domingo, 13 de maio de 2018

Se não for dormir cedo
Se não tomar o remédio
Bicho papão vai pegar você
Vai pegar você
Vai comer você
E você vai chorar bastante
Vai chorar bastente
Lembrando que bicho papão
Não existe
Que bicho papão não existe
Lembrando que você não é mais criança
Não é mais criança
E por isso precisa tomar remédio
Tomar remédio
para dormir
Para dormir
Senão o bicho papão vai pegar você
E você vai chorar bastante
Lembrando
Lembrando
Lembrando...
A gente vive em um mundo em que te dizem para ter grandes e/ou lindos sonhos, mas sem criar nenhuma expectativa. Se não são as expectativas o que nos move, o que nos motiva então? As vezes penso que eu só precisaria de um pedacinho de futuro, só um pedacinho... Para ter o direito de criar alguma expectativa.

Esta


Para a poeta que escreveu no passado A Outra

Esta
A que em mim agora habita
não quer mais ser a Outra
todos os dias
(somente alguns)
quer ser apenas esta mesma
ainda sabendo que
não se é
somente
passagem de si

Esta
A que em mim habita
já se sabe
corpo
e dança
por fora
e por dentro
E já sabe que as manchas
que derrama no papel
socialmente
ditas
grafia em preto
são na verdade
seu mais profundo
Vermelho.

Esta
A que em mim habita
ainda aborta afetos
e sozinha
agachada ao banheiro
Mas também pari orgasmos
do encontro com si mesma
lambuzada de seu próprio ungüento.

E já sabe se amar, pois já envelheceu falsas esperanças
E já  sabe brincar, pois aprendeu a ser criança
E já não tem medo de amar
pois se ainda não sabe onde ir
(e quem sabe?)
curandeira e guerreira de mim
Já tem força e sabe
onde não ficar.

Eu, passarinho



Quando um beija-flor
espalha a semente na terra
ele não teme que a semente que sem saber carrega
não venha a nascer.
Sem medo
só mels
espalha e fecunda novos destinos.
E a beleza de seu voo e de seu próprio destino não depende das sementes que não nasceram por que cairam no concreto.
Assim será esse destino que caiu em mim ao me sugar:
flor, mel
e voo .

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Benção

"E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou." Gênesis 1:27
***
Era um novo encontro e eu, como sempre, repetitiva. Era de novo comer a maçã proibida e depois enfiar o dedo na goela para vomitar.
Era a cobra se enfiando em mim e o sangue que me coalhava. 
Era  sua língua sugando o meu pouco antídoto, era eu achando que tinha algum antídoto...
Eu encontrei um corpo, foi o meu. Eu o encontrava e me desfazia. No meio chorava. Era eu num querer sem fim.
Eu encontrei o outro e ele me mostrava: o medo que eu tinha dele e eu fugindo de mim.
Eu me debati em minha própria fundura e foi você. E me encontrei como a lua se encontra n'água: ao que se vê, se afoga em sal.
Era uma febre após o veneno da picada, era o sangue de Cristo naquela taça. Era eu morrendo e renascendo.
Era uma benção e uma maldição: 
era ser filha de Deus e costela de Adão.
Quem me protegeria de minha própria carne ainda que misturada à sua?
Que benção seria tão poderosa para que o fogo daqueles lençóis não me cozinhasse? Ein?
Que maldição seria tão agourenta que me desse um destino sem medo de me dissolver em barro, matéria realmente tua e minha?
Era um novo encontro e eu, como sempre, repetitiva. Era de novo comer a maçã proibida e depois enfiar o dedo na goela para vomitar.
Era eu enfeitiçada pela maça e apaixonada pela cobra. Era o sangue do filho de deus descendo pela garganta até o coração.
Era eu te benzendo ao que me amaldiçoava.

***
"No princípio criou Deus o céu e a terra.
E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.
E disse Deus: Haja luz; e houve luz.
E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas."
Gênesis 1:1-4
#VYG

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Talvez

Um poema em diálogo com uma música:

Talvez

Talvez eu quisesse provar
que o amor é possível
mesmo a nós
as filhas de Lilith
mesmo a nós...
as filhas de Lilith
Lilith:
a que de tão forte
não foi sequer nomeada
apenas
apagada sua história
Nós
que como ela
não se fez feia
nem bela
nem semideusa
nem deusa
que se fez...
o amor por si mesma
Lilith
e a sinceridade de um corpo
belo e monstruoso
pés em garras
sexo que não se esconde
-
demônio
anjo mal
fera
-
FORTE
-
Contudo...
talvez eu quisesse provar
que o amor é possível
também a nós
as filhas de Lilith
mesmo a nós...
as filhas de Lilith
E recusar o presente
de minha mãe
- o de não ser amada
em troca de penetrada -
e não negociar
com nenhum
Deus
ou semideus
ou nenhum homem
ser só
em si
o amor por si mesma
mas as vezes
talvez...
eu quisesse provar
que o amor é possível
mesmo a nós
as filhas de Lilith.
A música é essa aqui:
"Sinto que os deuses têm medo de mim
Medo de mim
Metade homem, metade deus e os dois
Sentem medo de mim[...]
*Lilith: em alguns mitos, a primeira mulher criada por Deus antes de Eva.
"Lilite foi criada por Deus com a mesma matéria prima de Adão, porém ela recusava-se a "ficar sempre por baixo durante as suas relações sexuais".
". Ao mesmo tempo que ela representa a liberdade sexual feminina, também representa a castração masculina."
Fonte: Enciclopédia livre Wikipédia.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Semente vermelha

O horário
O salário
O atraso
O filho
O cansaço
A esposa
As regras
O cigarro
A nicotina
A secura
do peito
O rio retesado
Um pouco acima do pulmão

O prédio não era tão alto
O salto
A rigidez que encenava
em vermelho desfeita
escrita em silêncio
no chão

Era água
80% água
Água e sal
As regras lhe proibiam o que era doce
A cidade tão grande
A São Paulo tão grande
Tanta água…
para o Nordeste não
Parecia tão seco
Parecia o patrão do filho
Eu nem ia muito com a cara dele
Quantos de nós
Encobrimos as rachaduras
Da represa que contemos
Sedentos
Por fora secos
Quanto erro!

E o que era seco?
Parecia seco
Agora água e vermelho
Tantas regras
Homem duro
Agora água
Voo do prédio
O nado
para fora da secura
Homem duro?
água ao chão
(não era com a terra o seu encontro
a queda da semente
agora água o rosto finalmente
e molha
o concreto
quase impermeável
da cidade)