Este texto é sobre muitas coisas, todas dentro do
rótulo “ser mãe”. Ele deveria ter sido feito aos poucos, pois para
cada item do título, houve uma porta arrebentada ou uma perna quebrada na
tentativa de. Talvez pudesse ter
escolhido o título “Por quê sou feminista”. Mas é exatamente a relação entre
causa e efeito a matéria mesma que me leva a escrever e não só o feminismo.
Sobre ser jovem e mulher
O dia em que meu filho foi concebido eu havia retirado
minhas camisinhas da bolsa. Sempre andava com camisinhas comigo, contudo, minha
mãe disse que “andar com camisinha era coisa de vagabunda” e, embora eu
soubesse que ela estava errada, preferia não passar novamente pelo
constrangimento de falar sobre algo que a mim era tão íntimo e pessoal. Eu não
tinha nenhum pretendente em vista e não queria “ouvir mais nada”.
Eu tinha 21 anos, morava há quatro anos na Universidade de
São Paulo e estava entre o discurso libertário de “faça sexo quando tiver
vontade” e o “começa com sexo, depois acaba nas drogas”. Mas a liberdade sempre
me foi um tema de vida, um ferver de sangue pela face, um arrebatamento diante
de uma juventude até então besta. Ir rumo à liberdade era um destino. E não
haveria nada demais nisso, caso a liberdade fosse um objeto claro e palpável e
não um fóssil soterrado em meio ao engendramento de discursos há séculos e
séculos apresentados como “naturais”. É
natural mulher fazer sexo por amor, é natural que deficientes físicas sejam
assexuadas, é natural que quando não são, o interesse é vindo de um amor
verdadeiro. E então, houve o samba e algo natural aconteceu...
Aquele dia minha melhor amiga e eu resolvemos ir a um samba.
Ao meu primeiro samba. E lá, havia o boto (rsrs!). A noite, a música, tudo me
deslumbrava. E, de repente, dois rapazes lindos puxaram assunto, chegaram
junto. Minha amiga é uma mulher bonita, pensei, até aí, tudo bem. Foi quando o
mais bonito do lugar, um deles, beijou-me. O beijo virou uma carona pra casa. E
uma multa, por estar na garupa da moto sem capacete, um mal-estar. Na casa Dela, continuamos o iniciado no
samba, mas eu ainda me sentia culpada pela multa que o rapaz levara. Eu sentia
culpa e acreditava que precisava ressarci-lo de algum modo. Afinal, faze-lo ir até ali, levar uma multa por minha
causa, arriscar-se sem nada em troca... Sim, foi exatamente isso o que
aconteceu. Até o exato momento de escrita deste episódio eu menti para todos:
não, a camisinha não saiu! O que houve
foi um maldito discurso de “começou, termina”, “se não queria, porque o levou
para casa”, etc. Um maldito discurso machista que culpa a mulher por “dar
sinais” de que gosta de sexo.
Sobre ser mãe e solteira
Após a noite, a pílula do dia seguinte que o meu filho está
aí para comprovar que não é abortiva de jeito nenhum, o medo em pegar um exame
escrito HIV positivo, os dias seguiram-se em normalidade. Até começarem os
enjoos.
Depois veio o desespero, a vontade de morrer, um quase
suicídio evitado pelo colega de apartamento, uma tentativa de aborto e a
decisão de “sim, vou ser mãe, que se foda!”. Mal sabia eu que ter deficiência
física é bolinho perto da discriminação em ser mãe solteira. (E na
Universidade! Que horror!)
Passei a ser motivo de chacota, de desrespeito, de invasão
de privacidade, de ter a vida revolvida, ser a negra animalizada no circo
europeu à época da escravidão. Um objeto exótico e abjeto, irresponsável,
diziam alguns entre cochichos, enquanto eu sorria triste e cansada (não, não
era só sono!). Minha família ligou-me, ficou comigo, tentaram dar apoio como
puderam. e enquanto isso, a gravidez progredia. O pai do meu filho me culpava,
dizia que “não sabia se o filho era dele mesmo”, que ninguém podia saber, nem
sequer foi conversar pessoalmente comigo para saber “como eu estava”. Do quinto mês em diante, larguei mão e
resolvi aproveitar o meu estado de grávida.
Quanto à Universidade, ou seja, as assistentes sociais da
Coseas, afirmaram que eu teria ajuda no que fosse necessário... Mas...
Sobre machismo e Universidade
Assim que meu filho nasceu, foi pedido à Universidade que eu
pudesse ter uma acompanhante. Não conseguiria segurar meu filho nos braço e
precisaria de ajuda 24 horas por dia para continuar meus estudos. Como só pode
morar no CRUSP, minha residência naquele momento, quem fosse estudante, pedi a
permissão para que minha irmã fosse ficar comigo. O “privilégio” (segundo
nomeou a assistente social Mara) foi concedido. Esperava
conseguir uma vaga creche da USP, logo em breve, afinal, não havia mãe mais necessitada
do que eu. Minha irmã se foi, babás
vieram, falta de dinheiro, desemprego, tristeza. Onde estava a
maternidade-feliz tão apregoada a mim durante a gravidez? Disseram que filho
dormiria o dia todo, que não precisava nem trancar a faculdade, que tudo seria
mágico, embora difícil. E eu secava
pelas mamas, emagrecia, não conseguia ir às aulas, não conseguia dominar a
situação.
E aí, a vaga na creche não saiu...
Não havia vagas o suficiente e minhas aulas eram a noite e
não no horário da creche. Essa foi a desculpa esfarrapada que me deram. A
afirmação direta, todavia, foi ”abrimos uma exceção ao deixar você com uma
criança no CRUSP. Talvez seja melhor deixar seu filho com sua mãe até terminar
os estudos.” Vejam bem, se ainda não ficou claro o que se passou: não é só que
a maternidade atrapalha aos estudos (ou ao trabalho, enfim); é que há uma série
de mecanismos de boicote que corroboram para que isso aconteça. E quando
acontece, serve de estatística para confirmar ideologias convenientes. Soube depois
que é afirmado em alto e bom som pelos corredores da Coseas que é “um absurdo
alunas engravidarem no CRSUP”. O que parece ser esquecido, é que as “alunas”
são simplesmente mulheres, maiores de idade, vacinadas, adultas e que estudam
um curso superior e moram na USP. Qual é o absurdo disso é o que não entendo.
Quantas mulheres têm gravidez não planejada tendo outras profissões que não a
de pesquisadora? Se a moradia da universidade é dedicada a um grupo social de
fragilidade econômica e 70% dos pobres são mulheres e mulheres ganham menos,
engravidam, etc, seria o esperado exatamente o contrário: que povoassem o CRUSP
minorias sociais e não apenas “pobrinhos limpinhos”.
A partir disso, não é inesperado que em uma faculdade de
Letras em que a maioria dos alunos são mulheres, a carreira docente seja em seu
maior peso ocupada por homens. Mesmos as bolsas de estudo (Capes, CNPQ) não
contemplam licença maternidade. A voz da mulher é falada pela boca do machismo
sob um falso verniz de “somos rigorosos com nossos critérios de seleção”.
Agora, olhem a pegadinha do destino: apesar de todos os
percalços descritos, o segundo semestre após o nascimento de meu filho foi o
mais produtivo academicamente de toda a minha vida. Deixo claro que não
precisava ter sido assim. No entanto, foi. As custas da minha saúde física e
mental, claro. Do meu sono – dormir quatro horas por dia, da minha aparência e
alegria. Eu fiz oito matérias e tirei nota oito em quase todas elas, exceto
uma. E ainda sim, não era uma “boa mãe” aos olhos do mundo. Por que eu esquecia
a vacina do meu filho (minha amiga disse que ia chamar o conselho tutelar para
mim!), por que as vezes eu gastava o dinheiro em coisas fúteis para mim; por
que eu não adorava limpar vômito no melhor do meu sono; por que eu saia de vez
em quando , segundo todos, poderia engravidar a qualquer momento novamente (melhor
mesmo era me chamar para cuidar do Gabriel bem na hora da minha saída, né?).
Afinal, “quem pariu, bateu, que balance!”. Eu tinha que trabalhar, estudar,
limpar a casa aos sábados de manhã, brincar com meu filho a tarde, estudar
enquanto ele dormir, a noite, e fazer documentos burocráticos obrigando a
universidade a respeitar os meus direitos como mãe, mulher e aluna nas horas
vagas. Direitos e não “privilégios”. Afinal,
além de tudo, eram descontados diretamente da minha folha de pagamento.
Passei a sentir raiva. Muita raiva. Raiva com todos os nomes
e sem nenhum nome. Raiva dos professores, raiva dos amigos, raiva do meu filho,
raiva da minha família. Eu me sentia só e sempre em débito. E por muitos anos
culpei meu filho por sua existência. Culpava-o pelas vagas de melhores empregos
perdidas ao ouvirem a palavra “mãe. Culpava-o pela viagem à Europa deixada de
lado. Culpava-o pelos homens que me recusavam por ser mãe. Pela casa suja,
pelas noites sem dormir, por aguentar gente em minha casa que eu não queria. Foram uns dois ou três anos culpando-me pela
maternidade inesperada. Acordar com raiva, dormir com raiva. Um esforço insano
para provar ao mundo que era uma aluna excelente, uma mãe dedicada, uma pessoa
“responsável”. Mal todos viravam as costas, ao piscar dos olhos do meu filho,
eu gritava. E, ao mesmo tempo que gritava exageradamente com ele, todos exigiam
que eu batesse (um tapa bem dado!). Que eu tivesse “pulso firme”, que
participasse dos 350 mil eventos realizados pela escola, que trabalhasse e
cuidasse da criança, que apoiasse greve de professores no desespero de ninguém
para cuidar do Gabriel, que tentasse suprir “a falta do pai” que com certeza
ele teria (certeza de cu é rola, só para adiantar o quê hoje em dia eu acho do
assunto!), que pagasse o justo à babá, que tivesse AUTORIDADE. Autoridade essa colocada em
cheque a todo o momento quando a gente, mãe-mulher, não cala a boca da criança
na porrada, pois ela “incomoda os frágeis ouvidos” do patriarcado. Por que filho de mãe solteira não sabe o que é autoridade, né? Por que vem de
família desestruturada (desestruturada meu cu!)... E ninguém pode ser
incomodado pela existência do seu filho. Então, você DEVE ao mundo. Está em
eterna dívida. Tem que dar satisfação da sua vida sexual, financeira e afetiva,
aceitar os “conselhos” (ordens, na
realidade), sacrificar-se, não sair, não ser jovem e ainda amar a criaturinha
que ali se encontra sem que ela nem mesmo saiba chamar o seu nome.
E ainda sim a gente ama. Ama e odeia, claro. E grita
escondido, e xinga. E depois pede perdão e se culpa. E paga mil coisas a todos,
à babá, a mãe, ao namorado, à Academia. Por que a mãe solteira deve. E faz
todos os trabalhos em grupo sozinha e quando dá certo é o normal e quando dá
errado “era o esperado de alguém assim”. E é tudo um milagre. Você passa cinco
meses sem dormir lavando nariz da criança com soro e fazendo inalação, mas a
respiração dele melhorar foi a santa X que operou milagre. A criança é um
milagre! Um “companheiro”! Ele nem falava ainda e já era um milagre na minha
vida. E poderia ser. O milagre em me mostrar o quão as coisas precisavam mudar
para sermos livres. No auge do desespero, já na segunda tentativa frustrada em
passar na seleção de metrado (não passei nessas duas porque a orientadora “não
gostou do tema” e resolvei me avisar ali, na última hora, bem legal!), eu
coloquei as palavras na internet “maternidade e ideologia”. Veio o texto de psicologia
que reavaliava o conceito de depressão pós-parto com base nas ideias de
Foucault. O texto comparava mães com
diagnóstico de depressão pós-parto e a maternidade em uma aldeia indígena (acho
que aldeia Guarani). Na aldeia, a maternidade é compartilhada com todo o grupo,
a mãe só amamenta quando está fisicamente recuperada. Percebeu-se que na aldeia
não era identificada a existência de depressão pós-parto, o que evidencia a
grande e pesada influência da sociedade na relação da mulher com o filho. O
texto foi como tirar o mundo de meus ombros (“os ombros suportam o mundo e ele
não pesa mais que a mão de uma criança).
O mundo queria de mim autoridade?! Agora ia ter! Passei a
mandar pessoas cuidarem de suas vidas, a não me questionarem diante de meu
filho, a ridiculariza-las quando o fizessem, enfim, a ter autoridade...com
elas. E claro que ninguém gostou muito. A babá começou a ter que me questionar
escondida (e não mais “sendo o pai”que eu como “fracote” não era), a
companheira de apartamento a parar de berrar a noite e a querer escolher quem
cuida do meu filho, a vó a ficar com o neto quando eu precisasse e não só
quando achasse necessário, o namorado dançou, a USP desmascarada como
hipócrita. As teorias começaram a passar pelo meu olhar com desconfiança. Os
homens agora têm de me temer um pouco mais, as mulheres também.
Era tarde, todavia...
Não tardou a que eu fizesse inimigos. Eu, a “ilegítima”, a
“não mais vítima”, a “barulhenta”, a que incomoda, a intolerante, a que é o
“investimento falido da USP”. Não tardou tão pouco a enviarem cartas à reitoria
da universidade expondo a minha inadequação, a reclamarem os mesmos direitos de
que os de meu filho (“se ele chora a noite, eu também posso fazer barulho”), a
deixarem a casa nojenta (“a mal agradecida que arrume!”), a quebrarem os meus
móveis, a gritarem com meu filho, beliscarem-no. Porém, agora também era tarde
para todos. Eu já havia feito amizade com outras mães, já havia lido textos de
mães feministas, já cagava e andava para a Cátedra, para a moral e bons costumes
do imaculado ambiente USP.
Era tarde, eu resolvi abandonar a USP, o CRUSP. E fiz. E
quero mais e mais fazer barulho agora. Quero crianças barulhentas nos
restaurantes, quero crianças nas salas de aula ressonando em meio a teorias de
barulhos legítimos e ilegítimos, quero
batom vermelho e decote, quero frequentar festas em que meu filho seja bem
vindo, beijar rapazes para os quais meu filho seja um ser humano que me
humaniza e não o vírus Ebola. Quero
teorias que falem sobre resistência e não só sobre opressão, quero menos
palavras de ordem e mais alegria .
Por que nada cai melhor à demagogia e ao opressor do que a
desesperança de que não existe resistência, ou o discurso de que ela não é
legitima, pois atrapalha a reflexão “realmente importante”. Ela, a resistência
existe. E estamos vivos e fazendo barulho bem na hora da sua assembleia.
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