terça-feira, 24 de outubro de 2017

Benção

"E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou." Gênesis 1:27
***
Era um novo encontro e eu, como sempre, repetitiva. Era de novo comer a maçã proibida e depois enfiar o dedo na goela para vomitar.
Era a cobra se enfiando em mim e o sangue que me coalhava. 
Era  sua língua sugando o meu pouco antídoto, era eu achando que tinha algum antídoto...
Eu encontrei um corpo, foi o meu. Eu o encontrava e me desfazia. No meio chorava. Era eu num querer sem fim.
Eu encontrei o outro e ele me mostrava: o medo que eu tinha dele e eu fugindo de mim.
Eu me debati em minha própria fundura e foi você. E me encontrei como a lua se encontra n'água: ao que se vê, se afoga em sal.
Era uma febre após o veneno da picada, era o sangue de Cristo naquela taça. Era eu morrendo e renascendo.
Era uma benção e uma maldição: 
era ser filha de Deus e costela de Adão.
Quem me protegeria de minha própria carne ainda que misturada à sua?
Que benção seria tão poderosa para que o fogo daqueles lençóis não me cozinhasse? Ein?
Que maldição seria tão agourenta que me desse um destino sem medo de me dissolver em barro, matéria realmente tua e minha?
Era um novo encontro e eu, como sempre, repetitiva. Era de novo comer a maçã proibida e depois enfiar o dedo na goela para vomitar.
Era eu enfeitiçada pela maça e apaixonada pela cobra. Era o sangue do filho de deus descendo pela garganta até o coração.
Era eu te benzendo ao que me amaldiçoava.

***
"No princípio criou Deus o céu e a terra.
E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.
E disse Deus: Haja luz; e houve luz.
E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas."
Gênesis 1:1-4
#VYG

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Talvez

Um poema em diálogo com uma música:

Talvez

Talvez eu quisesse provar
que o amor é possível
mesmo a nós
as filhas de Lilith
mesmo a nós...
as filhas de Lilith
Lilith:
a que de tão forte
não foi sequer nomeada
apenas
apagada sua história
Nós
que como ela
não se fez feia
nem bela
nem semideusa
nem deusa
que se fez...
o amor por si mesma
Lilith
e a sinceridade de um corpo
belo e monstruoso
pés em garras
sexo que não se esconde
-
demônio
anjo mal
fera
-
FORTE
-
Contudo...
talvez eu quisesse provar
que o amor é possível
também a nós
as filhas de Lilith
mesmo a nós...
as filhas de Lilith
E recusar o presente
de minha mãe
- o de não ser amada
em troca de penetrada -
e não negociar
com nenhum
Deus
ou semideus
ou nenhum homem
ser só
em si
o amor por si mesma
mas as vezes
talvez...
eu quisesse provar
que o amor é possível
mesmo a nós
as filhas de Lilith.
A música é essa aqui:
"Sinto que os deuses têm medo de mim
Medo de mim
Metade homem, metade deus e os dois
Sentem medo de mim[...]
*Lilith: em alguns mitos, a primeira mulher criada por Deus antes de Eva.
"Lilite foi criada por Deus com a mesma matéria prima de Adão, porém ela recusava-se a "ficar sempre por baixo durante as suas relações sexuais".
". Ao mesmo tempo que ela representa a liberdade sexual feminina, também representa a castração masculina."
Fonte: Enciclopédia livre Wikipédia.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Semente vermelha

O horário
O salário
O atraso
O filho
O cansaço
A esposa
As regras
O cigarro
A nicotina
A secura
do peito
O rio retesado
Um pouco acima do pulmão

O prédio não era tão alto
O salto
A rigidez que encenava
em vermelho desfeita
escrita em silêncio
no chão

Era água
80% água
Água e sal
As regras lhe proibiam o que era doce
A cidade tão grande
A São Paulo tão grande
Tanta água…
para o Nordeste não
Parecia tão seco
Parecia o patrão do filho
Eu nem ia muito com a cara dele
Quantos de nós
Encobrimos as rachaduras
Da represa que contemos
Sedentos
Por fora secos
Quanto erro!

E o que era seco?
Parecia seco
Agora água e vermelho
Tantas regras
Homem duro
Agora água
Voo do prédio
O nado
para fora da secura
Homem duro?
água ao chão
(não era com a terra o seu encontro
a queda da semente
agora água o rosto finalmente
e molha
o concreto
quase impermeável
da cidade)

sábado, 23 de abril de 2016

“você não está só”

Escrever como quem 
compartilha um segredo

E até
pode parecer que escrevo como quem 
pede socorro
que escrevo como quem 
se entrega
que escrevo  
para me vitimizar

mas escrever 
“você não está só”
e colocar em uma garrafa e jogá-la ao mar
à espera de que chegue
não a um salvador
não a àquele bom homem que olha o mar e talvez se sinta só
não a um grande amor 
não a um filho
não a um grande chefe de Estado
e nem a um antigo chefe de trabalho
não a uma heroína ou a um herói
e nem ao Nobel da Paz de algum momento da história
não a um poeta ou poetiza
e nem às musas e  deuses de suas inspirações

mas
àquele ou àquela 
que também 
naufraga
que como eu não sabe o que esperar
mas se importaria muito em saber
que ainda não enlouqueceu

nesta solidão.  

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Sobre divisões e saber ouvir


O texto abaixo, que era pra só um pequeno relato de uma situação e virou um textão é uma primeira tentativa de falar sobre o que não gosto.... Tem erro de escrita, tem sono, tem comparações absurdas, mas tem diálogo.
Hoje, na saída da Prainha Branca, de volta à São Paulo, um dos hospedes do local chegou às minhas amigas e disse: “ah, eu sou fisioterapeuta, seria muito bom ela fazer uns exercícios para fortalecer os braços…”. Ao que uma delas disse: “pode falar diretamente com ela. Ela inclusive fala muito, fala pra caralho” (risos). Então eu me liguei na conversa e respondi: “sim, eu comecei a fazer pilates há uns três anos, estou fazendo capoeira e///////
CORTE
O senhor continuou conversando com as minhas amigas como se eu não tivesse ali.
A intenção dele com certeza era boa. Mas/
CORTE
(novamente)
Esse peculiaridade de não ser ouvida não é “privilégio” só meu.
Muitas pessoas, ao lidar com mulheres, negras e negros, lésbicas, sem teto, indígenas, etc, na melhor das intenções em salvar-los, melhorá-los, apontar como poderíam ser melhores - como fez o tal do fisioterapeuta - reproduzem o mesmo comportamento dele: silencia quem deveria “ajudar”. Orgulhosos de nos “salvar” de nossa condição, de mostrar inclusive nossas contradições (“mas mulher também é machista!”), acabam simplesmente não nos ouvindo.
As divisões sociais - capitalismo, patriarcado: racismo, machismo, elitismo, capacitismo, adultismo - existem a muito tempo e desde muito antes de os que me leem aqui nascerem. O que eu quero dizer com isso? Que fomos socializados a reproduzir essas divisões e não a enxergá-las. É tão natural ser tratado com humanidade que não enxergamos quando o outro está sendo desumanizado.
E não só. Além de não enxergar, somos socializados a encobrir.
Como pessoa com deficiência física, por exemplo. eu passei e passo a maior parte da minha vida tentando justificar as situações de desumanização que acontecem comigo:
“- Ah, mas o tipo de deficiência que eu tenho…. há casos em que o cognitivo é afetado”
“- ah, ele ficou com tanta vergonha que não conseguiu continuar a conversa com a interlocutora correta.”
“Ah, mas…”
Não basta a gente, como minoria, sofrer a desumanização. O que já é em sim bem pesado. Tem que ser cordial também. Mas a gente não quer lembrar 24 horas por dia que é um corpo fora de lugar.
***
Sim, por que eu estava fora de lugar ali, num camping que só se chega por trilha, com todos aqueles jovens-corpos-padrão. Nada ali era adaptado a receber pessoas como eu. No caminho mesmo, eu já senti que quando pessoas com deficiência saem do circulo paulista, a situação muda totalmente. Esqueça a pessoa com deficiência física bem vestida da Berrine, com empregos em grandes empresas, pois são as únicas obrigadas a ter cotas. Apaga isso, já! No ônibus, ao subir, havia catraca antes dos bancos e que atrapalhava a minha locomoção. Mesmo a entrada de traz sendo adaptada, o motorista deixou eu me virar pela frente. O ônibus começou a andar e eu sem ter muito onde me segurar, falei alto, para que todos me ouvissem: “alguém poderia ceder lugar a uma pessoa com deficiência?” Um rapaz, lá no fundo do ônibus cedeu. Eu não conseguia chegar, o ônibus havia começado a andar. Pedi a ajuda a ele mesmo para conseguir.
Todos ali me olharam como se eu fosse um ET. Ninguém se moveu. Ao mesmo tempo, era como seu eu me comportasse de maneira inabitual. Ter deficiência e viajar sozinha, ter deficiência e saber pedir os meus direitos de maneira segura. Eu não ocupava o papel de coitadinha. E ainda falava de maneira segura? Com certeza todos ali entenderam como rude.
***
Uma boa parte da minha vida, eu consigo levar sem lembrar que sou um corpo. O que eu quero dizer? A gente só lembra de uma parte de nosso corpo quando machucamos aquela parte. E ninguém quer esse tipo de lembrança.
Quando nós, que fazemos parte de alguma minoria relatamos nosso sofrimento, as peculiaridades desse sofrimento, o que estamos fazendo é abrir diálogo. Parece o contrário? Sabe por que parece o contrário? Por que, para algumas pessoas, apontar divisões é muito parecido com fazer divisões. Logo, com ataque pessoal. Estrutura social e ataque pessoal tem uma diferença gritante.
Se o fisioterapeuta que eu relatei fosse meu amigo de facebook, com certeza ele iria se sentir ofendido. Ainda mais por que eu trouxe a situação a publico. Por não tê-lo “repreendido” em privado. Mas toda vez que acontece algum tipo de situação assim, eu tenho que jogar a situação para o público. E politizar. Para retira-la da exceção, do privado, da idiossincrasia. E faço isso exatamente para ABRIR DIALOGO.
ABRIR DIÁLOGO
Como minoria, abertura de diálogo não pode ser passar por cima de nossos próprios sentimentos. Não é errado eu me sentir mal com a situação descrita acima. Não podemos achar que devemos entender o outro antes mesmo de nos sentirmos humanos. Para eu me sentir humana, eu tenho que achar que é normal eu me sentir mal em não ser ouvida. Que a situação não é normal. Não foi a primeira vez que aconteceu uma situação assim. É recorrente. No almoço da empresa em que trabalhei, o garçom perguntou ao meu chefe o que eu ia beber. Ele só respondeu sem entender: “pergunta para ela, ué?”. E o garçom perguntou para mim, mas sem NENHUM constrangimento. Quando eu preciso pedir ajuda para subir em ônibus - quando são muito altos - já aconteceu da pessoa me machucar. Eu pedi para a pessoa me dar uma mão e o “grande herói” foi me pegar no colo.
Além de passar pela situação em si, as pessoas esperam das minorias que elas sejam MELHORES. Que passemos por cima de nossos sentimentos. Que não sejamos humanos…ops!
SETIMEN
/CORTE/
T
/CORTE/ CORTE/CORTE
Que acordemos todos os dias felizes e dispostos a dar nossa aulinha grátis sobre nossas diferenças, mas só com situações fáceis de degustar e propiciar a maravilhosa sensação de
sou uma pessoa misericiordiosa-com-essa-alejada-mas-ia-ser-tão-bonitinha-com-essa-carinha- tadinha?
Ou então
tá mal humorada por que é mal resolvida?
Pessoas com deficiência física e mulher têm de ser fortes, inteligentes, arrumadas, tudo o quê conseguirmos ser para REPOR
REPOR
REPOR
REPOR
nossa FALTA
E em qual linguagem nós minorias fomos educadas? Em qual espaço dessa linguagem poderíamos nomear quem somos se tudo o que somos não está nomeado?
Se nomeamos, ofendemos, se não nomeamos, não é possível dialogar!
Diálogo não é ausência de conflito. E quem está machucado, com certeza está mais arredio. Com toda a razão. RAZÃO, não DESCONTROLE. Razão em de alguma forma retirar do silêncio o que lhe dói. Dói mais por que é SOCIAL. Não é PESSOAL. Jogar para o pessoal é só mais uma forma de afirmar que a situação é uma exceção, um exagero, NÃO EXISTE. Além de pedir para ignorar os próprios sentimentos, isso cria em quem sofre situações de opressão a ideia de que os seus sentimentos são LOUCURA. Gaslighting.
As perguntas que poderiam e vir depois da negação de situação de opressão por parte de quem sofre, de quem vê e de quem faz é:
“Não seria exagero se sentir mal com isso?” - diminuição da importância dos sentimentos de quem sofre a situação.
“Você não é alto confiante o suficiente para lidar com isso” - pressuposição de que todo dia uma pessoa que passa por situações difíceis deva acordar bem e achar normal ser tratada como um vaso de plantas.
“Pra que expor isso?”- retirar a situação da esfera política e jogar para o âmbito da exceção, ignorando toda a conjuntura social que leva as pessoas a agirem como agem.
Ao escrever e falar sobre capacitismo, machismo, racismo, heteronormatividade, quem está na situação que envolve a opressão está apontando são as divisões sociais já existentes. É exatamente a tentativa de que deixem de existir. É ABERTURA DE DIÁLOGO.
- Olha, quando você tenta me ajudar subestimando minha capacidade - intelectual e física - eu me sinto mal, pois sempre vi pessoas em situações como eu com alguém falando por elas ou em espaços relacionados a hospitais e comportamentos repulsivos em relação ao corpo delas. Eu posso e vou falar/escrever e quero ter a liberdade tanto de que os espaços sejam adaptados a pessoas como eu, como que eu possa testar estar nos espaços fora da sua concepção de mobilidade.
Seria simples, não? Mas não é.
Aliás, formular um possível dialogo ai em cima já em si algo bem difícil de fazer. Eu raramente consigo, sendo sincera.
Para não magoar a pessoa, para não constranger, por a pessoa não vai entender… Enfim, silêncio.
As pessoas estão tão acostumadas a não ver mulheres, periféricas, negras, indigenas, pessoas com deficiência, trans, mães, lésbicas, se posicionando, que transformam esse estranhamento, esse MEDO DO OUTRO, em defesa. Esquecem talvez que o nosso mundo não gira em torno de suas histórias, mas, de vez em quando em torno de nossas histórias: por isso é um debate político e não pessoal Também perdem a oportunidade de saber quem são elas mesmas nesse diálogo.
Quando eu me volto a pensar na minha situação, tenho a oportunidade de olhar esse outro, pessoa sem deficiência, como o meu espelho invertido. E não meu opressor.
As pessoas, na melhor das intenções, falaram tanto sobre o que deveria ser para repor o que sou, que o que sou nunca foi olhado como algo inovador. Eu sempre me colei a imagem de alguém que tem de superar algo - aflição, aflição, aflição! -, assexuada, mente maravilhosa, corpo joga fora.
Eu não tenho como fugir do meu corpo.
E eu não deveria sentir desejo de fugir dele.
Fui recentemente assistir um espetáculo de dança, Proibido Elefantes, com a maior parte dos dançarinos pessoas com deficiência física. O mais impressionante é que as coreografias não eram “pessoas com deficiência se superando”. Eram os movimentos deles mesmos, só que coreografados. Quem assistiu, teve a certeza de que eram dançarinos ali. E não “cotas especiais” (chamo de cotas especiais quando colocam pessoas com deficiência para fazer qualquer coisa só por fazer, designando tarefas abaixo da capacidade dela) . Pessoas sem aqueles corpos específicos não conseguiriam reproduzir aqueles movimentos. Foi o que eu achei mais impressionante. Tanto que eu não consegui descrever a uma amiga o que eu vi. Não dava. Seria como tentar traduzir algo que só tem naquela língua. Lingua essa que eu tinha acabado de conhecer.
Com certeza esse espetáculo só foi possível a partir da abertura de dialogo e de olhar entre pessoas com e sem deficiência. De políticas de adaptação de espaço para que pessoas com deficiência pudessem circular em espaços para além de hospitais. Para que pudessem ser vistos ou imaginados para além de hospitais…
Agora, troquem pessoa com deficiência por ser mulher, negra, lésbica…
E nos perguntemos se realmente queremos divisões ou queremos acabar com elas.
Essa é a escolha que proporcionará que linguagens totalmente novas possam ser criadas.

segunda-feira, 21 de março de 2016

Direito de resposta

Em uma das aulas de faculdade, na matéria de Análise do Discurso, minha professora, Norma Discini, falava sobre a ideia de concessão. Muitas pessoas dizem ser muito flexíveis e não ter preconceitos (todos temos), mas a verdade é que o que governa seus afetos é a lógica da concessão. O que isso quer dizer? Que elas “aceitam” maneiras de viver diferentes da sua só que só sob ressalva: “apesar de”. Assim, por exemplo, dentro dessa lógica, a aceitação do Outro é sempre parcial 
“apesar de fulano ser gay, eu o tenho como amigo”
“apesar de ser morador da favela, é trabalhador”
“apesar de ter deficiência física, é…” (eu não vou preencher aqui pq dói demais!) 
Nesse tipo de discurso, o da Concessão, o outro é aceito não pelo que o caracteriza prioritariamente, mas por ser a exceção dessa mesma categoria. Assim, é exatamente pelo que saio da ideia de pessoa com deficiência física, é no que sou aceita. O pré-conceito continua lá. A ideia que essa pessoa tem a respeito dessa categoria - pessoas com deficiência física - continua lá. 
Essa semana com os acontecimentos políticos e o afloramento dos ânimos a respeito da posse de Lula e da possibilidade de impeachment da Dilma - a lógica da Concessão veio à tona sem véus. Fotografias nas manifestações em que moradores de ruas, negros, mulheres, pessoas com deficiência física são ridicularizados vieram a público sem o menor pudor. Memes em que o desconhecimento a respeito do nome de um filosofo em um pais de educação precária e analfabetismo funcional também (não apenas na direita a Concessão vigora, ein?!). 
Na realidade, as pessoas NUNCA aceitaram CORDIALMENTE esse Outro que tanto exaltam tolerância. Elas aceitavam a presença desse outro - o diferente - naquilo em excediam em exceção. 
Entre os maravilhosos memes que circularam - e aliás, faz algum tempo já circulam - mensagens de apologia ao estupro da presidenta e piadinhas com a mutilação do dedo de Lula, dizeres em que a pessoa resume pessoas que votaram em Dilma a iletrados e, logo, como eleitores ilegítimos - fizeram parte do circo de horrores.
De todos essas pérolas, claro, atingiram a mim diretamente os memes de apologia ao estupro e ridicularização de pessoas com deficiência - memes citando a mutilação do dedo de Lula. 
A mim ficou claro que sempre essas pessoas odiaram mulheres e pessoas com deficiência. Eu sou apenas a Concessão de seus discursos. 
Eu sou o meu corpo. Ninguém merece ser estuprado e o estupro é uma violência que só tem lógica no corpo das mulheres. A “falta” que gera o riso no caso da mutilação de Lula - pior ainda, pois foi resultado de um acidente que envolve dor física - é a mesma que instauram sob mim. 
Claudio Botelho, diretor de uma peça de teatro em São Paulo, gritou ao público abertamente: "O ator que está em cena não pode ser peitado por um negro, por um filho da puta que está na plateia.”. Para ele, sempre foi e sempre será inadmissível que um negro esteja na mesma categoria que ele. Aos que fazem parte de seus afetos, regerá sempre a lógica da Concessão: “negros que se comportem como brancos”. 
A quem acompanha o que escrevo ou convive comigo sabe que falo muito pouco a respeito das questões que me atingem com relação a deficiência física e às consequências da agressão que discursos capacitistas têm e terão em minha vida. Da instauração dessas faltas socialmente criadas.
Quando pessoas saem as ruas e sem vergonha nenhuma xingam negros por serem negros, mulheres por serem mulheres, gays por serem gays, pobres por serem pobres, iletrados por serem iletrados, o que elas estão fazendo não é um mero insulto individual politicamente incorreto. Ao afirmarem de maneira aberta discursos do senso comum, manifestam terem como pressupostos esses discursos. Para eu rir de alguém por essa pessoa ter olhos pretos, é pressuposto que acho inferior a pessoa ter olhos pretos. 
A lógica da concessão todavia parece funcionar apenas quando os que foram “aceitos” se mantém em seus lugares sem fala afirmativa: na marginalidade. A partir do momento que passam a reincidirem voz ou a obterem, os ânimos se exaltam e a lógica da Concessão vem abaixo, independente de fatos políticos de FlaXFlu. 
Para uma grande parte das pessoas, não é o “fora PT” o que move sua indignação. O “fora PT” é apenas o último estágio de desejos não declarados em dizer: “fora analfabetos, vadias, imprestáveis - leia-se pessoas com deficiência física e/ou moradores de rua -, pretos, traidores de classe (classe média branca letrada de esquerda)”. Por isso o horror em se desnudar o que sempre esteve presente só que sob o manto da cordialidade. 
Em resposta ao meme com a mão de Lula sem o dedo mutilado, em resposta às imagens de Dilma com as pernas abertas, em resposta aos memes satirizando a musa do impeachment (ou vocês acham que eu não iria citar os “coleguinhas de esquerda”?), por aquilo que os caracterizam em seus corpos e classe de minorias - mulher, pessoa com deficiência, saio do meu lugar de concessão e marginalidade para afirmar:
eu tenho maos com três dedos que escrevem
uma boceta que cria pessoas e mundos inteiros
e a bosta que sai pelo meu anus não vira meme de internet, nem texto escrito, ou abortos de mundo. Pois, para criar memes e textos e mundos eu tenho:
maos com três dedos que escrevem
uma boceta que cria pessoas e mundos inteiros
Não há falta nenhuma em mim. A única falta que há é o vazio desses discursos que não se manteriam sem instaurar faltas onde não há.

quarta-feira, 2 de março de 2016

O tempo da história e o tempo da nossa história



Ontem eu assisti um vídeo feito por meu filho em um dos ensaios do grupo de dança que participo. Antes de abrir o vídeo, não sabia, tinha duas expectativas: que não gostaria de ver o modo como eu danço, mas que não estranharia ver minha imagem no vídeo. Digo que não sabia dessas expectativas, pois foi a inversão delas o que me causou estranhamento e então eu soube que era o que eu esperava encontrar. É muito aflitivo a gente perceber que as mudanças históricas demoram séculos a acontecer e o tempo da nossa vida é muito curto em relação a esse tempo. Vai demorar muito tempo até alguém como eu olhar o próprio corpo fora de um álbum  de compêndio médico. E eu sei que esse tempo vai além da minha vida. É nesse momento que eu me pergunto: por que querer voar se já estou suspensa? Sinto-me paralisada diante da questão. O tempo é implacável e nem todos têm a opção de fugir do próprio corpo - e entendo quem o faça, como entendo…

Começo a sonhar a queda, já que a suspensão é angustiante demais para me manter e o voo está longe demais para alçar. É bom esclarecer que não é um desejo de superação de nada. Não há nada a ser superado. Quando as luzes se apagam e eu fico a sós com a solidão dessa condição, projeto uma sombra turva sobre os olhos e parece que consigo enxergar um aceleramento no tempo, como se senhora Chronos um pouco eu me tornasse. Ansiedade. Queda. Alguma liberdade. Um corpo em um álbum em branco. Incompleto, vazio, incógnito. Mas, pelo menos, que não fosse mais um compendio médico.  Tempo, tempo, tempo… como eu gostaria que deixasse pelo menos eu escrever a primeira letra de uma história de vanguarda.  A queda como parte de uma dança. O voo deixando de ser a norma da coreografia.