terça-feira, 2 de abril de 2013

2.4.13 - São Paulo


“E os meus ouvintes tornaram-se os meus leitores...”

Descobri que tenho leitores. Quer dizer, já sabia, só não contava com tantos.
Seria tudo o que o ato de escrever deveria objetivar, certo? Bom... Não poderia negar que a finalidade do blog seria esta mesma: ser lido. Mas a timidez em mim é mais do que um nó na garganta: é um nó na escrita também.
Há algumas questões de escrita que eu quero delirar aqui. E só peço aos pacientes leitores, calma. Muita calma, queridos ouvintes mudos. Que em mim tudo nasce em embaralho e torçura. E as linhas seguem em desalinho, faltam nas ideias alguns dedos, faltam nas mãos alguma força e coragem. A letra é franca, mas sai borrada.
De uns tempos para cá, como resolução de vida, por uma escolha ética, decidi escrever poemas. Cometer poemas, peidar poemas, exalar poemas... E o exercício acabou por viciar ao atleta e as palavras passaram a sair somente em verso. Ao início, versos livres e fúteis, como a poeta. No entremeio, fui acometida de rimas. Sim, acometida! Não consigo mais escrever fora das rimas. O jeito foi retornar à prosa, que não tem passos de dança, todavia, corrige o ritmo da caminhada. E aqui estou, de volta à arena, entregue à pior de minhas feras: eu.
Com a perda do hábito, é claro que o alvo não foi a mim, assim, sem vaselina, logo de largada.  Mas pensar o Outro, é pensar-se de algum modo. O Outro é o espelho pelo qual nos medimos. Descobrir no reflexo a flor e lamber meus espinhos até chegar à rosa. Para tanto, é preciso limpar das rimas o verso e desapaixonar-me do reflexo das palavras. Reconciliar-me com o corpo do sentido, palavra afeto historicizada, palavra-memória.  Reentender-me com a escrita como exercício de memória, de coragem, sem fetichismo. Difícil. Muito difícil para quem a tanto tempo é adestrada a ser moldada pela forma e não aprendeu ainda como transbordá-la.
Há mais ou menos um mês assisti à um filme chamado Words (Palavras). O filme é sobre um escritor que, estéril de criatividade, plagia um livro que encontra em uma casa de antiguidades. O livro vira best-seller, elogiado pela crítica, mas o escritor acaba tendo de lidar com dois conflitos: a amargura de só conseguir reconhecimento por algo que não é realmente dele; conhecer o verdadeiro autor do livro e não poder lhe conferir os devidos créditos. A certa altura do filme o falso autor encontra o verdadeiro, e este renega os créditos da autoria afirmando não os querer, pois o grande erro de sua vida teria sido ter maior paixão por suas palavras do que por sua mulher. O filme é assim um debate metalinguístico a respeito dos limites entre autor e linguagem, vida e ficção.  E em tempos de facebook, em que trocamos o real pelo virtual como último fôlego em nossos cárceres de vidro, como não nos questionarmos: nos apaixonamos pelas palavras e esquecemo-nos dos que amamos? Questionamento pueril, talvez, tendo em vista que a figura do escritor  é anterior à internet. E quando somos escritores,  estamos na internet, e estamos cercados de academia? Sim, porque a universidade é ótima, mas as chances de querer copiar o já feito e apagar-se nesse processo é muito alta.
Em muitos de meus textos eu questiono a demagogia que reside na distância entre o meu discurso e os meus atos.  Um moralismo em certa medida, posto que o humano é ancorado na contradição. É o velho embate entre o querer e o dever, o ter coragem e o não ter, entre o desejo de mudança e as velhas repetições de hábitos. Não há nada mais difícil de se mudar do que um hábito. Inclusive o da paixão pelo medo, como é o hábito do ressentimento e da timidez, e a paixão em dizer algo já aceito.
A escrita tem uma característica inerente a si e que acredito é o que permite hospedar demagogias: ela é permanente, é cristalizada. Já diz o ditado: “palavras voam com o vento”. E como não nos apaixonarmos por um suporte que nos alivia de dois grandes conflitos humanos: o de superação do medo da morte – ao querermos deixar um legado que nos represente, como um livro, uma obra-, e o de permitir mudanças rápidas e distanciadas e, ao mesmo tempo, enlatadas. Quantas vezes nos queremos diferentes e todavia a mudança não acontece no tempo que gostaríamos? Quantas vezes quereríamos ser outro? Ser outra? Fora de nossos corpos, distantes do olhar do Outro, na tipografia dos caracteres, podemos ser diversos, podemos ter outros hábitos, podemos simplificar questões inconvenientes, podemos acreditar naquilo que escrevemos sem questionamentos externos. Diante da folha de papel, o filho não chora, a panela não está fogo, não há varais de roupa para serem pendurados, não há trânsito, nem precisamos altear nossa voz diante do medo. Não é a toa que manifestações virtuais, manifestos, são um grande sucesso. Não é uma opção das mais sedutoras ir à assembleias chatas, demoradas, em que sempre o mesmo grupinho é quem tem o microfone, em que balas de borracha podem voar em nossas pernas a qualquer momento, em que não precisamos deixar a casa podre de suja para ir ouvir palavras de ordem. Diante da folha de papel somos donos de nossa voz, o microfone é nosso, voltamos a ser os protagonistas de nossa própria história.
Contudo, a nossa história só o é em relação a de um outro. E esse outro está lá fora. É aquele outro que também questionará nossa incoerência. E não gostamos disso. Eu não gosto, ao menos. A maneira como esse outro nos enfrentará torna ainda pior a situação. Ninguém chegará até mim, oferecerá um café  e dirá: “agora, precisamos conversar sobre como resolver o seu comportamento grosseiro pela manhã, quando acorda. Eu te ajudo.” Não.  Isso será  feito das mais imprevisíveis maneiras, até mesmo com pequenas vinganças diárias, as quais não relacionamos sequer a causa.
E nem adianta vir dizer ”oh, sou super sincero/a sempre com as pessoas, eu te ofereceria o café”. Não. Inclusive porque para isso é preciso ter uma autoconfiança quase divina.  Por muito tempo fui o mais sincera dentro do possível. E percebi que criticar abertamente não incentiva necessariamente a um revide aberto. Além disso, existem hierarquias sociais. Por mais anárquica que eu seja, a menos que nunca mais eu quisesse carreira acadêmica, eu não poderia dizer para minha professora de linguística, por exemplo: olha, a senhora faz eu me matar para um projeto  e agora joga todo o meu esforço fora?”. Eu nem sei se teria esse direito, para começo de conversa. Mas escrever um poema de puro desaforo é completamente permitido na linguagem e foi o que fiz na época.
Um outro ponto que o filme também coloca é a respeito dos limites entre a identidade do autor e o autor real. Isso porque, a história é narrada por um outro escritor, o qual o filme deixa em aberto que poderia ser o tal do autor fracassado, que mais tarde, já mais habilitado, teria escrito sua própria história. História que, assim como a do autor verdadeiro do primeiro livro, traz consigo a sina  da paixão pelas palavras: as de mulheres que se aproximam do escritor por apaixonarem-se por suas palavras.
Daí eu caraminholar: o quanto sou os textos que escrevo? Já que para algumas questões sou mais sincera aqui e para outras mais mentirosa. Uma pergunta vazia, posto que sem resposta. Mas o questionamento de se teria eu me apaixonado pela linguagem, essa eu mantenho. Não como anulação da escrita, mas como um voto de amor à vida também. Rastrear as minhas incoerências e a de outros – posto que são espelho. E levar minhas criticas para além do papel.
Se eu me apaixonei pelas palavras, talvez o momento seja pelo movimento em direção à coragem. Conseguirei?
O leão de hoje é o meu voto pela coragem de amar e enfrentar o outro para além do papel.                        

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