sábado, 26 de março de 2022

Projeto de vida

Faz algum tempo que percebo que caminhamos em uma sociedade do projeto. Você tem de ter todas as direções de suas ações e seus sentimentos devidamente mapeados, afinal, você tem um projeto de vida a cumprir. Não cumpriu as metas do projeto? Fracasso. 


Ao mesmo tempo, vivemos a sociedade do fracasso. Não conseguimos mais seguir projetos individuais e dependemos o tempo todo de outras pessoas e seus sentimentos aleatórios. Então, fracassamos. Projetos são previsões de futuro, que ao dependerem de outras pessoas mas não pressupor-las, fracassa. 


Dessa forma, parece que não é possível escolher o quê sentimos baseados em projetos de como estaremos daqui dois anos. Eu não consigo saber onde estarei daqui dois anos. 

Talvez ninguém nunca teve os seus sentimentos baseados somente conforme um projeto de vida para daqui a dois anos. 

Percebo que, no meu caso, eu me sinto culpada por sentir de um modo que não seja em direção para onde quero estar daqui dois anos. 


Essa neblina social extrema parece esfregar algo em minha cara que é: os meus afetos estão fadados ao "agora". 

Eu desejo saber onde quero estar daqui dois anos ainda. Talvez porque ter um planejamento de futuro seja um compromisso com o agora. Uma espécie de contrato em que se diz subliminarmente "Quero que esse agora continue e entrego meu futuro em garantia disso". 


O fracasso parece fazer a todos nós caminhar em um agora sem garantias. A qualquer momento você estará na floresta e poderá ser atacado. Por isso, a ansiedade e a síndrome do pânico parecem ser também sentimentos tão comuns atualmente. Estar o tempo todo em alerta adoece. 


Em uma sociedade em quê os laços sociais parecem estar afirmados unicamente em uma penhora do nosso projeto de futuro, como lidar com uma crise que nos obriga a nos segurar no quê temos no agora? Sem garantias, relações baseadas somente na solidariedade mais primária, como as relações por afinidade? 

Lidar com a angústia contemporânea parece ser caminhar no escuro e escolher apenas a quem queremos dar a mão para caminhar com a gente. Será?

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Pés e Asas

 Já faz tempo que devo esse texto a vocês. Hoje em dia, olho para vocês, que é dois, como eu e lembro que por muito tempo eu fiz de tudo para esconder vocês. Eu tive tanta vergonha de vocês, eu transava de meias para esconder vocês. 

Eu olho neste exato momento para vocês e não consigo mais ver o que aquela Outra via de feio. No máximo, a cicatriz do tornozelo direito, que me gerou muita dor física. 

Eu quero dizer agora: nunca houve nada de errado com vocês. Não é que eu aprendi a amar vocês, meus pés, como são. É que eu consegui me livrar daquela máscara terrível que tampava meus olhos e inventava um mundo onde sereias devem ser devoradas pois são monstros. 

Sereias só são pessoas com calda. 


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Oi,

Espero que a carta tenha feito você se sentir bem. A mim, chegou tarde demais. 

Você sabe o quanto eu aguentei para que pudesse realizar seu maravilhoso sonho de fazer faculdade? E depois, de dançar?

Eu doía mesmo. Era o mínimo que você tinha de compartilhar do que eu sentia. 

Você me escondendo enquanto eu te carregava para lá e para cá nas costas! 

Folgada!

E nada nunca estava bom. Incrível. Eu cheguei a lavar o chão de sangue em nome do seu capricho por dançar perfeitamente. Porque, né? Dançar só por dançar não parece bom para a dona obcecada pela aparente perfeição! Aff!

Se eu fosse até a lua e dos fios de sua luz lhe fizesse asas para voar, ainda assim era bem capaz de você ensacar tudo em uma meia esburacada e só voar escondido.

Será que podemos somente curtir a partir de agora?  

 É o mínimo que nós merecemos. 


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Pensei em ficar em silêncio depois do que me contou. Meus pés, mas que é um também, pois é o equilíbrio na dubiedade. 

Eu talvez realmente ensacaria em meias furadas as minhas asas caso vocês as me dessem. Eu jamais as rejeitaria entretanto. Eu nunca as rejeitei. Amar escondido é um modo de ser livre. Covarde pode chamar. Às vezes, porém, o único modo possível. 


Ser livre pode ser uma afronta em certos ambientes. Se eu fui tão obcecada na perfeição, é que isso parecia ser o único modo de caminhar sozinha. E, trouxe sim novos modos de pisar. Eu alonguei vocês, meus pés. Eu os tornei mais fortes. Mais ágeis.  Não nego o sofrimento de vocês. 

Se fui cúmplice na dor que passaram, também fui a espiã que libertou a nós três.

Voar a luz do dia é curtir o voo. É também saber da guerrilha que será ter de voar contra os estilingues. E também saber que será preciso se posicionar contra as gaiolas de quem tanto nos ama e nos quer nelas.


Poderia perguntar a vocês: estamos preparados? Mas isso não existe. Nunca estaremos preparados, no máximo com boa estratégia. 

É assim que as histórias reais começam. 



domingo, 2 de janeiro de 2022

Se eu fosse criar uma história de amor perfeita


Era uma vez… Alguém que me fizesse companhia; que me acolhesse; que me assumisse. O que é me assumir?

É desfilar publicamente comigo? É ter em aberto a possibilidade de projetar futuro comigo? 

Era para ser uma ficção isso aqui. Um dia eu fui à padaria e um rapaz interessante puxou assunto comigo. Eu fiquei com vontade de continuar conversando com ele. Depois sutilmente ele acessou meu corpo e transamos. E foi maravilhoso. E queríamos mais. 

Passamos a conviver e eu podia fazer coisas legais com ele. Talvez seja só isso. Parece monótono, mas nada é monótono na América Latina, no Brasil, sendo uma pessoa pobre. Não faltaria assunto e aventura pela menos.

Por outro lado, nenhum plano parece possível, eu não consigo escrever uma ficção de amor. Até ia mudar o título para "uma história de amor imperfeita". Não ajudou a tentativa de mudança. 

Eu nem mesmo consigo assumir o desejo de ser publicamente amada. Eu venho aqui e pela escrita tento rascunhar notícias de meu desejo. 

Do que eu tenho medo? 

Um dia o rapaz interessante lhe disse: gosto de você, mas nem tanto. Ela se desfez em lágrimas como quem tenta regar uma planta seca e fazer que volte à vida pelo excesso de águas que agora deposita nela. 

Há muitos jeitos de ser gostada, não deveria doer. E não dói. Porque essa é uma história perfeita de amor. O rapaz da padaria mora dentro do meu coração e o medo que o protege não permitirá jamais que eu fale de modo amistoso com rapazes interessantes em padarias.

sábado, 27 de novembro de 2021

Pena de mim?

 Algumas pessoas, muitas, na verdade, ao me conhecerem, agradecem a Deus por não ser eu. 

Eu já provei pelo menos uns 4 tipos de orgasmo diferentes mesmo com menos dedos. E já havia comprado meu primeiro imóvel aos 30 anos de idade, ganhando menos no mercado de trabalho. 


Assediada por 80% dos boy sem deficiência, criei meu filho sem homem na responsabilidade comigo. Terminei os estudos antes que uma boa parte das pessoas sem deficiência, vinda de família pobre. 


Eu achei por muito tempo que eu deveria ter inveja de pessoas com seis dedos a mais do que eu.


Hoje eu estou fracassando na carreira, na compra da casa e nos estudos e acho que é o que todo mundo está fazendo independente da quantidade de dedos.


Só que agora eu conheço mais uns 6 tipos de orgasmo.  Entre eles 

escrever e fazer pirraça. 


As pessoas não deviam sentir culpa por ter pena de mim.


Eu já sinto culpa por ter tido pena de mim por eu mesma. 

E eu não sinto culpa por ter pena das pessoas sem deficiência. 


Só gostaria que sentissem de pena de mim com os motivos certos: 

que é eu não conseguir mostrar o dedo do meio porque não tenho. E por não conseguir assoviar. 


Eu sinto pena de vocês por não conseguirem mostrar o dedo do meio quando isso é necessário. 

Também sinto pena quando deixam de dançar por acharem que dançam mal.  E quando acham que o prazer de vocês depende das mãos de outras pessoas.   


Ah, também sinto pena por terem unhas esquisitas, 

sendo sincera.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Quem eu serei em seis anos

Eu queria ser essa que eu sou hoje só que há seis anos atrás. Para evitar os problemas que eu tenho hoje. Só que é exatamente os erros desses seis anos o quê me formou em ser quem eu sou. É um paradoxo. 


Eu queria ter dito que eu poderia ser solidária com quem fosse, mas não com minha casa. A casa é minha extensão de corpo, ser solidária parece ter sido esconder o medo de eu ficar a sós com esse corpo. 


Eu morei com algumas pessoas, quase todas sem deficiência física. A casa nunca esteve tão limpa quanto por mim. Eu achava que eu precisava das pessoas para isso acontecer.


Gostaria de ter me perguntado há seis anos atrás porque eu deixo a imagem de uma incapacidade que eu nem testei me fazer acreditar que todos em minha volta podem fazer coisas a mais do que eu.


Eu queria saber naquela época é que minha imagem às pessoas importa sim. Mas o quanto eu preciso investir em mim para sobreviver?

É verdade que ser uma pessoa com deficiência demanda mais gastos, no meu caso. Porque eu lembro o dia em que eu caí na rua e por ser uma pessoa com deficiência me deixaram no chão. Na chuva.  

Pessoa com deficiência física é pedinte se está no chão. E pedinte quando pede ajuda, pode ser ignorado. 

Saber quem sou no mundo e saber que essa narrativa não é minha me faz planejar o quanto eu quero investir para não sofrer violência. Para ter minha voz respeitada. E em quê eu quero colocar dinheiro e energia para isso acontecer.

Eu queria saber naquela época que meu consumismo é fruto do medo de ficar no chão na rua de novo 

E não uma loucura da minha cabeça.


Queria me avisar naquela época a segurar minha ansiedade em ter de dar conta de urgências alheias. Urgências essas que dava conta por achar que preciso mais das pessoas do que elas de mim.  


As pessoas me dizem há muito tempo para eu aguentar coisas que só eu darei conta.  

Eu queria saber, há seis anos atrás, que as coisas dão errado. E as pessoas escondem que deram errado. Elas não aguentam necessariamente. E que eu posso errar e eu posso voltar atrás mesmo em grandes escolhas.

Há pouco tempo, duas pessoas me culparam por eu ter feito o que elas mesmas aconselharam. As falas foram de que eu não fiz do "modo certo". Bom, se eu relutava em fazer, era porque não me sentia preparada. Em um dos casos, o que deu certo posteriormente foi fruto do meu primeiro erro.


Talvez eu não seja uma mulher de "meios termos", mas use esse lugar como defesa

um lugar de ponderações que

eu não preciso fazer

nem agora

nem há seis anos atrás. 

há seis anos atrás.



É só um relato para alguma Outra-Eu, que esteja na fase do que eu era, 

há seis anos atrás

e para os próximos seis anos.


quinta-feira, 15 de julho de 2021

Ejaculação precoce

Vez ou outra vem na cabeça fazer uns versinhos

Só para levar os boy pra cama

Na lábia

Pelos dedos...


O problema é que mal começo 

a escrever

já começo a gozar.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Degustação de tintos

 A tudo merecerei se estiver 

atenta.

Se estiver AQUI.

***

(mas como 

não ter medo

da gula sabendo que o mais sábio

dos deuses foi também

aquele que comeu 

os próprios filhos,

o Tempo?)


Se ainda é doloroso

mastigar minhas memórias

é também um banquete 

eu sei

sentir você em minhas fibras:


Somos D.E.l.I.C.I.O.S.O.S

Decifro-me e devoro-te.