quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Sobre ser mulher, jovem, mãe solteira, na Universidade, no mundo.


Este texto é sobre muitas coisas, todas dentro do rótulo “ser mãe”. Ele deveria ter sido feito aos poucos, pois para cada item do título, houve uma porta arrebentada ou uma perna quebrada na tentativa de.  Talvez pudesse ter escolhido o título “Por quê sou feminista”. Mas é exatamente a relação entre causa e efeito a matéria mesma que me leva a escrever e não só o feminismo.

Sobre ser jovem e mulher     

O dia em que meu filho foi concebido eu havia retirado minhas camisinhas da bolsa. Sempre andava com camisinhas comigo, contudo, minha mãe disse que “andar com camisinha era coisa de vagabunda” e, embora eu soubesse que ela estava errada, preferia não passar novamente pelo constrangimento de falar sobre algo que a mim era tão íntimo e pessoal. Eu não tinha nenhum pretendente em vista e não queria “ouvir mais nada”.
Eu tinha 21 anos, morava há quatro anos na Universidade de São Paulo e estava entre o discurso libertário de “faça sexo quando tiver vontade” e o “começa com sexo, depois acaba nas drogas”. Mas a liberdade sempre me foi um tema de vida, um ferver de sangue pela face, um arrebatamento diante de uma juventude até então besta. Ir rumo à liberdade era um destino. E não haveria nada demais nisso, caso a liberdade fosse um objeto claro e palpável e não um fóssil soterrado em meio ao engendramento de discursos há séculos e séculos  apresentados como “naturais”. É natural mulher fazer sexo por amor, é natural que deficientes físicas sejam assexuadas, é natural que quando não são, o interesse é vindo de um amor verdadeiro. E então, houve o samba e algo natural aconteceu...
Aquele dia minha melhor amiga e eu resolvemos ir a um samba. Ao meu primeiro samba. E lá, havia o boto (rsrs!). A noite, a música, tudo me deslumbrava. E, de repente, dois rapazes lindos puxaram assunto, chegaram junto. Minha amiga é uma mulher bonita, pensei, até aí, tudo bem. Foi quando o mais bonito do lugar, um deles, beijou-me. O beijo virou uma carona pra casa. E uma multa, por estar na garupa da moto sem capacete, um mal-estar.  Na casa Dela, continuamos o iniciado no samba, mas eu ainda me sentia culpada pela multa que o rapaz levara. Eu sentia culpa e acreditava que precisava ressarci-lo de algum modo. Afinal,  faze-lo ir até ali, levar uma multa por minha causa, arriscar-se sem nada em troca... Sim, foi exatamente isso o que aconteceu. Até o exato momento de escrita deste episódio eu menti para todos: não, a camisinha não saiu!  O que houve foi um maldito discurso de “começou, termina”, “se não queria, porque o levou para casa”, etc. Um maldito discurso machista que culpa a mulher por “dar sinais” de que gosta de sexo.

Sobre ser mãe e solteira

Após a noite, a pílula do dia seguinte que o meu filho está aí para comprovar que não é abortiva de jeito nenhum, o medo em pegar um exame escrito HIV positivo, os dias seguiram-se em normalidade. Até começarem os enjoos.
Depois veio o desespero, a vontade de morrer, um quase suicídio evitado pelo colega de apartamento, uma tentativa de aborto e a decisão de “sim, vou ser mãe, que se foda!”. Mal sabia eu que ter deficiência física é bolinho perto da discriminação em ser mãe solteira. (E na Universidade! Que horror!)
Passei a ser motivo de chacota, de desrespeito, de invasão de privacidade, de ter a vida revolvida, ser a negra animalizada no circo europeu à época da escravidão. Um objeto exótico e abjeto, irresponsável, diziam alguns entre cochichos, enquanto eu sorria triste e cansada (não, não era só sono!). Minha família ligou-me, ficou comigo, tentaram dar apoio como puderam. e enquanto isso, a gravidez progredia. O pai do meu filho me culpava, dizia que “não sabia se o filho era dele mesmo”, que ninguém podia saber, nem sequer foi conversar pessoalmente comigo para saber “como eu estava”.  Do quinto mês em diante, larguei mão e resolvi aproveitar o meu estado de grávida.
Quanto à Universidade, ou seja, as assistentes sociais da Coseas, afirmaram que eu teria ajuda no que fosse necessário... Mas...

Sobre machismo e Universidade

Assim que meu filho nasceu, foi pedido à Universidade que eu pudesse ter uma acompanhante. Não conseguiria segurar meu filho nos braço e precisaria de ajuda 24 horas por dia para continuar meus estudos. Como só pode morar no CRUSP, minha residência naquele momento, quem fosse estudante, pedi a permissão para que minha irmã fosse ficar comigo. O “privilégio” (segundo nomeou a assistente social Mara) foi concedido.   Esperava conseguir uma vaga creche da USP, logo em breve, afinal, não havia mãe mais necessitada do que eu.  Minha irmã se foi, babás vieram, falta de dinheiro, desemprego, tristeza. Onde estava a maternidade-feliz tão apregoada a mim durante a gravidez? Disseram que filho dormiria o dia todo, que não precisava nem trancar a faculdade, que tudo seria mágico, embora difícil.  E eu secava pelas mamas, emagrecia, não conseguia ir às aulas, não conseguia dominar a situação.
E aí, a vaga na creche não saiu...
Não havia vagas o suficiente e minhas aulas eram a noite e não no horário da creche. Essa foi a desculpa esfarrapada que me deram. A afirmação direta, todavia, foi ”abrimos uma exceção ao deixar você com uma criança no CRUSP. Talvez seja melhor deixar seu filho com sua mãe até terminar os estudos.” Vejam bem, se ainda não ficou claro o que se passou: não é só que a maternidade atrapalha aos estudos (ou ao trabalho, enfim); é que há uma série de mecanismos de boicote que corroboram para que isso aconteça. E quando acontece, serve de estatística para confirmar ideologias convenientes. Soube depois que é afirmado em alto e bom som pelos corredores da Coseas que é “um absurdo alunas engravidarem no CRSUP”. O que parece ser esquecido, é que as “alunas” são simplesmente mulheres, maiores de idade, vacinadas, adultas e que estudam um curso superior e moram na USP. Qual é o absurdo disso é o que não entendo. Quantas mulheres têm gravidez não planejada tendo outras profissões que não a de pesquisadora? Se a moradia da universidade é dedicada a um grupo social de fragilidade econômica e 70% dos pobres são mulheres e mulheres ganham menos, engravidam, etc, seria o esperado exatamente o contrário: que povoassem o CRUSP minorias sociais e não apenas “pobrinhos limpinhos”.
A partir disso, não é inesperado que em uma faculdade de Letras em que a maioria dos alunos são mulheres, a carreira docente seja em seu maior peso ocupada por homens. Mesmos as bolsas de estudo (Capes, CNPQ) não contemplam licença maternidade. A voz da mulher é falada pela boca do machismo sob um falso verniz de “somos rigorosos com nossos critérios de seleção”.
Agora, olhem a pegadinha do destino: apesar de todos os percalços descritos, o segundo semestre após o nascimento de meu filho foi o mais produtivo academicamente de toda a minha vida. Deixo claro que não precisava ter sido assim. No entanto, foi. As custas da minha saúde física e mental, claro. Do meu sono – dormir quatro horas por dia, da minha aparência e alegria. Eu fiz oito matérias e tirei nota oito em quase todas elas, exceto uma. E ainda sim, não era uma “boa mãe” aos olhos do mundo. Por que eu esquecia a vacina do meu filho (minha amiga disse que ia chamar o conselho tutelar para mim!), por que as vezes eu gastava o dinheiro em coisas fúteis para mim; por que eu não adorava limpar vômito no melhor do meu sono; por que eu saia de vez em quando , segundo todos, poderia engravidar a qualquer momento novamente (melhor mesmo era me chamar para cuidar do Gabriel bem na hora da minha saída, né?). Afinal, “quem pariu, bateu, que balance!”. Eu tinha que trabalhar, estudar, limpar a casa aos sábados de manhã, brincar com meu filho a tarde, estudar enquanto ele dormir, a noite, e fazer documentos burocráticos obrigando a universidade a respeitar os meus direitos como mãe, mulher e aluna nas horas vagas.  Direitos e não “privilégios”. Afinal, além de tudo, eram descontados diretamente da minha folha de pagamento.
Passei a sentir raiva. Muita raiva. Raiva com todos os nomes e sem nenhum nome. Raiva dos professores, raiva dos amigos, raiva do meu filho, raiva da minha família. Eu me sentia só e sempre em débito. E por muitos anos culpei meu filho por sua existência. Culpava-o pelas vagas de melhores empregos perdidas ao ouvirem a palavra “mãe. Culpava-o pela viagem à Europa deixada de lado. Culpava-o pelos homens que me recusavam por ser mãe. Pela casa suja, pelas noites sem dormir, por aguentar gente em minha casa que eu não queria.  Foram uns dois ou três anos culpando-me pela maternidade inesperada. Acordar com raiva, dormir com raiva. Um esforço insano para provar ao mundo que era uma aluna excelente, uma mãe dedicada, uma pessoa “responsável”. Mal todos viravam as costas, ao piscar dos olhos do meu filho, eu gritava. E, ao mesmo tempo que gritava exageradamente com ele, todos exigiam que eu batesse (um tapa bem dado!). Que eu tivesse “pulso firme”, que participasse dos 350 mil eventos realizados pela escola, que trabalhasse e cuidasse da criança, que apoiasse greve de professores no desespero de ninguém para cuidar do Gabriel, que tentasse suprir “a falta do pai” que com certeza ele teria (certeza de cu é rola, só para adiantar o quê hoje em dia eu acho do assunto!), que pagasse o justo à babá, que tivesse  AUTORIDADE. Autoridade essa colocada em cheque a todo o momento quando a gente, mãe-mulher, não cala a boca da criança na porrada, pois ela “incomoda os frágeis ouvidos” do patriarcado.  Por que filho de mãe solteira não sabe  o que é autoridade, né? Por que vem de família desestruturada (desestruturada meu cu!)... E ninguém pode ser incomodado pela existência do seu filho. Então, você DEVE ao mundo. Está em eterna dívida. Tem que dar satisfação da sua vida sexual, financeira e afetiva, aceitar os “conselhos”  (ordens, na realidade), sacrificar-se, não sair, não ser jovem e ainda amar a criaturinha que ali se encontra sem que ela nem mesmo saiba chamar o seu nome.
E ainda sim a gente ama. Ama e odeia, claro. E grita escondido, e xinga. E depois pede perdão e se culpa. E paga mil coisas a todos, à babá, a mãe, ao namorado, à Academia. Por que a mãe solteira deve. E faz todos os trabalhos em grupo sozinha e quando dá certo é o normal e quando dá errado “era o esperado de alguém assim”. E é tudo um milagre. Você passa cinco meses sem dormir lavando nariz da criança com soro e fazendo inalação, mas a respiração dele melhorar foi a santa X que operou milagre. A criança é um milagre! Um “companheiro”! Ele nem falava ainda e já era um milagre na minha vida. E poderia ser. O milagre em me mostrar o quão as coisas precisavam mudar para sermos livres. No auge do desespero, já na segunda tentativa frustrada em passar na seleção de metrado (não passei nessas duas porque a orientadora “não gostou do tema” e resolvei me avisar ali, na última hora, bem legal!), eu coloquei as palavras na internet “maternidade e ideologia”. Veio o texto de psicologia que reavaliava o conceito de depressão pós-parto com base nas ideias de Foucault.   O texto comparava mães com diagnóstico de depressão pós-parto e a maternidade em uma aldeia indígena (acho que aldeia Guarani). Na aldeia, a maternidade é compartilhada com todo o grupo, a mãe só amamenta quando está fisicamente recuperada. Percebeu-se que na aldeia não era identificada a existência de depressão pós-parto, o que evidencia a grande e pesada influência da sociedade na relação da mulher com o filho. O texto foi como tirar o mundo de meus ombros (“os ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança).
O mundo queria de mim autoridade?! Agora ia ter! Passei a mandar pessoas cuidarem de suas vidas, a não me questionarem diante de meu filho, a ridiculariza-las quando o fizessem, enfim, a ter autoridade...com elas. E claro que ninguém gostou muito. A babá começou a ter que me questionar escondida (e não mais “sendo o pai”que eu como “fracote” não era), a companheira de apartamento a parar de berrar a noite e a querer escolher quem cuida do meu filho, a vó a ficar com o neto quando eu precisasse e não só quando achasse necessário, o namorado dançou, a USP desmascarada como hipócrita. As teorias começaram a passar pelo meu olhar com desconfiança. Os homens agora têm de me temer um pouco mais, as mulheres também.


Era tarde, todavia...

Não tardou a que eu fizesse inimigos. Eu, a “ilegítima”, a “não mais vítima”, a “barulhenta”, a que incomoda, a intolerante, a que é o “investimento falido da USP”. Não tardou tão pouco a enviarem cartas à reitoria da universidade expondo a minha inadequação, a reclamarem os mesmos direitos de que os de meu filho (“se ele chora a noite, eu também posso fazer barulho”), a deixarem a casa nojenta (“a mal agradecida que arrume!”), a quebrarem os meus móveis, a gritarem com meu filho, beliscarem-no. Porém, agora também era tarde para todos. Eu já havia feito amizade com outras mães, já havia lido textos de mães feministas, já cagava e andava para a Cátedra, para a moral e bons costumes do imaculado ambiente USP.
Era tarde, eu resolvi abandonar a USP, o CRUSP. E fiz. E quero mais e mais fazer barulho agora. Quero crianças barulhentas nos restaurantes, quero crianças nas salas de aula ressonando em meio a teorias de barulhos legítimos  e ilegítimos, quero batom vermelho e decote, quero frequentar festas em que meu filho seja bem vindo, beijar rapazes para os quais meu filho seja um ser humano que me humaniza e não o vírus Ebola.  Quero teorias que falem sobre resistência e não só sobre opressão, quero menos palavras de ordem e mais alegria .
Por que nada cai melhor à demagogia e ao opressor do que a desesperança de que não existe resistência, ou o discurso de que ela não é legitima, pois atrapalha a reflexão “realmente importante”. Ela, a resistência existe. E estamos vivos e fazendo barulho bem na hora da sua assembleia.                    
                                             

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