terça-feira, 2 de outubro de 2007

Isto é um cachimbo

Rating:★★★★
Category:Books
Genre: Arts & Photography
Author:Manuel da Costa Pinto
O ensaísta João Alexandre Barbosa, que morreu em São Paulo no dia 3 de agosto, deixou uma obra em que se destacam estudos sobre José Veríssimo, João Cabral de Melo Neto e Paul Valéry. K publica um depoimento do autor de Entre livros e textos sobre sua atuação como crítico, presidente da Edusp e criador do conceito de leitura do intervalo.
MANUEL DA COSTA PINTO

"Antes de mais nada, preciso avisar ao leitor que este artigo (por razões que serão dadas no final) será um artigo comovido e, por isso mesmo, dele não se espere uma objetividade que, em outras circunstâncias, seria o que há de mais natural numa coluna que se pretende crítica." Com essas palavras, João Alexandre Barbosa iniciou o texto "Réquiem para Jorge Wanderley", em sua coluna na revista Cult de fevereiro de 2000, no qual homenageava o amigo de juventude, morto em dezembro do ano anterior.

Cito tal passagem porque tampouco aqui haverá objetividade crítica, mas um esboço de figura no qual se misturam o intelectual, o amigo e as lembranças de uma convivência de 15 anos, que começou quando me tornei seu editor-assistente na Edusp.

Isto posto, é preciso dizer que, ao contrário do que se poderia esperar da amizade entre um crítico literário e um jornalista da área de cultura, ela não nasceu nem em torno de Valéry e João Cabral (as obsessões de João Alexandre) nem de Pascal e Camus (as minhas) – mas de uma palavra de origem turca, latakia, que designa um tipo de tabaco que, combinado com outras famílias de folhas, dá origem à english mixture, um saborosíssimo blend para cachimbos.

Pois bem, para um fumante de cachimbo, o mundo não se divide entre nominalistas e realistas, capitalismo e comunismo, PC e Macintosh (as dicotomias mais amplas da história da humanidade), mas entre quem fuma latakia e quem fuma outros blends (sobretudo as odiosas misturas aromáticas, que mais parecem um panetone em combustão).

Foi como aluno de João Alexandre na USP, em 1991, que descobri que também ele era fumante das english mixtures. A partir daí, a literatura tornou-se assunto quase secundário em nossas conversas – e desconfio que ele me convidou para trabalhar na Edusp mais em função dessa identificação tabagística do que por outros predicados que eu pudesse ter.

Faço essa digressão porque havia curiosas analogias entre o fumante de cachimbo e o grande leitor que João Alexandre foi. Sua incrível coleção de cachimbos italianos, verdadeiras obras-primas do design, rivaliza com uma biblioteca na qual, a despeito da importância dos títulos e dos autores, ele sempre apontava preciosos detalhes de edição.

A relação tátil com seus objetos de eleição (o cachimbo e o livro) e a atenção para a perfeição das formas (em contraste com a disformidade do mundo à volta) eram um traço de temperamento que refletia, no convívio cotidiano, uma disposição intelectual presente em sua obra crítica e em sua intervenção pública mais importante – o trabalho na Edusp.

João Alexandre foi presidente da Edusp entre 1988 e 1993. Na prática, criou a editora, que antes dele apenas participava de projetos de empresas privadas (dando-lhes apoio financeiro), e a transformou em modelo para outras editoras universitárias. Mas o que importa notar é que, logo de saída, ele investiu na criação de uma identidade visual que se estendia por todo o catálogo da editora – revelando uma atenção para as analogias entre as palavras e seu suporte físico que não era estranho a sua atuação como professor e crítico literário.

A obsessão de João Alexandre por Paul Valéry e João Cabral se concentrava no caráter de constructo de suas obras, que funcionam como um espelho que disciplina as imagens refletidas. Em ambos, temos aquilo que, numa análise de Sevilha andando, de Cabral, ele descreveu como uma "aprendizagem com as formas" – cuja realização plena seriam os Cahiers que o escritor francês redigiu ao longo de 50 anos e nos quais João Alexandre gostava de celebrar uma "comédia intelectual", realizada na esteira da comédia cosmológica de Dante e da epopéia burguesa contida na Comédia humana de Balzac.

A atenção para os elementos compositivos e para o isomorfismo entre realidade e representação, presentes tanto em Valéry quanto em João Cabral, estão na raiz da empatia intelectual que fez de João Alexandre um interlocutor dos concretos – mas esse é um capítulo muito mais amplo da avaliação de seu legado crítico

Antes das formulações teóricas e das análises exaustivas, existe sempre aquela atração, irredutível a racionalizações, por certas maneiras de apreender as coisas. E, no caso de João Alexandre, o fascínio que deflagrava sua própria escrita eram as verdades parciais, as iluminações pontuais que ele enxergava no modo como o autor de Uma faca só lâmina dispunha os poemas num livro, ou no gesto com que Valéry criava pequenas ilhas de inteligibilidade nos Cahiers – que ele conhecia com uma erudição que assombrou Judith Robinson-Valéry (nora e responsável pela edição das obras do poeta francês).

No prefácio de Mistérios do dicionário, seu último livro publicado em vida, João Alexandre definiu seus textos como "escritos de um leitor que, cada vez mais, gosta menos das ‘grandes teorias’ e mais se compraz em exercer, com liberdade e alegria, o jogo de relações, as descobertas de pequenas e inesperadas relações que a literatura tem para oferecer". Na verdade, a propensão ao fragmentário e a aversão ao espírito de sistema sempre estiveram presentes em sua obra crítica. O ensaio era o seu elemento: um espaço limitado, preciso como um tabuleiro de xadrez, no qual podia exercer seu "jogo de relações" – relações rigorosas, porém sempre provisórias, anti-dogmáticas, sujeitas a revisões.

Seus estudos sobre José Veríssimo ensinaram a ler as contradições internas dos grandes projetos de historiografia literária; e, ao final de "A volúpia lasciva do nada" (ensaio de 1989 publicado em A biblioteca imaginária), lançou a idéia de que Memórias póstumas inauguravam uma "tradição de rigor" que ele pretendia analisar num livro de maior abrangência – mas que abandonou, talvez por esta mesma desconfiança em relação aos enredos totalizantes.

Convidado a entrar para a União Brasileira de Escritores (UBE), João Alexandre respondeu ironicamente que não se via como um escritor, e sim como leitor: seu ego scriptor se satisfazia em viver entre livros – e cachimbos.


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Manuel da Costa Pinto é jornalista, autor de Albert Camus – Um elogio do ensaio (Ateliê).

Fonte: Site Web Livros - http://www.weblivros.com.br/k-jornal-de-cr-tica/k-jornal-de-cr-tica-4-set-06-2.html

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