quarta-feira, 30 de julho de 2008

Magnólia (Trecho)

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Marcia Tiburi
Madrugada

Desossar horas entre dedos

Fato 1. Duas gavetas fechadas. Não sei o que fazer com elas. Vou esperar as lembranças que vêm quando paramos no tempo.
Fato 1.1. Mapas. Um relógio de ponteiros parados. A chaleira de esmalte lascada no canto. Fotografias das bicicletas. Uma bicicleta. Tudo o que não foi usado está guardado no porão. Não há porão, só o espaço oco antes ocupado por minha memória. As gavetas.
Fato 1.2. O oco ocupa um vasto espaço.
Fato 1.3. Dentro do oco voam muitos pássaros e outros bichos de asas em meio à vertigem tormentosa dos objetos.
Fato 1.4. O gato está entre eles.
Fato 1.5. Magnólia ao lado do gato.
Fato 1.6. E manchas.

Escuridão

Tudo não passa de imaginação. Então é preciso saber o que se pode fazer com o mundo que insiste em ser real.

Os objetos, sobretudo os inúteis, têm um sentido e um gozo que tornam o resto da vida algo entre a falha e o risco no vazio. Prefiro-os aos seres humanos, aos artifícios, aos ofícios, aos saberes. Entendo-me com a natureza. A natureza, que se perceba, não passa de coisa, ainda que a coisa das coisas que ao ser coisa é, por força, o fundamento do mundo composto das coisas não mais que coisas e das coisas em si, das coisas de muitos modos ditas e das certamente esquecidas, das com lados, ângulos, seções, elementos, categorias, cores, temperaturas. Coisas há para confundir a qualquer um.

A fortiori.

Entendo-me com as coisas e, por isso, preciso colocá-las no lugar.

Tudo está disposto à confusão. O nada se diz de muitos modos e tenho só duas gavetas para dar cabo da questão.

Porém, como o nada é sorrateiro, diante dos sistemas e classificações quase evidentes, basta perceber, deve haver em algum lugar o abismo de olhos rígidos a pulsar prestes ao bote. Em uma das gavetas, é certo, mais que certo, um axioma, uma verdade das que tornam inerte a vida toda. É dele que vou falar mesmo sabendo que deveria calar.

Então, primeiro calo-me, mas não sei por quanto tempo. Um minuto, um segundo, um dia, um ano. Talvez o tempo exato do talvez que me alucina. E como há muitos modos de dizer o nada, e as duas gavetas e o sorrateiro abismo de olhos para o nada, existem os vários mundos e os modos de dizê-los, mas o que interessa aqui são os modos de não dizer e desdizer. Interessa amenizar a imaginação até que fique morta, pois tem me causado muita dor de cabeça. Direi para qualquer efeito de apenas dois dos mundos, o que se diz e o que se desdiz, a opção pela facilidade é sempre a mais sábia. E prestarei atenção em mim, antes do inventário dos feitos. Talvez em pouco tempo eu mude de idéia, pois a classificação tem um início, mas jamais tem limite.

Eu, pois e eu? Vivo sobre esta cadeira sem rodas. Já deixei de ser humana e virei coisa. Igualei-me ao ambiente. Não é difícil confundir o imóvel e o objeto. Mas classificar-me cansa como seguir Sócrates e seu conhece-te a ti mesmo.

Ninguém conhece a si mesmo.

Assim desosso as horas, ou, para evitar metáforas, espero.

Fato 2. Abro a primeira gaveta. Há um pacote de cartas amarelas.

Fato 2.1. As cartas são amarradas com um barbante sujo.
Fato 2.2. Penso duas vezes se abro ou não o pacote.
Fato 2.3. Não há endereço de remessa, nem remetente.
Fato 2.4. Não parece haver o que ler.
Fato 2.5. Aqui tudo pertencia a Magnólia. Agora talvez tudo me pertença.
Fato 2.6. Pena não haver tempo além das manchas.

Escuridão

Podemos empilhar o mundo no chão e tirar-lhe o pó de anos. Ora, não podemos saber se o pó é de anos, semanas, dias, não é possível interpretar os sinais, o a priori das conclusões sempre vem cheio de empáfia, por azar sempre existem cartas remetendo o tempo em letras. É preciso parar para ver.

Ou esquecer de vez, mas é impossível quando não houve lembrança.

É das cartas que vêm toda a dúvida sobre conhecer a si mesmo. Eu, porém, não tenho mais nenhuma dúvida, ainda que existam cartas e, como estas, tão incógnitas.

Se ninguém se conhece a si mesmo, pois esse é nosso maior problema, oportuno é procurar o próprio nada que sempre faz desistir de toda explicação. O nada é sempre guardado entre gavetas ou no fundo das xícaras onde se bebeu chá, café, nos cestos onde se deixou cair as folhas desusadas, os restos sujos de papel de bala. O nada reside nas coisas e somente elas podem oferecer o real desenho que faz de cada um ninguém.

Guardemos o nada para a hora inválida em que o todo inevitável fizer a verdade das verdades subir à tona decantando os avessos.

Quando houver tempo.

Para saber o nada basta olhar para minha cadeira sem rodas, o copo vazio, ouvir o miado do gato longe. Basta olhar-me. Não lembro dele. Lembrar jamais é fácil. Embora esquecer não passe tantas vezes de uma boa desculpa. Onde estou lembro apenas do cansaço como uma sensação que não se apaga e não diz mais do que o tempo indo em ondas camufladas.

Fonte: http://revistacriativa.globo.com/Criativa/0,19125,ETT1062738-4240,00.html
Fonte da imagem: http://croagfilliu.wordpress.com/2006/10/17/

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