sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Um ensaio de Ensaio: Anedota Pecuniária: uma leitura da não moral da história

Rating:★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Vanessa Yara Gonçalves
“(..) mas, ai de mim! eu não sou Sêneca, não passo de um Suetônio que contaria dez vezes a morte de César, se ele ressuscitasse dez vezes, pois não tornaria à vida, senão para tornar ao império.”
Machado de Assis

Chama-se Machado o meu homem...Quando iniciei a análise do conto machadiano, Anedóta Pecuniária, além do medo que a própria obrigação da interpretação impunha, fui cercada de impressões as quais acabaram por guiar as insinuações que neste trabalho defenderei.
A primeira e, creio, que principal, foi o porquê eu lia aquele texto em que todas as personagens “se dão bem” e ainda sim, sentia a grande incomodação de uma crítica ferrenha? Porque tal formato de crítica se distância tanto de outro livro também do mesmo autor, Ressurreição? Que “malabarismos ou contorcionismos” retóricos o meu autor estaria usando para que eu percebesse, mas não visse o veneno de seus “ferrões”? E, por fim, não principalmente, mas ainda não ignorável, o que Sêneca tinha a ver com tudo isso?
Antes de descrever minha jornada à resposta de tantos questionamentos que ainda estou a definir pertinência, darei uma pincelada no enredo do texto. Anedóta Pecuniária é a história de Falcão, homem ganancioso, que tinha adoração pelo dinheiro. Solitário, adota uma sobrinha para lhe fazer compania, Jacinta. Mas, apesar da estima que mantinha pela moça, Falcão abre mão da presença da moça e vende o consentimento de casamento ao amigo Chico Borges em troca de mais espécimes do objeto de seu desejo. Dez contos de réis era o que o faria esquecer de sua solidão. Mais tarde, para repor a falta deixada por Jacinta, acaba por acolher Virgínia, outra sobrinha. Como a história não poderia escapar à sua (i)moralidade intrínsica, Falcão acaba também por vender a mão de Virginia. Como pagamento, recebe a própria materialização de sua Ganancia, uma coleção de notas de dinheiro de diversos países do mundo.

“(...) esperava uma caixinha com um exemplar de cada moeda, e achou montes de ouro, de prata, de bronze e de cobre. Falcão mirou-as primeiro de um olhar universal e coletivo; depois, começou a fixá-las especificadamente. Só conheceu as libras, os dólares e os francos; mas o Reginaldo nomeou-as todas: florins, coroas, rublos, dracmas, piastras, pesos, rúpias, toda a numismática do trabalho, concluiu ele poeticamente...”

Não há final infeliz apesar da concretização da venda das sobrinhas, O tio obtem seu cobiçado objeto. As sobrinhas se casam com os parceiros escolhidos. Não há castigo nem lição de moral. E foi com esse estranhamento que resolvi dar o ponto de partida a minha análise.

Para tanto, tive de buscar os elementos que circundavam a obra machadiana, que estava fora do texto, mas que não obstante seria de necessidade imprescindível para a realização de uma crítica literária que observando a movimentação e intrínseca dinâmica entre estrutura estética e contexto social, me fornecesse o combustível necessário para a construção de máquina de interpretação literária : o conhecimento de mundo. Recorri ao crítico literário, Roberto Schwarz, que me presenteou com mais duas questões: “ Em que consiste a força do romance machadiano da grande fase?Há relação entre a originalidade de sua forma e as situações particulares à sociedade brasileira no século XIX?.”
Ao recorrer ao contexto social em que a obra foi escrita, tinha já em mente algo além da concepção de obra de arte como “Sedimetação histórico-social”, frase que ouvi em uma palestra do crítico acima referenciado. Era a percepção da duplicidade de planos interpretativos da estrutura textual machadiana dos textos mais recentes, ou ainda, classificados como a obra da Segunda Fase, conceito que mais à frente delinearei.
E o que eu quero dizer quando afirmo uma multiplicidade, mais que um ao menos, de planos interpretativos? A verdadeira “moral da história” se é que se pode dizer isto, não está e nem deve estar na superfície do conto, mas em outro plano, que apesar de invisível, é concretamente apontado pela narrativa. Bom, voltemos um pouco o raciocínio e vejamos o contexto em que a obra se insere.
Anedota Pecuniaria é um dos contos, incluídos na coletânea Histórias sem data, de 1884. O contexto político, é o reinado de D.Pedro II em que, apesar de o Brasil não ser mais uma colonia, conserva ainda quase todas as suas características enquanto tal: ainda é um país escravagista e ainda é predominantemente rural, mas que apesar disso, está as vésperas de algumas de suas mais importantes transformações político-sociais: a abolição da escravatura e a proclamação da República. O café é o grande propulsor desse sistema “pseudo-republicano” e o que estimula e mantém o mercado interno e externo. Tal prosperidade da economia cafeeira acaba por sustentar o sentimento de esperança de um surto modernizador.
Mas como a arte tem como inerência de sua própria essencial a impossibilidade em fugir às contradições sociais de sua época num movimento de absorção e reflexão (do conceito de refletir, similar ao espelho), o que se vê da literatura local é um ressoar retardado de ecos da literatura européia: uma forte influência dos anseios nacionalistas do Romantismo, vestida em trages de Naturalismo de Zola e Flaubert e, sutentada nos calçados apertados do cientificismo darwiniano e da luta das classes operária da Revolução Industrial.
O resultado é a construção de um cânone literário que prega a descrição compulsória do que os críticos acreditavam ser a realidade brasileira, com descrições da realidade de classes mais pobres de maneira superficial e caricatural em desconjuntada pele determinista, ideologia européia mal digerida aplicada “aos trancos e barrancos” numa tentativa de construção de ensaio de literatura brasileira com cortiços de Veneza. E de repente, em meio a uma floresta tropical e a uma aristocracia rural, temos infinitas descrições de paisagem impregnada de um rigor cientificista completamente artificial em cujo o produto é será uma moral da história de crítica...a burguesia industrial (?). Escravidão e clientelismo até chegavam a serem mencionados, mas a crítica profunda e necessária dos valores que lhes servem de alicerce se limitava a apenas a uma visão de exotismo, em que por um exagero eufórico se pressupunha tal exotismo como natural e comum ao próprio ambiente em que a obra estava imersa.
Esses padrões literários desconexos da própria realidade que tentava descrever de maneira fidedigna simplesmente refletem um contexto social que amalgama valores burgueses de libertade, igualdade e fraternidade com a herança colonial brasileira de escravidão africana e clientelismo, conciliação existente na situação real vivida pelo país nesta época. A absorção das idéias divulgadas pela chamadaTendência Nova, nome dado à literatura e conhecimento cientifico circulado na Europa àquela época, é inconclusa e disforme: lê-se pela fonte de terceiros e nada é interpretado a fundo ou mesmo diretamente.

Em conseqüência não há discernimento para se separar o “joio do trigo” e, tudo é incorporado com inflamada defesa. A presença da hereditariedade é vista com rigoroso conhecimento cientifico e se institui enquanto regra inexorável e tautológica em que as personagens são tautologicamente submetidas a uma inevitável entrega à sensualidade, à sucessão dos fatos e às circunstâncias ambientais. Além disso, se defende que toda a ação romanesca deve ser detida sob o senso do real em que o escritor deve ser capaz de comprovar as ações de sua ficção de maneira inflexivelmente alinhada às “verdades cientificas” da época.
Podemos verificar a vigência de tais parâmetros fruto do determinismo na descrição de cânone literário exaltados na crítica de Silvio Romero, crítico literário contemporâneo a Machado. Silvio em diversos de seus artigos publicados na época da escrita da obra machadiana acusa o autor de oportunista e anacrônico baseado no livro Quincas Borba que o critico usa de exemplo em que Machado estaria a zombar das idéias, segundo ele, realmente promissoras e válidas, das teorias evolucionistas européias. Qualquer diálogo com a tradição era visto como fator de anacrônico, resquício vicioso do Romantismo e até mesmo manifestação de abuso e desrespeito. Tal reação, pauta-se em uma percepção inocente da obra machadiana em que o segundo plano de sentido não é apreendido, sendo por sua característica de “implicitude” paradigmática do sentido, em que a critica não está diretamente colocada à superfície do texto, mas inerentemente pressuposta do senso-crítico do leitor que o interpreta. A construção do sentido é dada por planos textuais que se desdobram uns sobre outros. Estes planos textuais são ativados pelo próprio leitor que somente distanciado do preconceito ali denunciado será capaz de enxergar os truques retóricos do narrador de Dom Casmurro ou o “conhecimento de amput”, a futilidade dissimulada do narrador de Memórias Postumas. Ou, ainda, não ficará escandalizado com a “boa sorte” de Falcão que apesar da ganância, não é punido.
Esse jogo de linguagem em que o autor “brinca” com os valores ideológicos do leitor o qual somente será capaz de ativar o segundo plano de sentido se for critico o suficiente para discordar com os valores exaltados no primeiro. É esta nova caracterização estilística que serve de base para a diferenciação que estabelece a divisão de águas entre os posteriormente classificados pela crítica, como Romances da Primeira Fase e Romances da Segunda Fase. Em Ressurreição, romance da primeira fase da obra machadiana, nota-se que embora haja uma critica as relações baseadas em interesses econômicos, essa mesma se restringe apenas a parte nuclear das personagens do romance não se prolongando aos personagens periféricos.
Um fator que coloca a luz tal aspecto é que o vilão que é colocado como obstáculo ao desfecho da narrativa, na verdade não o é. A vilania é apresentada na narrativa para logo posteriormente ser desativada. O símbolo “intocavél” da Família não é questionado. Ao contrário, é afirmado. A crítica não atinge à vertebra da questão. Machado, nesta fase, ainda se baseia nos valores divulgados pela burguesia européia.

Não é o que pode ser observado quando em visita a obras como Memórias Postumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Nestes textos, o autor agora já imprime a ambigüidade de discurso que depois vem a ser uma das grandes marcas dos textos de Machado, ambigüidade esta, com força no contexto pragmático.
Pronto! Cheguei à ponta do fio. Retomo a partir daqui a exigida interpretação do que Machado de Assis quis elucidar ao citar Sêneca em seu conto. Schawrz, exemplifica com clareza a respeito da questão colocada por machado na comentar a obra de Flaubert

“A celebre aspiração de Flabert que queria escrever ´um livro sobre nada(...), um livro sem amarra exterior, inaugura também, embora noutra veia, a reconsideração sobre o cotidiano brasileiro no interior da obra machadiana (...)”

e continua

“ vejam-se mais algumas observações de Flaubert `As reflexões do autor [ da Cabana do pai Tomás] me irritam o tempo todo. Há necessidade de fazer reflexões sobre a escravidão? Basta mostra-la, e ponto (...)`”

O que Schwarz traz à crítica literária é a utilização de um recurso textual de critica em que a ironia não emerge à superfície textual, mas é alocada no próprio enredo do texto, sendo ativada somente pelo leitor. Ao concluir seu conto com a frase de Sêneca, frade esta que abriu este ensaio, Machado quis apontar a diferença entre a critica realizada em frases como as de Sêneca, que prescreviam normas de conduta, receituários morais em contraposição a uma reflexão do que de obtuso que se escondiam por trás do clientelismo, da aristocracia, do patriarcalismo etc.

Machado de Assis pormenorizada e apurava a dimensão não-burguesa da existencia burguesa no Brasil, e a estendia ao âmbito da convenção artística, na forma generalizadora da transgressão. Este passo se via facilitado elas evoluções anti-liberais que na europa começavam a emperrar em direção da ilegalidade assumida, evoluções de que era possível emprestar idéias e formas “adiantadas”. Em consequência, escravismo e clientelismo não são fixados apenas pelo lado óbvio, do atraso, mas pelo lado pertubador e mais substântivo da afinidade da tendência nova (...) (p185)


O ardor da espetada feita em Anedota Pecuniária, reside em uma ficção em que o produto não é apenas o que é vendido, no caso as sobrinhas, mas o próprio vendedor.

Bibliografia de referência

ASSIS, Machado de. Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884.

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1994. Vol. I.

ASSIS, Machado de. Ressurreição

SCHWARZ, Roberto, 1977. Ao Vencedor as Batatas, São Paulo, Duas Cidades.

SCHWARZ, Roberto 1990. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo, Duas Cidades.

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