quarta-feira, 2 de julho de 2008

Profanação: ato metafísico e democrático - Brevíssima análise de um detalhe na obra de Giorgio Agamben

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Revista Cult Junho 2007

A história da filosofia podia ser a história de sua terminologia, disse um dos filósofos mais críticos de que temos notícia, autor da obra Stichworte, termo que se traduz no que em português se expressa por “farpas" (1). Vilém Flusser disse algo parecido ao defender que não existem conceitos sem palavras e que, portanto, podemos ir direto ao que interessa (2). Palavras-Chave de Raymond Williams, publicado no Brasil há pouco, revela a mesma preocupação (3). Não é diferente em As Palavras e as Coisas quando Foucault conecta a vontade de dizer que se condensa na palavra à impossibilidade de dizer que está sempre do lado da coisa (4). Em todos os casos se trata de ter atenção à análise histórica dos termos nos quais se materializam idéias e conceitos, relações e intenções. Toda palavra é um sistema de pensamento inteiro e compactado. O fragmento na sua verdade sistemática e imediatamente expressa. Espécie de botão de flor do pensamento, mais do que semente.
Afim aos mesmos tons é o livro Profanações de Giorgio Agamben cuja edição brasileira recém nasceu (5). A começar pelo título, tem-se o exemplo do alcance que a análise de uma palavra pode oferecer em termos que superam em muito o estado de dicionário que um dia o poeta criticou – sem que a análise crítica sobre a verdade e a beleza do dicionário fosse sua questão - e alertam para o fato de que toda palavra carrega com ela um universo onde o lingüístico faz sua morada, o político. Não é a palavra apenas um nome vago que designa o mundo como o mero dedo de Crátilo que apavorava Sócrates ao apontar para as coisas destituindo a linguagem de sua função inaugural. A palavra é corpo que sobrevive à história e se revela a camada mais sutil de sua sedimentação. O poeta radical é o mago da palavra porque conhece a lei do seu funcionamento e promove a sua desarticulação na invenção da poesia. O filósofo, quando nasce, faz o mesmo para logo, em nome da dúvida, abandonar a poesia sempre ameaçada em virar certeza.
Dos enunciados de Agamben, sobressaem termos como gênio e magia, paródia e felicidade. Por meio de palavras, sem ater-se ao dado etimológico, ele procura a verdade dos conceitos e das ações. É o termo profanação o melhor modelo que evidencia o modo como a palavra - mais que roupa ou pele que reveste o conceito - é ela mesma que ensina a pensar e, nisto, desenha um método, um procedimento filosófico de descortinamento do objeto de análise pela atenção ao que lhe é mais superficial, seu nome próprio.
No capítulo Elogio da Profanação uma análise do verbo profanar a partir da definição do jurista romano Trebácio, põe o leitor diante da reunião da idéia e da ação concentrados na palavra. Profanar quer dizer devolver à esfera humana o que tinha sido sacralizado, o que fora separado dos homens. Profanar é, pois. restituir ao uso humano. É tornar comum. É repor o sacro à ordem da realização democrática. Agamben realiza a profanação filosófica com seu texto, mostrando que a boa filosofia é análoga ao gesto de restituição democrática. Ele facilita a compreensão, pela exposição do complexo. Não por torná-la rasa. Daí a diferença do que é filosofia e outros métodos possíveis.
O gesto da profanação envolve a posição democrática do “uso”. Agamben realiza a crítica do pior do jargão capitalista, o consumo. Só por tocar nesta seara Agamben desce com suas pinças eruditas à pocilga do pensamento e da ação para recolher pérolas. Com isto ele demonstra a verdade do seu método: profanar é falar do lixo, do resto, do banal, do que se tem como menor, do que dá vergonha e, todavia, mostrar seus profundos veios metafísicos e políticos, cujo conhecimento é o tom exato do seu significado. Profanar é romper com o mero gosto em cuja vigência a sociedade impede a expressão. É a profanação da linguagem que cria a literatura, a profanação da forma que cria a arte, a profanação da moral que cria a ética. A profanação dos conceitos cria a filosofia.
Uso X Abuso: dimensões da relação humana com o que existe
Que filósofo de respeito – leiamos com ironia - ainda poderia se envolver com a vulgaridade do jargão e ainda descobrir por meio de uma análise erudita – e destoante -toda a sua lógica? É assim que, para falar da forma do uso que designa a profanação, Agamben recorre ao cânone teológico do consumo como impossibilidade do uso fixado pela Cúria Romana em seu conflito com a Ordem dos Franciscanos que, no século XIII, reivindicava na lógica da “altíssima pobreza” a “possibilidade de um uso totalmente desvinculado da esfera do direito”, o uso de fato. É João XXII quem argumenta que o uso que se dá no consumo dos bens sempre é da ordem da propriedade. Tal uso se define no próprio ato de seu consumo, de sua destruição, de seu “abusus”. O consumo é a destruição da coisa e, por conseqüência, impedimento de seu uso já que a substância da coisa aniquila-se nele. O consumo é, portanto, algo que só existe no instante de seu desaparecimento. O uso, diferente do consumo, é o das coisas que não podem ser objeto de posse. O uso de algo que não se podia ter era uma contradição para o papa. Para Agamben, a verdadeira natureza da propriedade surge como dispositivo de deslocamento do livre uso dos homens para uma esfera separada que constitui o direito.
É neste ponto que o consumo como direito de posse tem relação com o sagrado como esfera das coisas que foram separadas do uso humano. A “infelicidade dos consumidores” do capitalismo, diz o ousado pensador, advém da incorporação da “não-usabilidade e da crença de que exercem seu direito de propriedade sobre os mesmos, porque se tornaram incapazes de os profanar”. Aquele que compra e consome, não usa.
Usar, por sua vez, é gesto que a sociedade ignorante de seus próprios símbolos, perdeu de vista. A criança usa palavras e coisas quando as transforma em brinquedos realizando o sentido da profanação. Ela evita a destruição pelo uso que se renova a cada brincadeira. A impossibilidade de usar é a mesma impossibilidade de profanar que surge como uma espécie de doença conceitual e emocional contagiosa que vigora em tempos de capitalismo dando-lhe sustentação. O fetiche da mercadoria se explica aí: o sacro é aquilo que separado torna-se santo, mas também escória e tabu, vide o significado do homem sagrado em sua obra (6). A filosofia que, desde seus primórdios se retirou da esfera do útil, do mero serviço, foi para poder morar na esfera do uso como brinquedo, como potencialidade, como profanação necessária do poder do pensamento que ao se sacralizar impede o pensamento livre pela proibição do novo modo de pensar.
A principal atitude que uma ética atual – aquilo que Agamben chama “tarefa política da geração que vem” - deve colocar em cena é a da profanação da religião do capitalismo de que fala Benjamin, da religião do espetáculo, da religião da pornografia, da política como corrupção, da religião da democracia banal, da religião da ciência, da universidade, de tudo o que se coloca como dispositivo para realizar o sonho do “improfanável”. De tudo o que quer sustentar o sagrado sem aceitar sua dialética com o que lhe nega.



(1) Adorno, Theodor. Palavras e Sinais. Modelos Críticos 2. Trad. Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995.
(2) Flusser, Vilém. A dúvida. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999.
(3) Williams, Raymond. Palavras-Chave. Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007.
(4) Foucault, Michel. As Palavras e as Coisas. Trad. Salma Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
(5) Agamben, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
(6) Agamben, Girogio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2002.

Fonte: Site da autora, Marcia Tiburi - http://www.marciatiburi.com.br/textos/profanacao.htm

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