moveu. Ao mesmo tempo, era como seu eu me comportasse de maneira inabitual. Ter deficiência e viajar sozinha, ter deficiência e saber pedir os meus direitos de maneira segura. Eu não ocupava o papel de coitadinha. E ainda falava de maneira segura? Com certeza todos ali entenderam como rude.
***
Uma boa parte da minha vida, eu consigo levar sem lembrar que sou um corpo. O que eu quero dizer? A gente só lembra de uma parte de nosso corpo quando machucamos aquela parte. E ninguém quer esse tipo de lembrança.
Quando nós, que fazemos parte de alguma minoria relatamos nosso sofrimento, as peculiaridades desse sofrimento, o que estamos fazendo é abrir diálogo. Parece o contrário? Sabe por que parece o contrário? Por que, para algumas pessoas, apontar divisões é muito parecido com fazer divisões. Logo, com ataque pessoal. Estrutura social e ataque pessoal tem uma diferença gritante.
Se o fisioterapeuta que eu relatei fosse meu amigo de facebook, com certeza ele iria se sentir ofendido. Ainda mais por que eu trouxe a situação a publico. Por não tê-lo “repreendido” em privado. Mas toda vez que acontece algum tipo de situação assim, eu tenho que jogar a situação para o público. E politizar. Para retira-la da exceção, do privado, da idiossincrasia. E faço isso exatamente para ABRIR DIALOGO.
ABRIR DIÁLOGO
Como minoria, abertura de diálogo não pode ser passar por cima de nossos próprios sentimentos. Não é errado eu me sentir mal com a situação descrita acima. Não podemos achar que devemos entender o outro antes mesmo de nos sentirmos humanos. Para eu me sentir humana, eu tenho que achar que é normal eu me sentir mal em não ser ouvida. Que a situação não é normal. Não foi a primeira vez que aconteceu uma situação assim. É recorrente. No almoço da empresa em que trabalhei, o garçom perguntou ao meu chefe o que eu ia beber. Ele só respondeu sem entender: “pergunta para ela, ué?”. E o garçom perguntou para mim, mas sem NENHUM constrangimento. Quando eu preciso pedir ajuda para subir em ônibus - quando são muito altos - já aconteceu da pessoa me machucar. Eu pedi para a pessoa me dar uma mão e o “grande herói” foi me pegar no colo.
Além de passar pela situação em si, as pessoas esperam das minorias que elas sejam MELHORES. Que passemos por cima de nossos sentimentos. Que não sejamos humanos…ops!
SETIMEN
/CORTE/
T
/CORTE/ CORTE/CORTE
Que acordemos todos os dias felizes e dispostos a dar nossa aulinha grátis sobre nossas diferenças, mas só com situações fáceis de degustar e propiciar a maravilhosa sensação de
sou uma pessoa misericiordiosa-com-essa-alejada-mas-ia-ser-tão-bonitinha-com-essa-carinha- tadinha?
Ou então
tá mal humorada por que é mal resolvida?
Pessoas com deficiência física e mulher têm de ser fortes, inteligentes, arrumadas, tudo o quê conseguirmos ser para REPOR
REPOR
REPOR
REPOR
nossa FALTA
E em qual linguagem nós minorias fomos educadas? Em qual espaço dessa linguagem poderíamos nomear quem somos se tudo o que somos não está nomeado?
Se nomeamos, ofendemos, se não nomeamos, não é possível dialogar!
Diálogo não é ausência de conflito. E quem está machucado, com certeza está mais arredio. Com toda a razão. RAZÃO, não DESCONTROLE. Razão em de alguma forma retirar do silêncio o que lhe dói. Dói mais por que é SOCIAL. Não é PESSOAL. Jogar para o pessoal é só mais uma forma de afirmar que a situação é uma exceção, um exagero, NÃO EXISTE. Além de pedir para ignorar os próprios sentimentos, isso cria em quem sofre situações de opressão a ideia de que os seus sentimentos são LOUCURA. Gaslighting.
As perguntas que poderiam e vir depois da negação de situação de opressão por parte de quem sofre, de quem vê e de quem faz é:
“Não seria exagero se sentir mal com isso?” - diminuição da importância dos sentimentos de quem sofre a situação.
“Você não é alto confiante o suficiente para lidar com isso” - pressuposição de que todo dia uma pessoa que passa por situações difíceis deva acordar bem e achar normal ser tratada como um vaso de plantas.
“Pra que expor isso?”- retirar a situação da esfera política e jogar para o âmbito da exceção, ignorando toda a conjuntura social que leva as pessoas a agirem como agem.
Ao escrever e falar sobre capacitismo, machismo, racismo, heteronormatividade, quem está na situação que envolve a opressão está apontando são as divisões sociais já existentes. É exatamente a tentativa de que deixem de existir. É ABERTURA DE DIÁLOGO.
- Olha, quando você tenta me ajudar subestimando minha capacidade - intelectual e física - eu me sinto mal, pois sempre vi pessoas em situações como eu com alguém falando por elas ou em espaços relacionados a hospitais e comportamentos repulsivos em relação ao corpo delas. Eu posso e vou falar/escrever e quero ter a liberdade tanto de que os espaços sejam adaptados a pessoas como eu, como que eu possa testar estar nos espaços fora da sua concepção de mobilidade.
Seria simples, não? Mas não é.
Aliás, formular um possível dialogo ai em cima já em si algo bem difícil de fazer. Eu raramente consigo, sendo sincera.
Para não magoar a pessoa, para não constranger, por a pessoa não vai entender… Enfim, silêncio.
As pessoas estão tão acostumadas a não ver mulheres, periféricas, negras, indigenas, pessoas com deficiência, trans, mães, lésbicas, se posicionando, que transformam esse estranhamento, esse MEDO DO OUTRO, em defesa. Esquecem talvez que o nosso mundo não gira em torno de suas histórias, mas, de vez em quando em torno de nossas histórias: por isso é um debate político e não pessoal Também perdem a oportunidade de saber quem são elas mesmas nesse diálogo.
Quando eu me volto a pensar na minha situação, tenho a oportunidade de olhar esse outro, pessoa sem deficiência, como o meu espelho invertido. E não meu opressor.
As pessoas, na melhor das intenções, falaram tanto sobre o que deveria ser para repor o que sou, que o que sou nunca foi olhado como algo inovador. Eu sempre me colei a imagem de alguém que tem de superar algo - aflição, aflição, aflição! -, assexuada, mente maravilhosa, corpo joga fora.
Eu não tenho como fugir do meu corpo.
E eu não deveria sentir desejo de fugir dele.
Fui recentemente assistir um espetáculo de dança, Proibido Elefantes, com a maior parte dos dançarinos pessoas com deficiência física. O mais impressionante é que as coreografias não eram “pessoas com deficiência se superando”. Eram os movimentos deles mesmos, só que coreografados. Quem assistiu, teve a certeza de que eram dançarinos ali. E não “cotas especiais” (chamo de cotas especiais quando colocam pessoas com deficiência para fazer qualquer coisa só por fazer, designando tarefas abaixo da capacidade dela) . Pessoas sem aqueles corpos específicos não conseguiriam reproduzir aqueles movimentos. Foi o que eu achei mais impressionante. Tanto que eu não consegui descrever a uma amiga o que eu vi. Não dava. Seria como tentar traduzir algo que só tem naquela língua. Lingua essa que eu tinha acabado de conhecer.
Com certeza esse espetáculo só foi possível a partir da abertura de dialogo e de olhar entre pessoas com e sem deficiência. De políticas de adaptação de espaço para que pessoas com deficiência pudessem circular em espaços para além de hospitais. Para que pudessem ser vistos ou imaginados para além de hospitais…
Agora, troquem pessoa com deficiência por ser mulher, negra, lésbica…
E nos perguntemos se realmente queremos divisões ou queremos acabar com elas.
Essa é a escolha que proporcionará que linguagens totalmente novas possam ser criadas.