quinta-feira, 18 de março de 2021

"Será que ela não se enxerga?"

Pode o subalterno não se sentir subalterno?


Pode o subalterno desejar? Por inteiro?

Pode o subalterno sentir por inteiro?

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Sentir números

 Olhar o corpo de uma ideia, foi a primeira vez que vi materializada minha ansiedade. E ela fala em línguas. Números.


Abrir uma planilha e sentir. Não existe linguagem lógica. Os números ali desenhavam meus dias escorrendo em juros.


Amortizações decrescentes juros bebendo em meu pescoço e reproduzindo como células de um câncer. 


A minha ansiedade têm dentes feitos zeros arredondados, mas afiados. Que se escondem por trás de siglas. Abreviações que expandiram a  zero a esquerda que eu me sentia.  Como quem ficou pra trás depois de cansar de nadar.

.

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Por isso, sinto tanta falta de ar.

Estava me afogando pelas bordas do sonho de uma casa própria.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Ancestralidade

Eu apenas planto sementes.

Coloco num vaso de terra, aguo e espero.
Nenhuma das sementes que plantei nasceram.
Nenhuma.
O vaso parece só conter terra há meses.
E por isso colocam coisas por cima dele.
Jogam bitucas de cigarro.
Eu vou e retiro.
E molho.
Talvez o sal da água ainda faça a terra dali infértil.
Mas eu sei que um dia alguma das sementes naquela terra podem brotar.
E que se nenhuma das sementes que plantei brotarem, ao menos a terra estará fértil
para outras sementes
ou para alguma muda de planta.
A muda contará a todos sobre a herança que cultivei.
Ainda que ninguém escute.

sábado, 18 de julho de 2020

Valor de uso, referencial vazio e corpo desviantes


Um dia desses apareceu para mim como sugestão de leitura um texto sobre a relação entre o ato de comer animais e o modo como as mulheres são consumidas em nosso sistema de consumo.
Era um texto bem simples que fazia uma comparação entre o ato de observar um pedaço de carne retirando o seu sentido de “cadáveres de animais” e o corpo da mulher como algo a disposição para ser “comido”, consumido. 
Um termo utilizado e que achei realmente interessante é o de referencial ausente. Quando pensamos em uma pessoa ou objeto, esse pensar não é algo etéreo e sem matéria: é algo aterrado em referenciais. Isso quer dizer que precisamos ter em mente uma referência real para entendermos o que temos contato. 
O que faz olharmos uma cadeira e sabermos que estamos diante de uma cadeira? A quantidade de pernas? A função de sentar? Como conseguimos ver uma cadeira de três pernas e outra de quatro pernas e interpretarmos ambas como cadeiras? E como diferenciamos um banquinho de quatro pernas e uma cadeira de quatro pernas? 
A nossa visão passa por referenciais de mundo que consegue classificar tudo o que nos rodeia por analogia. 
Ao voltar ao tema corpos e carne já tendo em mãos o conceito de referencial ausente, ficou mais claro perceber como sou vista. 

O texto diz o seguinte:
A função do referencial ausente é manter a carne separada de qualquer ideia de que ela era um animal. As mulheres são referenciais ausentes em nossa cultura também, sendo vistas como um corpo a ser consumido e usado pela publicidade e de muitos outros modos. A teoria feminista é importante, porque nos ajuda a entender o modus operandi de como as opressões estão interligadas. O livro mostra como os animais são consumidos, literalmente, e como as mulheres são consumidas, visualmente, através de acesso sexual de seus corpos estupráveis.

Dessa forma, somos vistas como hologramas vivos, isso quer dizer, seres sem uma história válida, seres sem narrativa. Nossas dores e prazeres passado e expectativas de futuro não existe. Uma grande amiga em conversa sobre o assunto relações afetivas entre homens e mulheres, disse uma coisa muito interessante, que a relação que homens estabelecem com mulheres é a de eterno recomeçar. O que isso quer dizer? Que a relação que estabelecem conosco é como se fosse sem memórias e sem história. Se nos magoaram em algo e nos encontram em outro momento, agem como se toda a história construída anteriormente conosco nunca houvesse existido. Como se nossos corpos não fossem capazes de reter narrativas, apenas somos “deliciosas”, ou úteis ou inúteis. 
Por isso mesmo, após nos violentarem ou nos magoarem, podem conviver conosco como se nada tivesse deixado marcas reflexivas. 
Obviamente, esse tipo de relação de uso - valer somente enquanto gerar algo útil - não é sempre aberta. Mas, para alguns tipos de corpos, esconder que existe uma relação de uso apenas é quase dispensável. Como um bicho menos valorizado, mulheres com deficiência física parecem entrar nesse último grupo. 
O que eu reflito sobre isso é que há uma pressuposição de disponibilidade em relação à nós. Como se de alguma forma houvesse a garantia de que somos corpos disponíveis. Conforme a frase de Elza Soares sobre pessoas negras, somos tratadas como uma das “carnes mais baratas do mercado”.
Hologramas não menos desejáveis como poderia se pensar, somos apenas aparentemente mais disponíveis de se obter e, por isso mesmo, tratadas conforme uma precaridade de trocas. 
A pergunta que fica é como podemos nos empoderar dentro do universo afetivo? Talvez dissociando afeto e sexualidade. A sexualidade seria dessa forma absorvida por encontros casuais. Entretanto, é o tipo de encontro que coloca mulheres já em situação de vulnerabilidade ainda mais em risco (temos o dobro de chances de passar por abuso sexual). 

Ou, abdicando da sexualidade e centrando os afetos em relações de parceria e amizade. 

*Revista Estudos Feministas: Uma teoria feminista-vegana: a política sexual da carne 

domingo, 10 de maio de 2020

Virtualidades

Os seus dedos
Tateiam
e trabalham
frenéticos
e suaves
sob teclas
sobre teias...
friccionam e
massageiam
imagens
e carnes... (o desejo sempre foi uma virtualidade)
Os seus dedos
percorrem
sem tocar
(sem me tocar)
Os seus dedos
estão longe demais
do que me penetra

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Mulher com deficiência

Eu sou
“aquela”
aquela
mulher com deficiência
em ser troféu
de igreja ou provedor
Eu sou
“aquela”
aquela
que “apesar de”
sorri
e chora
e goza
e também luta
útero prenhe
de luz
como qualquer outra
Aquela
que é
frágil
no que lhe destinaram heroína
e forte
no que lhe queriam
silêncio
e “mal resolvida”
Aquela
feita
de instante e fotossíntese
realizada
apesar de.
Flor
de pétalas
deformadas
e néctar de formato
perplexo
e orvalhado
das gotas que escorrem
por toda a sua pele
Aquela
que se serve
do próprio dito defeito:
Ter nascido
corpo-constrangimento
encarnação do "erro" de Deus
pecado meu
aos olhos dos homens
(como sempre!)
E mais pecadora ainda
em ter aprendido
por eu mesma
a ser perfeita
não por obra de um milagre
ou reza
perfeita
para todo aquele e aquela
que espera mais do que
o tédio
de um Deus
que só projeta beleza
na simetria do previsível
paraíso que só existe
na cura de um amanhã
Eu sou
“aquela”
“aquela”
filha do erro divino
em não seguir
a lógica dos homens
encarnação do pecado de Deus
em me fazer
"assim"
por puro capricho
Aquela
que não é sua imagem e semelhança
e está sempre e apenas sendo
ela
aquela
que pari e renasce
todo dia
do próprio útero
e com meus poucos dedos
de minhas próprias escrituras.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Encontro

 quanto mais as pessoas negam meu corpo
mais o procuro
é por meio dessa matéria - corpo - que eu sinto o mundo
e por meio desse sentir que construo o quê penso
alguém dizer para mim que eu venci meu corpo
e querer que eu transcenda meu corpo
é destruir minha inteireza
é me jogar numa busca ainda mais incessante desse corpo
dessa minha máquina de sentir e pensar
Esperar que eu supere meu corpo
que eu dê algo em troca da falta que transferem ao meu corpo
inventar poderes mágicos para ele
em volta de uma falta que não existe
só para disfarçar o incômodo com uma suposta falta
minha,
só me devassa mais
como todo mundo eu também quero saber
o que as pessoas acham que eu sou
e quem sou eu em meio a tantos espelhos
distorcidos
O quê posso querer ser...
Mas
eu não poderia ser mais bonita se
(não tivesse deficiência física)
eu não sou feia por causa da
(deficiência física)
eu não sou mais inteligente para compensar
(minha deficiência física)
nem mais psiquicamente forte
As fibras que compõem meu cérebro têm
igual ou maior limitação que boa parte das pessoas
e eu não estou me expondo mais
eu estou me impondo com mais ferocidade apenas
se eu não posso ser "normal"
então serei a minha detalhada invenção
de anormalidade
eu não estarei mais somente nas
descrições e fotos de livros médicos
nem somente na categoria de pornografia bizarra
Eu não serei a esposa de um homem
misericordioso e muito preocupado
E sim
A antipatologia de um corpo
A antipornografia de um tesão
A minha grafia ontológica
A minha detalhada invenção em naturalidade
eu existirei deliciosamente
para fora de mim
como uma invenção minha
pelo menos em alguma medida
e os livros médicos não serão a única referência possível
da existência de pessoas como eu
E
não sinta dó de mim
seu amor me assedia quando você vira as costas
e eu penso em ceder
mas lembro que
não preciso disso
que você não é mais feliz porque tem mais dedos
e nem eu lembro disso quando os boletos chegam
mas eu lembro bem que
as mulheres não são mais felizes porque têm um homem
e nem eu serei se tiver um
eu só ando querendo me ter
que foi a minha primeira subtração pelo mundo
então
eu invento
com muita naturalidade
não me incomodar com o quê inventam sobre mim
sobre meu corpo
Jogo fora alguns santinhos não requisitados
Assim que viram as costas
E escrevo um poema
com mais uma parte de meu retrato-falado e novas invenções