sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Ancestralidade



O meu corpo tem a ancestralidade dos monstros
Que se cobrem diante do sol
E encobrem de terra a nudez

Dos que  desnudam  a terra a quem nela se posta nu
e lavam de vermelho
Pois só em branco querem o mundo
Escalpelando a vista
De toda a pele não lhes for espelho
O meu corpo tem a ancestralidade dos monstros
Que em fogueiras arderam
E nomeadas sempre
A aberração de um avesso
Por criar dentro do corpo
O que na Bíblia só a um Deus sem útero
elegeram
Por serem as únicas a conseguir devolver
Não apenas a costela
Mas corpos inteiros
O meu corpo tem a ancestralidade dos monstros
Que em torres flertam as ciganas
Ainda que ciganas também sejam
E com suas corcundas fortes
desafiaram distraídos
até mesmo o desenho de seu corte
e retorcidos na carne
trazem ainda o dom
de deformar a quem lhes toca
e todo o desejo
pois deles já sempre nascerá
inominado paradoxo
destino insolúvel
trazer em si
ser ao mesmo tempo anjo e demônio
os únicos a anunciar pelo corpo
 a inteireza que aos demais
enterram em seus peitos
só se é se aos dois foram
a integridade só existe no defeito
a maldição e dádiva são
em serem a atração e o seu reverso
quem goza com um monstro
esconde a todos
o lobo que mora em si
em pele de cordeiro
A minha ancestralidade tem fina pele
Última película
Mas é  a dos monstros
E que eu termino de arrancar
Para não haver dúvidas:
uma vez monstro
Monstro me quero
Sem eufemismos
Flor despetalada
Poeta que escreve sem dedos.  

domingo, 7 de setembro de 2014

Letra arrendada



Comprou minha vida e eu não sabia
Pois meu nome não registrei
No chão que sonhava minha vida
Minhas pegadas
E minha sombra
Em troca de arrendamento
Subtraídas
Comprou minha vida e eu não sabia
E a fiança do que eu mesma financiei
Era letra periférica
Sem rubrica de ser minha
Tinta marginal
Sem cabimento
Nas escolhas
Da não-escolha do dia
Desmemória de quem não se queria errante
E por delicadeza não gritou
As raízes que fazia
Comprou minha vida e eu não sabia
Encaixotada a humilhação
Do que sem nome
Ressentia
Culpada de todas as incertezas que perfurei
Nas paredes alheias sem nome
Do que sem nome eu sentia
E não dizia
Comprou minha vida e eu não sabia
Emprestou seu nome à minha paz
e a renomeou conforme lhe convinha
na garganta o amor se misturava
ao desamparo
letra muda em afasia
Comprou minha vida e eu não sabia
Meu tempo em contrato palavra
Palavra que fiei
Na solidão de minha agonia
Perante a indiferença que a olho nu
Eu via
Dava por desentendida
E quanto menos queria incomodar
Mais meu chão eu sedia
E iludida comemorava
A terra que eu nutria
Ainda que a todo tempo sem nome
Classificada e recortada
Sempre e sempre
“ a hóspede”
E nestas terras
Haveria alguma alforria
Mas estadia é só letra vigente
A quem compra o próprio nome
O meu eu arrendei
Lendo analfabeta
As páginas do que não lia
Achando que essas coisas de nascença
De nós é inseparável
Ao espólio de outros impossível
Que não a quem de si acredita ser a própria vida
E logo veio a cobrança
A penhora da dignidade recolhida
descobri
Que sem nome
a escolha feita
estava nas entrelinhas
era vender a minha ida
Pois comprou minha vida
E eu não sabia.
Problema meu que não sabia.  

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Sobre mães e não-escolhas


Já ouvi por muitas vezes que a vida é uma questão de escolha. E muitas vezes já ouvi que tudo depende do meio em que se vive. Não gosto de pensar que não há escolhas. Mas acho extremamente perigoso retomar a questão das escolhas como algo unicamente individual. Temos escolhas quando as temos. E minha experiência diz que temos escolhas em dois contextos: quando temos dinheiro; quando temos apoio e nos sentimos seguros com nós mesmos e com esse apoio. Agora, pensar escolhas sem apoio é querer lavar as mãos com quem precisa de nós – Liberalismo; e é jogar quem está à margem em profunda  solidão. E isso é sim social, posto que coletivo.  Eu lia uma matéria sobre coletivos de mães que se ajudam no cuidados de seus filhos. Para poderem trabalhar e ter uma renda melhor; para não criarem subempregos a outras mulheres; para estabelecerem redes de solidariedade. Ou seja, como mulheres e mães, nós temos de mobilizar toda nossa vida para cuidar dos filhos. Temos de muitas vezes, ter nossa renda reduzida em gastos com escola, babá, empregada, etc. Temos de morar perto das escolas dos filhos, pagar aluguel mais caro, aceitar empregos com rendas menores e com horários mais flexíveis. Mudamos de cidade, de casa, de roupas, de dieta, de horário de dormir, aceitamos maridos folgados e violentos, aceitamos morar com gente que não queremos... por nossos filhos. Eu tive de ver seriamente a possibilidade de ver minha renda ir pelo ralo para pagar um aluguel mais caro, pois não conseguiria mudar o Gabriel em duas escolas. E faz duas semanas que estou com ele na casa da minha mãe por falta de moradia e já estou tendo de ME VIRAR para mudar esse contexto e rápido. Daí eu vejo um monte de homens afirmar que “poxa, seria um ótimo pai, mas...” : “moro longe, tenho emprego com horários que não permitem, tive de me mudar, adoraria, mas....”, pois afinal, a escolha parece ser dada só a um lado. Temos escolhas quando as temos. Em alguns contextos, a falta de escolha é nomeada de “comodismo”, “instinto materno”, “covardia”. Em outros contextos, a escolha é nomeada por falta de escolha: “briguei com minha ex”, “meu emprego é longe”, etc. Escolhas...   

Expeculação imobiliária

Houve um momento em minha vida em que desejei ser folha descolada do galho. Ao vento, sem raiz, sem chão nem terra acertada. A vida me deu voos livres, mas breves. E logo depois, flor eu era, não folha, fui fecundada. Então a vida me colou ao chão e costurou-me em raízes tão fortes e profundas, que nem todas as inundações que arrebentaram de meus olhos conseguiram arrancá-las. Que nem todo o sal destas águas conseguiu impedir que se fortificassem. E eu maldisse as chuvas que me hidratavam. E ao sol que meus veios nutriam. Pois ao solo cada dia mais me afincavam. Com o tempo, com o caule grosso e a vista alta, não mais distinguia a terra de meu sangue e minha pele da paisagem. Foi quando vieram os tratores. E rasgaram-me da terra. Com tanta força que saí deixando à mostra metros e metros de raiz. E sangue. Um novo parto. Eu, útero de mim. A fórceps. E caída fiquei por um tempo, mas ainda de pé apesar de desterrada. E nesse dia soube que não mais queria ser folha, eu era agora copa florida e pesada, eu carregava semente e era responsável por ela e pela sombra de onde estava. Aos tratores, contudo, minha história pouco importava. E mais uma vez vieram. Eu agarrei-me a terra com toda a minha força. Desta vez, porém, as raízes ainda que grandes, estavam frouxas, na terra ainda não tinham se enfiado inteiras. E eu caí. E caíram todas as folhas. E seiva viscosa secou diante do de um novo sol sem sombra. E senti o concreto me enterrando viva. Fiquei apenas em minhas folhas, já que do solo, fui abortada. Sigo agora sem destino, as vezes em círculos de redemoinhos... À procura de um novo solo em meio à especulação imobiliária paulistana e seus corações inférteis em cimento petrificados.