terça-feira, 1 de julho de 2008

Os meus crimes de cada dia.

Ao caro leitor que por estas linhas venha a caminhar, peço a gentileza de ao final da leitura, organizar as idéias da maneira que melhor lhe fizerem sentido. É que em meu tatear cego e sem olfato precisei me quebrar em tantos pedaços, me desfiar em tantos gomos, que recompor a fruta que ardilosamente eu mofava dentro de mim exigirá deixar escorrer junto com o seu suco, a placenta e o feto de algumas de minhas dores; parir pelas mãos de dentro desse buraco negro todas as estrelas brutalmente azedadas nesse licor. Dedico este texto a todos os dizeres mortos no sepulcro de minha memória. Às minhas lembranças inventadas...

É o incômodo de uma dorzinha fina e sinuosa, daquelas que não mobilizam, dor de dente podre, que me trouxe mais uma vez a este espaço. Foi num escuro mais forte que toda a umidade de meus desejos, tropeçando sôfrega em minha solidão que encontrei em meio a bolores e gritos amordaçados, os cadáveres de meus delitos.  Com presteza admirável, na inquisição de meus anseios, joguei impiedosamente no saco da mesquinharia tantas gentilezas, carícias, afetos, açúcares... Convulsões... Que mesmo cobertas em musgo e fel ainda apresentam a baba estelar de suas explosões, o brilho quente e ágil refletido das mordaças de um pretérito imperfeito: elas eram a carne e os ossos de meu silêncio.

Todos os dias, como uma faxineira dedicada, eu cuidadosamente me prestei a limpar e alvejar o sangue de minhas palavras desossando-as ainda vivas. Servilmente, como um Judas reencarnado, entregava ao tempo, vampiro insaciável, a água vermelha que delas escorria. Tudo a que o dedo delator de meus medos me sussurrasse aos ouvidos. Um psicopata que justifica a sua covardia na crueldade da violência de seus atos. Embora paridas de meu ventre, não eram minhas as palavras que encarcerei. Eram de outros...

Tanto silêncio, tanta formalidade. Tantas armaduras... tantas máscaras! E passei grande parte de minha vida desfiando o tempo nos requintes desse masoquismo. Minuciosamente polia esse casco duro e áspero e bordava suas amarraras com a seda mole das fezes defecadas em dor no estrangulamento dessas vozes. O engraçado é que mesmo tão criminosos, ainda temos necessidade de tribunais. Nele, sentenciamos todos os nossos desafetos e, vendados com o pano rancoroso de nossos fracassos, os condenamos, engolindo-os, mastigados ao tempero pútrido de suculentas distorções. Ao fim, uma má digestão, o retorcer das lembranças, o orgasmo fingindo no vômito do ressentimento. Saímos loucos e vorazes, batendo em todas as paredes, em todos os espelhos, estraçalhando as mãos em nossos cacos, arrebentando nossos corpos nas lascas desses muros, num empenho inútil de destroçar em berros o desejo que temos do outro.

Só há espírito onde há sangue. A morte só existe dentro da vida. O contrário não é verdadeiro. Somente a consciência da morte a materializa. À natureza, não há nada além de transformações químicas. É o sangue que jorra de nossas paixões quem alimenta a vida e ao seu contrário. O que eu me pergunto é porque, se tantas vezes somos crentes da materialidade dessa fluidez, ainda sim enfiamos tanto sabão nas idéias? Porque tanto temor nas palavras? Se o maior tesouro de sua divindade vem do pecado original que elas carregam. Doutores em convicções demagogas, pintamos toda a fragilidade de nossa ignorância com o verniz de discursos apoteóticos. Eu sou a histérica de Freud! A todo o momento lavando as mãos, aflita em me alvejar de meus desejos. O medo do parto gera um outro, muito pior, um parto as avessas que chupa para dentro do útero estéreo do silêncio as frutas maduras dos afetos. Apodrece tudo ainda no pé, bicha até a raiz, e, por fim, após salgar a terra, amarela todos esses dizeres em gavetas velhas, vedando-lhes a boca com a imperfeição de pretéritos gerundiados...

Saber o quão pertencente a outrem é nosso silêncio, o faz, nos final das contas, um grande latrocínio. Eu sou a criminosa, a cúmplice e a maior de minhas vítimas.  

            

        

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