Era uma vez uma vontade de história...
Como aquelas com o cheiro de terra molhada
Cheiro do quintal de minha avó...
Onde tatus-bola constroem castelos invisíveis em algum tijolo misterioso
E o tempo passa devagar...
E eu não alcanço a fechadura da porta e tenho medo de subir no muro
Um muro muito gigante!
Infinito...
Mas que tenho certeza
Que, lá de cima, finalmente, eu teria a revelação de uma casa,
Casa caverna cuja porta é um buraco por onde somente crianças passam
E tudo nela é de luz e de botões
e de refrigerante e de chocolate e de coxinhas!
Era uma vez a língua das árvores e das flores
Era uma vez borboletas que não mais fogem de minhas mãos
(Sussurro)
“os vaga-lumes as convenceram de que também sou borboleta
com azas invisíveis e que moro em um jardim de amoreiras”.
Era uma vez uma história que trouxesse as coisas para o seu tamanho real
Em que tudo é tão longe e tão maior do que eu...
E, novamente, a sorveteria da minha casa é o melhor lugar do mundo!
Era uma vez um lugar em eu que só usaria rosa-cor-de-mamão
Mesmo o mamão sendo de outra cor
E os ladrões usam pedaços de pau como armas
E é só dizer “vivi” para desmorrer no mesmo instante
Nela, eu comerei ovo cozido com a gema mole,
Ouvindo minha avó cantar suas músicas estranhas
enquanto lava a louça do café
Teria uns dez filhinhos
Porque todos eram gatinhos
E não mais teria preguiça
Nem de trabalhar!
Porque seria cada dia uma coisa:
Um dia professora,
Outro dia bailarina,
Outro, policial,
E outro, uma mãezinha,
Era uma vez...
Então, minha avó viria me cobrir
E segurar as minhas mãos com suas mãos quentinhas
E os vaga-lumes que escondi no bolso
Viriam outra vez me levar
E eu, borboleta,
voltaria voando ao misterioso Castelo dos Tatus-Bola
em algum tijolo misterioso
de uma memória muito estranha,
(lembrança que se esquece)
mas que acorda no escuro do quarto
enquanto rezo,
com as mãos geladas
e o mesmo medo do escuro.
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terça-feira, 16 de setembro de 2008
sexta-feira, 11 de julho de 2008
Lembrar é essencial *
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Other |
Se esta pergunta é possível, a contrária também tem validade: haverá algo que devamos esquecer?
A memória é um enigma
Para os antigos gregos Mnemósyne era a deusa da memória, a mãe das nove musas que inspiravam os poetas, os músicos, os bailarinos. Seu simbolismo define que a memória precisa ser criada pelas artes. Numa civilização oral como foi a grega nada mais compreensível do que uma divinização da memória. A memória é a mãe das artes, tanto quanto nelas se reproduz, por meio delas é que mantém sua existência. Por isso, ela presidia a poesia, permitindo ao poeta saber e dizer o que os humanos comuns não sabiam. Que a memória seja mãe das musas significa que a lembrança é a mãe da criatividade. Mas de que lembrança se está tratando?
Para além da mitologia, na filosofia, distinguiam-se dois modos de rememoração: Mneme, espécie de arquivo disponível que se pode acessar a qualquer momento e Anamnese ou a memória que está guardada em cada um e que pode ser recuperada com certo esforço. A primeira envolve um registro consciente, enquanto a segunda manifesta o que há de inconsciente na produção de nossas vidas, ou seja, o que nos constitui sem que tenhamos percebido que nos aconteceu, que se forjou por nossa própria obra.
A memória era a deusa que permitia a conexão com os mortos, com o que já foi, com o que poderia ter sido, com o que, para sempre, não mais nos pertence desde que, com ele, não partilhamos o tempo.
Quando esquecer é uma culpa mal-resolvida
O atual modo de vida, pleno de elementos descartáveis, não privilegia a memória. O que se chama “consumismo” tem relação direta com o abandono e o descaso com a memória. Descarta-se tudo, de objetos de uso doméstico a amigos, de roupas a amores. O projeto ecologista da reciclagem é, de certo modo, um trabalho de memória. Na apressada vida urbana vige a regra de que tudo passa, o encanto pertence apenas à novidade, tudo vira lixo instantaneamente. A fungibilidade, a capacidade de trocar, é universal. Se tudo o que existe deve ser descartado, significa que sua existência não faz muita diferença. Esquecer assim, ou elevar o esquecimento a esta lei, é algo perverso.
Este gesto tem, porém, uma estranha e maléfica compensação. Numa cultura em esquecer é a lei, ressentir é inevitável. O ressentimento é a incapacidade de esquecer, impossibilidade de deixar de lado, de abandonar o verdadeiro lixo, ou, em outros termos, o passado com o que, nele, foi espúrio. Ressentimos porque não somos capazes de ver além, carregamos o sofrimento como gozo, ou seja, como o que, contraditoriamente, nos faz bem.
Por outro lado, o ressentimento é movido pela culpa de ter abandonado algo que, injustiçado, tempos depois, reclama sua volta. O ressentimento é um mal por ser fruto da culpa. A culpa, por sua vez, é como uma doença contagiosa da qual a humanidade inteira foi vítima, e ainda é, enquanto não aprende a compreender e aceitar suas próprias escolhas. A esta capacidade chama-se hoje responsabilidade. Mas mesmo com a responsabilidade é preciso tomar cuidado para que ela não seja um mero disfarce da culpa que ainda não eliminamos. Responsabilidade só é possível quando há solidariedade. Quando nos responsabilizamos não apenas por nossas vidas e atos, mas percebemos que somos apenas parte da vida e que muitas de nossas escolhas são coletivas.
Vantagens da memória e do esquecimento
Nietzsche, filósofo que morreu em 1900, dizia que a memória tinha vantagens e desvantagens na vida. É certo que quem quiser viver bem, quem almejar de algum modo ser feliz, deverá provar o equilíbrio entre lembrar e esquecer. Temos, neste momento, um problema de distinção: o que devemos esquecer, o que devemos lembrar? Na busca de um meio termo, mais vantajoso será guardar o que nos traz bons afetos, ou alegria e descartar o que nos traz maus sentimentos, ou tristezas. Motivos para a infelicidade não faltam a quem quiser olhar para a história humana e a história pessoal. Mas enquanto a memória histórica nos faz bem, pois nos mostra o que se passou para chegarmos até aqui, a memória pessoal faz o mesmo, mas ela só tem sentido se conectada à memória coletiva. Para poder buscar a alegria de viver é preciso olhar para a frente, para o futuro e reinventar a vida a cada dia. É esta invenção do presente que nos dará, no futuro, um passado do qual tenhamos prazer em lembrar. Viver do passado ou no passado, só prejudica o presente no qual, elaboramos o que será amanhã o passado.
Esquecer com criatividade
Diante do trauma, da lembrança que ficou recalcada em substratos profundos de nossa inconsciência, que define o ser e o agir sociedades inteiras, como o que foi vivido em catástrofes como a nazista, a do Vietnã, a da colonização e escravização no Brasil, e tantas que conhecemos nas vidas pessoais e familiares, esquecer torna-se um remédio contra o sofrimento. Mas esquecer não é apagar o que se viveu de modo abstrato, muitas vezes é justamente pela “rememoração” que nos lembramos. Por isso, contar histórias, fazer arte, ou seja, deixar-se levar pelas musas, continua sendo a melhor saída. A vida criativa é a única que evita o mau esquecimento e, por outro lado, a má lembrança que é o ressentimento.
* Publicado na Revista Vida Simples, Março 2007
Fonte: Site da Marcia Tiburi, a autora.
http://www.marciatiburi.com.br/textos/lembrar.htm
segunda-feira, 5 de novembro de 2007
A FLOR DE VIDRO
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Books |
Genre: | Literature & Fiction |
Author: | Murilo Rubião |
Da flor de vidro restava somente uma reminiscência amarga. Mas havia a saudade de Marialice, cujos movimentos se insinuavam pelos campos — às vezes verdes, também cin-zen-tos. O sorriso dela brincava na face tosca das mulheres dos colonos, escorria pelo verniz dos móveis, desprendia-se das paredes alvas do casarão. Acompanhava o trem de ferro que ele via passar, todas as tardes, da sede da fazenda. A máquina soltava fagulhas e o apito gritava: Ma-ria-li-ce, Marialice, Marialice. A última nota era angustiante. — Marialice! Foi a velha empregada que gritou e Eronides ficou sem saber se o nome brotara da garganta da Rosária ou do seu pensamento. — Sim, ela vai chegar. Ela vai chegar! Uma realidade inesperada sacudiu-lhe o corpo com violência. Afobado, colocou uma venda negra na vista inutilizada e passou a navalha no resto do cabelo que lhe rodeava a cabeça. Lançou-se pela escadaria abaixo, empurrado por uma alegria desvairada. Correu entre aléias de eucaliptos, atingindo a várzea. Marialice saltou rápida do vagão e abraçou-o demoradamente: — Oh, meu general russo! Como está lindo! Não envelhecera tanto como ele. Os seus trinta anos, ágeis e lépidos, davam a impressão de vinte e dois — sem vaidade, sem ânsia de juventude. Antes que chegassem a casa, apertou-a nos braços, beijando-a por longo tempo. Ela não opôs resistência e Eronides compreendeu que Marialice viera para sempre. Horas depois (as paredes conservavam a umidade dos beijos deles), indagou o que fi-ze-ra na sua ausência. Preferiu responder à sua maneira: — Ontem pensei muito em você. A noite surpreendeu-os sorrindo. Os corpos unidos, quis falar em Dagô, mas se con-ven-ceu de que não houvera outros homens. Nem antes nem depois. As moscas de todas as noites, que sempre velaram a sua insônia, não vieram. Acordou cedo, vagando ainda nos limites do sonho. Olhou para o lado e, não vendo Ma-ria-lice, tentou reencetar o sono interrompido. Pelo seu corpo, porém, perpassava uma seiva no-va. Jogou-se fora da cama e encontrou, no espelho, os cabelos antigos. Brilhavam-lhe os olhos e a venda negra desaparecera. Ao abrir a porta, deu com Marialice: — Seu preguiçoso, esqueceu-se do nosso passeio? Contemplou-a maravilhado, vendo-a jovem e fresca. Dezoito anos rondavam-lhe o corpo esbelto. Agarrou-a com sofreguidão, de-se-jan-do lembrar-lhe a noite anterior. Silenciou-o a convicção de que doze anos tinham-se esva-ne-cido. O roteiro era antigo, mas algo de novo irrompia pelas suas faces. A manhã mal des-pon-ta-ra e o orvalho passava do capim para os seus pés. Os braços dele rodeavam os ombros da na-mora-da e, amiúde, interrompia a caminhada para beijar-lhe os cabelos. Ao se aproximarem da mata — termo de todos os seus passeios — o sol brilhava intenso. Largou-a na orla do cerrado e penetrou no bosque. Exasperada, ela acompanhava-o com dificuldade: — Bruto! Ó bruto! Me espera! Rindo, sem voltar-se, os ramos arranhando o seu rosto, Eronides desapareceu por entre as árvores. Ouvia, a espaços, os gritos dela: — Tomara que um galho lhe fure os olhos, diabo! De lá, trouxe-lhe uma flor azul. Marialice chorava. Aos poucos acalmou-se, aceitou a flor e lhe deu um beijo rápido. Ero-ni-des avançou para abraçá-la, mas ela escapuliu, correndo pelo campo afora. Mais adiante tropeçou a caiu. Ele segurou-a no chão, enquanto Marialice resistia, pu-xando-lhe os cabelos. A paz não tardou a retornar, porque neles o amor se nutria da luta e do desespero. Os passeios sucediam-se. Mudavam o horário e acabavam na mata. Às vezes, pensando ter divisado a flor de vidro no alto de uma árvore, comprimia Marialice nos braços. Ela assus-ta-va-se, olhava-o silenciosa, à espera de uma explicação. Contudo, ele guardava para si as razões do seu terror. O final das férias coincidiu com as últimas chuvas. Debaixo de tremendo aguaceiro, Ero-nides levou-a à estação. Quando o trem se pôs em movimento, a presença da flor de vidro revelou-se ime-dia-ta-men-te. Os seus olhos se turvaram e um apelo rouco desprendeu-se dos seus lábios. O lenço branco, sacudido da janela, foi a única resposta. Porém os trilhos, paralelos, su-mindo-se ao longe, condenavam-no a irreparável solidão. Na volta, um galho cegou-lhe a vista."
Fonte: http://www.meguimaraes.com/imagensepalavras/arquivo/001017.html
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